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Brasília Barroca
Em visita à nova capital do país, Moravia a vê, de cima, como "um monte de bifes ensaguentados" estendido sobre o Planalto Central e, de baixo, como uma mescla de faroeste e civilização abstrata
Em Brasília, estamos
diante de uma explosão
barroca mascarada
de funcionalismo
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René Burri/ Divulgação
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Família de operário que trabalhou na construção de Brasília visita a praça dos Três Poderes, em 1960 |
ALBERTO MORAVIA
Olhando do avião, o
lugar onde está
Brasília, situada,
como se fosse por
acaso, entre as infinitas ondulações horizontais
do planalto (mas parece que,
após cálculos muito precisos,
este lugar foi escolhido por ser
o mais central do Brasil), leva a
pensar em um monte de bifes
ensanguentados expostos no
balcão de um açougueiro.
Formas quadradas mais ou
menos vermelhas de acordo
com a época mais ou menos recente das escavações de terra
revelam as áreas destinadas à
construção dos edifícios, que
foram arrancadas da vegetação
tropical.
O avião demora a aterrissar
porque a pista não está livre, o
que é frequente neste país com
poucas estradas e poucas ferrovias, mas de aeroportos congestionados; e plana várias vezes sobre Brasília.
Coração de concreto
Eis a chamada cidade livre,
um turbilhão de pequenos retângulos, ou melhor, de barracões, alinhados ao longo de
uma rua enorme: como no "Far
West", na época da febre do ouro, aqui se aglomeram os comerciantes que chegam aos
montes de todos os lugares (é
ouro, porém, o que o Estado
brasileiro gasta em Brasília).
Eis, em pé aqui e ali, tal qual
peças de dominó desordenadas, os ainda raros edifícios; eis
a meia-lua azul do lago artificial
entre o tom avermelhado de
sangue das escavações e o amarelado da vegetação.
Eis as complicadas aortas
pretas deste coração de cimento, melhor dizendo, o sistema
viário planejado por Lucio Costa, o mais moderno do mundo,
pelo que parece; eis, em volta
de Brasília, o crescimento danoso e ingrato da mata, que, como sabemos, se prolonga por
milhares de quilômetros, em
meio aos quais a cidade caiu como um meteoro em chamas,
sacrificando a terra árida com
sangue.
Do alto, a vontade que deu
origem a Brasília vem à tona
com clareza: criar uma capital
abstrata para um país enorme
cuja unidade também é um milagre de abstração linguística e
étnica; penetrar com a força do
Estado no interior selvagem do
Brasil, depois que as incursões
individuais não deram grandes
resultados; arrancar a classe dirigente brasileira das cidades
costeiras preguiçosas e barrocas e obrigá-la a retomar com
os meios modernos a marcha
dos antigos colonizadores em
direção ao interior.
Brasília, capital burocrática,
como Ancara [Turquia], como
Washington, como Canberra
[Austrália], saberá ela ser mais
vivaz que essas cidades construídas pela força da vontade?
Acreditamos que sim, se não
for por outro motivo, porque,
como dissemos, a ambição de
Brasília é dupla: não apenas se
tornar a capital do país, mas
também assumir a função de
trampolim para a colonização e
a civilização dos vastíssimos
territórios do noroeste e do
Nordeste.
Lilliput
O carro corre agora por uma
grande rua asfaltada de largura
imensurável entre duas faixas
de uma mata amarelada e contorcida que parece sofrer por
existir, em direção ao céu azul
vazio.
Eis então surgirem lentamente no horizonte duas torres, ou melhor, dois retângulos
estreitos e altíssimos, ligados
por uma ponte, semelhantes às
lentes de um binóculo gigantesco. É o edifício do governo [o
Congresso Nacional], construído, como toda Brasília, segundo
os projetos de Oscar Niemeyer,
o arquiteto genial que teve a
sorte de receber a encomenda
não de um edifício ou de um
conjunto de edifícios, mas de
uma capital inteira.
As duas torres sobem, sobem,
repletas de centenas de janelas;
no final, abaixo delas surge um
longo edifício horizontal sobre
o qual pousam duas frigideiras
enormes de cimento amarelado, uma virada para baixo e a
outra virada para cima.
Por um momento os olhos
não acreditam no que veem,
uma vez que, enquanto até um
arranha-céu altíssimo é aceitável justamente porque é geométrico, a naturalidade de uma
sopeira que parece ser feita para o apetite de um gigante tem
alguma coisa de alucinante.
E, de fato, por um instante
sentimos que somos como os
minúsculos habitantes de Lilliput e quase involuntariamente
procuramos no céu vazio a forma ameaçadora de um novo
Gulliver.
Não há gigantes; mas a impressão de gigantismo arquitetônico e, portanto, de esmagamento e aniquilação da figura
humana permanece e se afirma
durante toda a visita.
Brasília foi construída por
vontade de Kubitschek, que é
um presidente democrático,
para um Brasil democrático.
Mas a observação daqueles
edifícios que se elevam como
torres no meio de enormes espaços vazios faz pensar em lugares e monumentos de antigas
autocracias, por exemplo em
Persépolis, que tinha suas colunas gigantescas em frente a
uma planície não muito diferente daquela de Brasília.
