São Paulo, domingo, 25 de fevereiro de 2001

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A questão do socialismo

José Arthur Giannotti

O capitalismo avança por duas frentes: de um lado, modifica profundamente as relações do homem com a natureza, gerando extraordinário acúmulo de riqueza social; de outro, reparte mal essa riqueza, sendo incapaz de lidar com as injustiças sociais. Mesmo se for aceita a tese de que não cria miséria, os dados são suficientes para mostrar que não diminui a distância entre ricos e pobres. Como interpretar esse fato, matriz da demanda por uma justiça social?
Simplesmente se pode afirmar que se trata de uma fase inicial do processo de fazer crescer o bolo para melhor reparti-lo posteriormente. Não há dados comprovando essa tendência, pelo contrário, nunca houve no mundo tanta riqueza ao lado de tanta miséria. A dificuldade reside em juntar esses dois aspectos na mesma interpretação. Vamos supor que bastasse garantir a livre concorrência de mercados cada vez mais complexos para que se configurasse a tendência de melhor repartir a riqueza criada. Não haveria, porém, meios de computá-la. Segundo o famoso teorema de Arrow-Debreu, sob certas condições razoáveis, todo mercado tende a formar preços de equilíbrio, mas com o tempo diminui a informação que o modelo fornece para calcular os novos preços equilibrados. Em suma, aumenta o número de passos indecidíveis. Mas, se o aumento do grau de indeterminação de um sistema faz crescer seus pontos indecidíveis, como esperar que os agentes operando em mercados cada vez mais complexos possam sozinhos contribuir para uma melhor distribuição de renda?
Esse resultado parece indicar que o problema da justiça social não pode ser colocado nesse nível, não pode ser equacionado por agentes racionais operando exclusivamente no espaço do mercado econômico.

Sair do imbróglio Uma maneira de sair astuciosamente desse imbróglio é apelar para uma espécie de mercado político, de sorte que a mesma forma racional de agir do homem econômico passaria a ter vigência no plano da política, onde se colocaria então o desafio de distribuir a riqueza social de maneira mais justa. Note-se, porém, que esse ponto de vista, se na verdade dá ênfase a um mercado independente e lhe atribui certo tipo de racionalidade a ser expandida para o resto dos fenômenos sociais, não o percebe como fenômeno econômico-político, ligado a uma forma historicamente datada de produção, instalando uma nova esfera social autônoma entre as unidades produtivas e o Estado. A essa esfera intermediária, a sociedade civil-burguesa, foi atribuída uma autonomia que tanto fascinou pensadores do século 19. E sem ela, sem o pressuposto do capital como uma espécie de organismo funcionando por si mesmo, os projetos socialistas se resumiriam a falsas opiniões, a construções imaginárias sem nenhuma referência ao real.
No entanto esses projetos serviram para instigar e coordenar movimentos revolucionários, criando fatos novos, interferindo no curso dos processos econômicos. Postos como simples opiniões, idéias expressas em textos e discursos, se apresentam sob os mais diversos aspectos. O historiador de idéias pode traçar o panorama de suas semelhanças e diferenças, de suas alianças e de seus conflitos. Nada mais faz, no entanto, do que mapear opiniões. O historiador materialista, por sua vez, trata de ligar o perfil dessas idéias a determinados interesses, mostrar como os anarquistas representam anseios da pequena burguesia, enquanto os bolcheviques, aqueles do proletariado. Mas para isso precisa de uma lupa que revele a identidade de cada grupo de interesse como uma coisa social em si, antes de ser contaminada pela prática de seus representantes.
A ciência foi entendida como esse instrumento a que cada grupo político apela na luta ideológica contra seu opositor. O socialista científico aponta o lado utópico do pensamento de seus adversários, mas estes também retrucam na mesma moeda. Rotular uma tese de científica serve para desqualificar de anticientífica a posição adversa. É inegável que dentre eles Marx é quem mais contribuiu para o desenvolvimento da teoria econômica de nossos dias. Em relação a ele Proudhon, um dos maiores precursores do anarquismo, parece um anão. Mas, por sua vez, a economia contemporânea recusa como pura metafísica as teses econômicas que serviram para Marx coordenar sua atividade política. Descarta o lado crítico dessas categorias porque deixam de ser mensuráveis segundo os preceitos do método científico de nossos dias. Mas em política nada impede de acusar de burguesa e limitada a ciência dos países dominantes. Não é o que fizeram os soviéticos por tanto tempo?


Quando marxismo e anarquismo são aproximados em vista de seus ideais libertários, se perde a radical oposição dos meios propostos para atingir o limite da humanidade alienada; mas não é a diferença desse caminhar que dá sentido diverso a um mesmo ideal cujo conteúdo religioso é evidente?


