São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2001 |
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+ brasil 501 d.C. A questão do socialismo
José Arthur Giannotti
Não há como sair dessas aporias sem que se recorra às práticas a que essas idéias, essas opiniões, estão ligadas. E no caso importam sobretudo as práticas políticas. Vou admitir que a ação precede o pensamento, mas não é por isso que devo desde logo tomá-lo como consciência falsa ou verdadeira do que está acontecendo. Não seria melhor suspeitar de que a verdade estaria na ponta de um processo de ajuste? Dessa perspectiva cabe considerar as idéias daqueles que se identificam com socialistas conforme as práticas em que se envolvem, vale dizer, conforme o uso que fizeram no curso de sua história. A Primeira Internacional Visto que me é impossível acompanhar passo a passo esse curso, devo lançar mão de um expediente. Lembro que uma idéia política começa a ser prática quando consegue reunir pessoas num mesmo projeto. Em nome do socialismo se formaram clubes, ligas e tantas outras instituições postas a serviço de seu ideal, mas sobretudo revoluções foram feitas em seu nome. Não seria possível então selecionar em certos eventos signos relevantes, em vista dos quais os elementos do campo semântico prático da palavra "socialismo" passem a girar? Não seriam eles os marcos da inteligibilidade do fenômeno? O primeiro deles me parece ser a fundação da Primeira Internacional, em 1864, com sede em Londres, que vem a ser o mais abrangente ponto de referência dos movimentos operários. Dessa data até a sua morte, em 1876, está presente nos mais importantes movimentos revolucionários da Europa, infiltrando-se pela América e pela Ásia. Consiste numa federação das mais diversas associações operárias que se comprometem com os princípios enunciados em seu estatuto. Seu artigo primeiro reza: "A associação se estabelece para criar um ponto central de ligação e de colaboração entre as sociedades operárias existentes nos diferentes países e aspirando ao mesmo objetivo, a saber, a proteção, o progresso e a completa emancipação da classe operária". Mas quais os meios adequados para emancipar essa classe? Essa pergunta estrategicamente fica fora do estatuto, que não poderia ser aceito se optasse pela conquista ou abolição do poder político. Do ponto de vista das opiniões, a Internacional é uma torre de Babel. Nela acodem remanescentes do movimento cartista inglês, adeptos de Owen, Blanqui, Cabet, Proudhon, Mazzini e outros. No início a influência de Marx é muito pequena, mas à medida que cresce, que consegue maioria no seu projeto de propor aos movimentos operários a conquista do poder político, já montado pela burguesia, para que possa ser utilizado pelo proletariado, aumenta o atrito com os anarquistas, adeptos da destruição completa desse poder. Essa discórdia chega ao ápice na luta contra Mikhail Bakunin. Esse revolucionário russo, laureado por suas prisões e por suas aventuras, aglutina aqueles que viam na volúpia da destruição o primeiro ato para criar a nova sociedade, aquela da abundância e da liberdade. Não é possível comparar a riqueza do pensamento de Marx com as idéias confusas e generosas de Bakunin. No entanto, nessa primeira fase do socialismo militante, o peso político de ambos se equipara. Por volta de 1870, mesmo depois de publicado o primeiro volume de sua obra gigantesca, "O Capital", Marx permanece praticamente desconhecido do grande público, principalmente inglês, a despeito de ele estar morando em Londres depois de vários anos. É à Comuna de Paris, de 1871, que ele deve o início de seu prestígio. A ela adere com muitas restrições, mas termina sendo colocado no furacão do debate sobre a maneira pela qual a classe operária deveria se comportar diante da política representativa burguesa. Logo depois elabora a tese da ditadura do proletariado e conforma as bases do que viria a ser a linha predominante da política comunista dos anos posteriores. Mas é de Pirro a vitória política que obtém sobre os anarquistas, pois, se consegue expulsar Bakunin da "Internacional", provoca sua destruição. Mas a intensidade desse conflito serve para soldar as mais variadas visões do que poderia ser um regime socialista, na medida em que passam a ser consideradas em relação às propostas em conflito. Este é tão forte que desenha uma contradição, sendo que a vitória de uma das partes implicava o aniquilamento da outra. É de notar, porém, que a radical oposição dos meios e dos caminhos, se por certo continua visando a substituir a política pela administração racional das coisas, acaba esvaziando esse ideal, na medida em que o põe como algo indiferente aos processos de sua efetivação. Sob esse aspecto, marxismo e anarquismo são manifestações diferentes, mas complementares, da mesma negação da política como fenômeno social dotado de regras próprias. A despeito de abrigar uma contradição que termina, como veremos em outros artigos, colocando em xeque a própria idéia de socialismo, a luta entre marxistas e anarquistas passa a redefinir o sentido das diversas teses socialistas. São pensadas sobretudo segundo a maneira pela qual se posicionam em relação a cada um dos pólos. Desse modo, o socialismo vem a ser, nesse seu primeiro momento, uma técnica que, visando a criar uma sociedade de iguais, tende a negar o Estado burguês. Se faz política, é para se negar como tal, desconhecendo as regras do funcionamento do poder. Essa negação do socialismo como política, concebida então como o purgatório do paraíso da abundância, permite que autores se identifiquem ou sejam identificados como socialistas, sem que seja questionada a natureza de suas práticas sociais. Cito dois exemplos.
