São Paulo, domingo, 25 de janeiro de 2004

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O melhor poeta argentino do século 20

Juan José Saer

Em 2 de setembro de 1978, na cidade de Paraná, morria aos 82 anos Juan L. Ortiz, o mais importante poeta argentino do século 20. A edição de suas "Obras Completas", por Sergio Delgado, em 1996, para o departamento de publicações da Universidade do Litoral, evidenciou essa indiscutível supremacia, que é ainda mais meritória quando se sabe que a poesia argentina do século que acaba de passar foi rica em nomes prestigiosos, nos mais diversos movimentos, em revistas de existência relativamente longa, em edições bem cuidadas, no gosto pela tradução, em poéticas e indivíduos originais, em textos memoráveis. Passados 25 anos de sua morte, a grandeza da vida e da obra de Juan L. Ortiz ganha, enfim, sua ofuscante evidência. As 1.121 páginas de suas "Obras Completas" constituem um monumento lírico-narrativo que, como toda obra literária de primeira grandeza, tende a ser (já tive oportunidade de dizê-lo em outras circunstâncias) "um idioma dentro do idioma, um estado dentro do estado, um cosmos dentro do cosmos". O mais importante poeta argentino do século 20. Comparando-se a obra de Ortiz com a de outros poetas que receberam esse título ou que poderiam aspirar a ele, como Leopoldo Lugones ou Borges, salta aos olhos a justeza dessa atribuição. A escritura de Borges se realiza mais plenamente em sua prosa, e, no último período de sua obra poética propriamente dita, ocorre uma verdadeira regressão para as formas tradicionais, que ele costumava atribuir a sua cegueira, pretextando que o uso do decassílabo e da rima lhe permitia memorizar melhor os versos que ia construindo mentalmente. Claro que se trata de um mito, tributário do da cegueira de Homero, destinado a salientar a contribuição desta no exercício mnemotécnico exigido pela retenção dos hexâmetros. No caso de Lugones -depois da experiência renovadora de "Las Montañas de Oro" (1897)-, sua poética, que naturalmente contém muitos magníficos achados, estanca, porém, no prefácio de "Lunario Sentimental", de 1909, onde o autor defende o verso livre, mas submetido aos moldes do ritmo e da rima. Daí em diante, os versos de Lugones, livres ou regulares, excelentes ou execráveis, ficarão sempre amarrados a essa prática obrigatória da rima. Embora a poesia de Juan L. Ortiz seja em quase tudo diferente da de Oliverio Girondo, as duas podem ser comparadas em um único, mas importantíssimo, ponto: em ambos os casos, a evolução poética aponta para o despojamento de toda retórica imposta de fora, modificando a linguagem e a forma a partir de dentro. Essa prática resulta em duas obras muito diversas, mas elas coincidem no fato de se encontrarem, ao final de sua evolução, no extremo oposto a toda expressão poética conhecida. Nesse sentido, Girondo e Ortiz são herdeiros dos grandes poetas franceses do século 19, Baudelaire, Rimbaud, Mallarmé e Lautréamont, e constituem o que poderíamos chamar de vanguarda "discreta" da poesia argentina, cuja aparente ausência, se comparada ao brilho renovador de Huidobro, Neruda e Vallejo, foi tão lamentada por nossa crítica durante décadas.