A atmosfera ditatorial é, por
outro lado, confirmada pela solidão metafísica dos lagos de asfalto em que surgem os edifícios. Essas solidões urbanas antecipadas nas perspectivas surrealistas de De Chirico e Salvador Dalí expressam muito bem
o sentido de mistério e desorientação que o homem moderno sente diante dos poderes
que o governam.
Mas talvez sejam impressões
precipitadas, porque em Brasília as coisas foram feitas ao contrário: outrora surgiam inicialmente as casas de moradia, depois vinham os edifícios monumentais; em Brasília se começou com estes últimos; as casas
de moradia serão construídas
no futuro.
Antes de qualquer outra coisa, o Brasil é um país de arquitetos e Brasília é, antes de tudo,
um experimento arquitetônico. Mas, para entender Brasília,
é preciso, em nossa opinião, referir-se ao Brasil colonial da
Bahia e das outras cidades barrocas do litoral.
É bom que se fique sabendo,
a relação não é formal e estilística, mas sim psicológica.
Ao barroco delirante das
igrejas coloniais corresponde
de fato, no sentido psicológico,
o gigantismo não menos exaltado de Brasília.
Orgulho de conquistador
Fica claro que estamos diante de uma explosão barroca
mascarada de funcionalismo.
Tomemos como exemplo o já
descrito edifício do governo: a
altura imensurável das duas
torres encostadas de tal forma a
não permitir que as janelas de
dentro tenham nem sol e nem
vista; a naturalidade extravagante das frigideiras gigantescas pousadas no terraço do edifício horizontal; a imensa ponte
inclinada que leva do espaço
para esse terraço, ou seja, a absolutamente nada, e que não
tem outra função que não seja a
decorativa -tudo induz a uma
concepção grandiloquente,
embora expressa com uma linguagem moderna.
Na verdade, houve aqui um
toque de orgulho exatamente
como em certas cidades da Antiguidade fundadas depois de
uma conquista cruel. O orgulho
de um país novo que, pela segunda vez na sua história, prepara-se para partir à conquista
de si mesmo.
De resto, a confirmação da
ambição especialmente monumental de Brasília está no interior desses prédios grandiosos
que com muita frequência desiludem pelo conjunto e convencionalismo das soluções; é quase como se o entusiasmo da celebração tenha se esgotado nas
principais estruturas, e não tenha havido a preocupação de
cuidar dos detalhes.
À originalidade sedutora das
fachadas não corresponde uma
originalidade semelhante atrás
das fachadas: salas sinuosas e
imensas a perder de vista, com
tetos excessivamente baixos,
pontilhadas de robustas colunas cilíndricas que trazem saudades das tradicionais divisões
de paredes e portas; escadas
largas e sem balaústre, que levam do primeiro ao segundo
andar sem nenhuma graça, tal
como nas grandes lojas e nas
docas; principalmente cimento
armado em todos os lugares,
mesmo no revestimento e na
decoração, onde se esperaria o
uso de materiais mais bonitos e
de mais prestígio.
Em resumo, o edifício tão corajoso por fora se revela preguiçoso e apressado por dentro. Não
é possível negar que o julgamento aqui também é precipitado
porque o edifício ainda não recebeu seus últimos retoques. [...]
Desumanidade
O pôr-do-sol nos surpreende,
ao final da visita apressada a
Brasília, de forma repentina e
traidora.
Um momento antes o sol enchia com sua luz vital as grandes ruas asfaltadas e desertas,
as escavações de coloração sanguínea, a vegetação poeirenta;
um momento depois, eis que a
sombra da noite retira aquela
vitalidade do ar que escurece, e
improvisadamente, enquanto
nos dirigimos para o aeroporto,
ultrapassados e seguidos por
numerosos caminhões abarrotados de operários que voltam
dos canteiros de obras, a atmosfera à nossa volta torna-se
estrangeira e hostil.
A vegetação tropical que havíamos esquecido visitando os
edifícios racionais da cidade
aparece novamente, amarelada
e decrépita, atrás da tatuagem
roxa de algumas placas de ruas
em néon.
As miríades de lâmpadas
brancas que se distanciam na
noite parecem penetrar em
uma escuridão sem fim.
E de repente sente-se a falta,
em meio a tanta monumentalidade dos edifícios estatais e
tanta leveza nos asfaltos, das
casas humildes e das ruas humildes que em outros lugares
são o testemunho da presença
de uma humanidade talvez
pouco ambiciosa, mas fiel e
enraizada.
Assim, depois da visita, Brasília reaparece como a havíamos imaginado do avião ao chegar: um ato de coragem pioneiro; o símbolo de uma vontade
de conquista; a demonstração
de uma possibilidade de longo
prazo. À luz desta reflexão, o gigantismo de Brasília parece ter
uma explicação; como o barroco das igrejas construídas nas
cidades do litoral pelos primeiros colonizadores.
A íntegra deste texto foi publicada no "Corriere
della Sera" em 28 de agosto de 1960.
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