Posição estética Em 1895, Oscar Wilde escreve o ensaio "The Soul of Man under Socialism" (A Alma do Homem sob o Socialismo), em que acusa a propriedade privada, moral e injusta, de ser responsável pelas misérias do mundo. Sua abolição permitiria ao Estado ocupar-se com o que vem a ser útil e ao indivíduo criar o que é belo, desenvolver a plenitude de suas potências. Mas essa estetização do individualismo depende do agitador, da ação corrosiva de personagens capazes de fazer ressaltar o lado infantil da humanidade, sua perfectibilidade que vai além da rebelião e almeja a paz da beleza. Trata-se, como já se percebe, de uma posição estética diante do mundo que abomina a política como tal. Outro exemplo. Haveria maior inimigo do socialismo do que Nietzsche? Não combate ele o espírito de rebanho? No texto 473 de "Humano, Demasiado Humano", escreve: "O socialismo é o fantasioso irmão mais jovem do quase decrépito despotismo, do qual quer ser herdeiro; suas aspirações são, portanto, no sentido mais profundo, reacionárias". No entanto, quando Rubens Rodrigues Filho traduz, para a coleção "Os Pensadores", textos de Nietzsche, excelentemente selecionados por Gérard Lebrun, acrescenta, refletindo o espírito da época (1974), um artigo do jovem Antonio Candido de Mello e Souza. Nele o conselho nietzschiano "obtém a ti mesmo", que Gide põe na boca do velho Egeu se dirigindo a seu filho Teseu, serve de mote para demonstrar o lado socialista da proposta de transmudar todos os valores, a importância da figura do Peregrino, viajante sem rumo final, para recortar o figurino do homem novo vislumbrado pelo socialismo. A crítica ao espírito de rebanho fica obnubilada pela exaltação da individualidade autônoma que há de se colocar acima do bem e do mal. O que valem essas reafirmações de socialismo? O esteticismo de Wilde está ligado a uma prática muito distante da Primeira Internacional, pois está na linhagem da "fabian society", onde militam G.B. Shaw e S. Webb; a republicação do texto de Antonio Candido, ao clima pós-68. O que interessa, todavia, é mostrar como a significação da palavra "socialismo" altera seu aspecto conforme se liga a uma prática política determinada. Mas essa mudança de significado está sempre em estreita correlação com a maneira pela qual o próprio movimento pensa sua relação com a política. Não é isso que a joga numa contradição sangrenta? Se marxismo e anarquismo forem apenas aproximados em vista de seus ideais libertários, da antevisão do homem pleno que superou a divisão do trabalho, se perde a radical oposição dos meios propostos para atingir o limite da humanidade alienada. Mas não é a diferença desse caminhar que dá sentido diverso a um mesmo ideal cujo conteúdo religioso é evidente? Não foi essa diferença que terminou destruindo a primeira associação internacional dos trabalhadores? Retirando as lições dessa história, cabe então esmiuçar as diferentes concepções de política tendo em vista as práticas que desencadeiam. E essas concepções se colam em vista de dois pólos, de um lado, aquele que propõe a ditadura do proletariado, a abolição dos processos intermediários de representação, a superação da democracia burguesa; de outro, aquele que pretende destruir qualquer instância autônoma de poder. Ambos os lados, contudo, são levados pela mesma negação de qualquer política democrática ancorada num debate capaz de conduzir os adversários a uma identidade posta pela razão. Que sentido pode adquirir então o socialismo moderno quando se declara radicalmente democrático? José Arthur Giannotti é filósofo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), autor, entre outros, de "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!. Texto Anterior: Arnold Schoenberg: A consciência da música Próximo Texto: + sociedade: Bons ventos te tragam, século 21 Índice |
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