Lírica e infinito
Assim como a do universo, a matéria da poesia orticiana está em permanente expansão. Podemos dizer que, um quarto de século depois da morte do poeta, devido à estrutura singular de seus poemas, essa expansão segue sua trajetória no espaço espelhante do sentido. Assim, o mais longo de seus poemas, "El Gualeguay", que tem 2.639 versos, é apresentado como um fragmento interrompido com a explicação entre parênteses: "(Continua)".
Nele, a transfiguração poética do mundo não aparece à maneira de um inventário, ainda que caótico, como em Huidobro ou Neruda, em Vallejo ou Girondo, mas através de sucessivas ondas de evocação, a um só tempo precisa e evanescente. No rascunho de uma carta escrita a um destinatário desconhecido, Ortiz explica: "Sonho para mim com uma "poesia" de pura presença, quase de pura luz, sem "forma", ou com a muito fluida e aérea dos estados interiores -harmonia ou visão". A coerência desse projeto foi sustentada por mais de meio século de trabalho incessante, e se poderia dizer que, em cada um de seus livros, em cada um de seus poemas e em cada um de seus versos, o projeto foi posto em prática de maneira cada vez mais lúcida, mais certeira e mais radical. O homenzinho doce e de aparência desamparada que recomendava a piedade para o conjunto do existente só não a aplicava a si mesmo, porque seu trabalho sobre a forma poética foi uma vigília constante que o atormentou durante toda sua longa vida.
A partir dos anos 20, quando começou a escrever os poemas que em 1933 integrariam seu primeiro livro, "El Agua y la Noche" (publicado com a ajuda de Mastronardi, César Tiempo, Cordova Uturburu e Petit de Murat), essa forma trabalhou não apenas as possibilidades sonoras e visuais da linguagem, o fecundo valor dos sinais de pontuação na música verbal, a relação plástica entre a folha branca e a tipografia, na linha de Mallarmé, Apollinaire e Reverdy, mas também de cada um dos elementos do poema, verso, estrofe, extensão, ritmo, contraste entre fala e língua literária e, de vez em quando, e não apenas no início, algum jogo com certos metros regulares e rimas muito discretas. Embora seja possível pinçar de sua obra uma boa quantidade de poemas curtos que bastariam para situá-lo entre os melhores poetas de língua castelhana, no que toca à extensão, tanto do verso como da estrofe e do poema, toda sua prática formal, sua visão de mundo e da poesia o levam, com o passar do tempo, a praticar o poema longo, especialmente nos anos 50.
Em 1953 escreve "Gualeguay", obra-prima da literatura argentina, poema lírico-narrativo de 586 versos escrito para comemorar os 170 anos da fundação da cidade. Em 1956 publica "El Alma y las Colinas", que inclui "Las Colinas", poema de 992 versos, e em 1959 começa a compor seu mais longo poema, "El Gualeguay" (o artigo designa aqui o rio, e não a cidade). Trata-se, podemos dizer, de um poema programaticamente inacabado, que sugere nessa inconclusão a inesgotabilidade do mundo e a infinitude intrínseca de todo texto poético, à qual provavelmente também se refere a afirmação de Paul Valéry: "Um poema nunca se acaba; apenas se abandona".
"Todas as coisas diziam algo, queriam dizer alguma coisa", declara o verso 83 de "Gualeguay", e esse verso poderia cifrar toda a obra de Ortiz. Situado no zênite de sua evolução artística, o texto comemorativo é ao mesmo tempo autobiografia e história, fluência lírica entrelaçada com uma vívida épica doméstica, em que a recorrente construção anafórica, em geral destinada a exaltar coortes marciais, oferece em "Gualeguay", com gozosa musicalidade, o teatro íntimo da memória, evocando personagens, lugares e coisas, levadas e trazidas pelo rio do tempo que parece modelar o ritmo dos versos numa sábia deriva ao mesmo tempo cívica e familiar, erudita e empírica, realista e metafísica, mística e política.
Não por acaso, Mastronardi recorda Dante ao comentar o poema, com prematura lucidez: "A liberdade e a modéstia parecem ser as linhas vertebrais deste ótimo trabalho. Mas acho que devo ser mais explícito: digo "liberdade" porque acho que você deixa fluir, de um jeito solto e espontâneo, seu mundo íntimo, suas lembranças mais firmes, sua dadivosa subjetividade. E falo em "modéstia" porque as pessoas e os fatos que você finamente convoca vêm a ser, já reunidos, como uma secreta identidade da alma".
Esse magnífico poema é a porta maior que permite entrar no universo orticiano, que integra o outro, mas, ao mesmo tempo, por meio de uma transposição sutil em que se vislumbram certos vestígios barrocos, ao repertoriá-lo com minúcia e lucidez, também o engloba e o transcende. Longe do estardalhaço pretensamente iconoclasta, a poesia de Juan L. Ortiz, penetrando "até os tecidos mais secretos do silêncio" (versos 183-4), vai além da mera gesticulação mundana dada a derrubar velhos ídolos retóricos para pôr outros em seu lugar. Como toda grande poesia, destrói, pulveriza a aparência e, depois dessa necessária demolição, lança os restos do mundo na moenda da língua para depois não apenas o reconstruir, mas também, conferindo-lhe uma nova evidência, o redimir e o regenerar.


Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.


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