São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2004 |
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Extinção por Teixeira Coelho
Detesto as viagens e os exploradores, escreveu
Lyon na carta à irmã, em frase que muito depois seria retomada para tornar-se conhecida. Continuou: e no entanto... Na carta Lyon
escrevia uma coisa e no diário ao lado, outra. Quase a
mesma coisa, mas outra. Sabe-se que escrevia a carta e o
diário ao mesmo tempo porque o diário está datado,
parágrafo a parágrafo, e a carta também, canto superior
direito: 1682. Portanto é quase possível vê-lo escrevendo ambos textos lado a lado. Na carta diz uma coisa, no
diário, um pouco mais. No diário, no mesmo dia, Lyon
escreve que da janela podia ver a vasta inundação lá embaixo, na várzea, que ele explica ser a palavra usada pelos nativos para aquela ampla baixada a perder de vista
(e por nativos ele queria dizer os que moravam ali, não
só os que nasciam ali: ele não, ele não era dali). É o quinto dia da enchente que não baixa e o quinto dia seguido
de chuva, Lyon escreve no diário. Em janeiro chove sem
parar: sinistro -escreveu Lyon na carta à irmã. O que
vejo à minha frente, nas terras baixas deste lugar insignificante, é como se fosse um mar interno. Se assim descreve, é porque deveria ter a igreja principal e o Colégio
às suas costas, ou pelo menos ao lado, e a baixada pela
frente. No diário, anota que mal pode ver a cena que
descreve: a água cai à sua frente numa cortina de cristal
opaco e captura a massa enevoada que Lyon não sabe se
é pura evaporação local ou fria neblina vinda das distantes montanhas. É possível imaginar que, mesmo da
porta de seu quarto, mal daria para distingui-lo na mesa
à janela, contra os panos da cortina e a parede na sombra. A casaca escura que porta mesmo dentro de casa,
em verde ou cinza escuro, se funde com as trevas da câmara que a fraca luz do dia pouco perfura. Um pouco de
neblina, vapor de água, entra pela janela aberta, que logo terá de fechar: o papel enruga-se. Todas as tardes
chove fino, ele escreveu para a irmã, mais fino que em
Paris, mas uma água que acaba por penetrar na lã e deixar o casaco insuportavelmente pesado, ele diz nas suas
palavras. São quase 18h e do lado leste, onde vejo essa
inundação angustiante que trará nova onda de mosquitos, aproxima-se uma imensa nuvem escura, deslizante palácio tenebroso. As casas do outro lado da várzea estão ilhadas, escreveu na carta. Eu estou bem, na
parte alta desta São Paulo, mas ver a enchente que não
cede me causa profunda angústia, enorme abatimento,
escreveu na carta. No diário, na mesma data, está feita a
anotação dizendo que ele se sente incompreensivelmente exausto. Talvez não quisesse preocupar a irmã, que
receberia a carta quando ele nem mais se lembrasse de
seu estado, quem sabe muito mais de ânimo que físico.
Isso a que chamam de cidade me fatiga de maneira arrasadora, escreveu à irmã. As imagens desta vila me esgotam, ele põe no papel. A cidade me consome, esclarece. Nela, nada me diz nada, escreveu Lyon. Ela me desnorteia, nada nela me faz sentir como se eu de fato estivesse em algum lugar. Nada me é reconhecível. Nem a
mim, nem aos nativos, Lyon continuou. Tudo é pequeno e menor, a feiúra nem sequer pretensiosa é. E esta cidade, que deveria ser nova, é velha, irremediavelmente
velha (é o que se lê no diário: provavelmente acredita
que a irmã não apreciaria os paradoxos). Esta cidade é
nova e cai aos pedaços, embora nada esteja propriamente ruindo, ou quase, Lyon contenta-se em relatar à
irmã. As casas são irrelevantes, como esboços envelhecidos. Ele frisa essa expressão no diário: esboços envelhecidos. Na carta à irmã faz de tudo para não trazer à
memória (supostamente dela; na verdade, dele) que ele
um dia havia sido o que se chamaria de arquiteto. Na
carta, diz apenas: Esta cidade é nova, nova quando pensamos em Paris, e no entanto de nova nada tem, e é velha, sinistramente velha, como nenhuma cidade velha
poderia ser. As casas são irrelevantes e o cheiro de urina
na rua é tão forte quanto nas cidades velhas de onde tolamente fugi (no diário, é mais explícita a angústia pelo
que ali chama de fuga). Essa parte não está na carta, mas
na carta ele não tem como não contar que numa viagem
de três dias (meses antes: mas isso ele não teve forças
para admitir, como explicar a demora?) a uma vila que
grotescamente chamavam Itu, nome que não conseguia pronunciar, ficara sabendo que a exploração havia
sido um fracasso e que portanto boa parte de seu capital, e do capital da irmã, virara fumaça. Neblina. Névoa.
Fria chuva miúda. Pouco depois daquela viagem nefasta, Lyon teve a confirmação: a bandeira, como a chamavam, voltava a São Paulo. Foram avisá-lo, como pedira
(como pagara para que fizessem). Quase viu a chegada.
Visíveis, apenas restos do que fora a expedição grandiosa, o pequeno exército que partira: um homem tinha
metade do braço murcho e Lyon se espantara, sem se
condoer, que o membro ainda não houvesse sido amputado. Não duraria muito. Outro tinha os olhos vendados com imundo pano manchado por alguma coisa
que a Lyon pareceu massa ocular vazada. Como contou
à irmã, o único com quem pôde falar foi o filho daquele
com quem tratara. Depois de sete anos o filho voltara
sobre as próprias pernas (modo de dizer mais que fiel
descrição da realidade, esclarece Lyon no diário). O velho, porém, o pai, o grande líder (ele frisou no diário)
voltou embrulhado em panos, numa rede, parecia, como a chamavam ali. O filho perguntou se Lyon queria
ver, comprovar que o pai morrera e que, portanto, nada
havia a cobrar. Lyon não queria ver, mas tinha de ver:
pela irmã. O bandeirante virara couro: seco, quase irreconhecível. E dele não emanava cheiro. Lyon não quis
perguntar como fora possível mantê-lo assim. Aquilo
podia ser qualquer um, enfim. O filho atendera o pedido do pai: enterrar-se em São Paulo. Só isso. Mais nada.
Sem nada. Nada de gemas valiosas: as esmeraldas. Nada
de ouro. Nada. Alguns índios frouxamente amarrados,
como se nem quisessem escapar, e mais nada. Nojo,
sentia Lyon em algum lugar do peito. No meio da frase,
Lyon muda de assunto, sem transição, para falar à irmã
daquelas aves lamentáveis, ele escreveu, das quais os índios arrancavam as penas coloridas para fazer seus supostos adornos e que depois ficavam andando pelo
chão, peladas inteiramente, como tontas, perdidas,
iguais a títeres manipulados por inábeis, ele escreveu,
cadáveres ambulantes, como se a comida no mercado
fugisse molemente diante do comprador. Sinistro, ele
escreveu. O velho, pois parecia ainda mais velho salgado dentro da rede, estava bem morto e mesmo que
Lyon matasse o filho nenhum dinheiro voltaria de tudo
aquilo daquela exploração, ele escreveu. Esta cidade
gangrenada me arruinou, Lyon escreve no diário, sublinhando a última palavra. Um mês depois Lyon morria.
Sua irmã soube vários meses mais tarde. Teria desejado
que o corpo retornasse à França. Pelo menos o corpo.
Mas não o teriam conservado. Nem cremado, para devolver as cinzas. Ela não fazia idéia do que fora feito com
o corpo na terra das aves lamentáveis (a única imagem
daquele lugar que lhe sobrou na memória, ela diz: nem
a enchente gigantesca, nem a chuva cinza, nem a nova
cidade decadente, apenas as aves lamentáveis). Teixeira Coelho é ensaísta, escritor e professor titular da Escola de Comunicação e Artes da USP. É autor de "Dicionário Crítico de Políticas Culturais" e "Niemeyer - Um Romance" (ed. Iluminuras). O texto acima foi livremente inspirado no tríptico "Tristes Trópicos", de Ana Goldberger, e no homônimo livro de antropologia. Texto Anterior: Este lugar nunca vai dar certo Próximo Texto: Meu tio, o mameluco malaco Índice |
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