Não há como sair dessas aporias sem que se recorra às práticas a que essas idéias, essas opiniões, estão ligadas. E no caso importam sobretudo as práticas políticas. Vou admitir que a ação precede o pensamento, mas não é por isso que devo desde logo tomá-lo como consciência falsa ou verdadeira do que está acontecendo. Não seria melhor suspeitar de que a verdade estaria na ponta de um processo de ajuste? Dessa perspectiva cabe considerar as idéias daqueles que se identificam com socialistas conforme as práticas em que se envolvem, vale dizer, conforme o uso que fizeram no curso de sua história. A Primeira Internacional Visto que me é impossível acompanhar passo a passo esse curso, devo lançar mão de um expediente. Lembro que uma idéia política começa a ser prática quando consegue reunir pessoas num mesmo projeto. Em nome do socialismo se formaram clubes, ligas e tantas outras instituições postas a serviço de seu ideal, mas sobretudo revoluções foram feitas em seu nome. Não seria possível então selecionar em certos eventos signos relevantes, em vista dos quais os elementos do campo semântico prático da palavra "socialismo" passem a girar? Não seriam eles os marcos da inteligibilidade do fenômeno?
O primeiro deles me parece ser a fundação da Primeira Internacional, em 1864, com sede em Londres, que vem a ser o mais abrangente ponto de referência dos movimentos operários. Dessa data até a sua morte, em 1876, está presente nos mais importantes movimentos revolucionários da Europa, infiltrando-se pela América e pela Ásia. Consiste numa federação das mais diversas associações operárias que se comprometem com os princípios enunciados em seu estatuto. Seu artigo primeiro reza: "A associação se estabelece para criar um ponto central de ligação e de colaboração entre as sociedades operárias existentes nos diferentes países e aspirando ao mesmo objetivo, a saber, a proteção, o progresso e a completa emancipação da classe operária". Mas quais os meios adequados para emancipar essa classe? Essa pergunta estrategicamente fica fora do estatuto, que não poderia ser aceito se optasse pela conquista ou abolição do poder político.
Do ponto de vista das opiniões, a Internacional é uma torre de Babel. Nela acodem remanescentes do movimento cartista inglês, adeptos de Owen, Blanqui, Cabet, Proudhon, Mazzini e outros. No início a influência de Marx é muito pequena, mas à medida que cresce, que consegue maioria no seu projeto de propor aos movimentos operários a conquista do poder político, já montado pela burguesia, para que possa ser utilizado pelo proletariado, aumenta o atrito com os anarquistas, adeptos da destruição completa desse poder. Essa discórdia chega ao ápice na luta contra Mikhail Bakunin. Esse revolucionário russo, laureado por suas prisões e por suas aventuras, aglutina aqueles que viam na volúpia da destruição o primeiro ato para criar a nova sociedade, aquela da abundância e da liberdade.
Não é possível comparar a riqueza do pensamento de Marx com as idéias confusas e generosas de Bakunin. No entanto, nessa primeira fase do socialismo militante, o peso político de ambos se equipara. Por volta de 1870, mesmo depois de publicado o primeiro volume de sua obra gigantesca, "O Capital", Marx permanece praticamente desconhecido do grande público, principalmente inglês, a despeito de ele estar morando em Londres depois de vários anos. É à Comuna de Paris, de 1871, que ele deve o início de seu prestígio. A ela adere com muitas restrições, mas termina sendo colocado no furacão do debate sobre a maneira pela qual a classe operária deveria se comportar diante da política representativa burguesa. Logo depois elabora a tese da ditadura do proletariado e conforma as bases do que viria a ser a linha predominante da política comunista dos anos posteriores.
Mas é de Pirro a vitória política que obtém sobre os anarquistas, pois, se consegue expulsar Bakunin da "Internacional", provoca sua destruição. Mas a intensidade desse conflito serve para soldar as mais variadas visões do que poderia ser um regime socialista, na medida em que passam a ser consideradas em relação às propostas em conflito. Este é tão forte que desenha uma contradição, sendo que a vitória de uma das partes implicava o aniquilamento da outra. É de notar, porém, que a radical oposição dos meios e dos caminhos, se por certo continua visando a substituir a política pela administração racional das coisas, acaba esvaziando esse ideal, na medida em que o põe como algo indiferente aos processos de sua efetivação. Sob esse aspecto, marxismo e anarquismo são manifestações diferentes, mas complementares, da mesma negação da política como fenômeno social dotado de regras próprias.
A despeito de abrigar uma contradição que termina, como veremos em outros artigos, colocando em xeque a própria idéia de socialismo, a luta entre marxistas e anarquistas passa a redefinir o sentido das diversas teses socialistas. São pensadas sobretudo segundo a maneira pela qual se posicionam em relação a cada um dos pólos. Desse modo, o socialismo vem a ser, nesse seu primeiro momento, uma técnica que, visando a criar uma sociedade de iguais, tende a negar o Estado burguês. Se faz política, é para se negar como tal, desconhecendo as regras do funcionamento do poder. Essa negação do socialismo como política, concebida então como o purgatório do paraíso da abundância, permite que autores se identifiquem ou sejam identificados como socialistas, sem que seja questionada a natureza de suas práticas sociais. Cito dois exemplos.

Sem o pressuposto do capital como uma espécie de organismo funcionando por si mesmo, os projetos socialistas se resumiriam a falsas opiniões, a construções imaginárias sem nenhuma referência ao real


Posição estética Em 1895, Oscar Wilde escreve o ensaio "The Soul of Man under Socialism" (A Alma do Homem sob o Socialismo), em que acusa a propriedade privada, moral e injusta, de ser responsável pelas misérias do mundo. Sua abolição permitiria ao Estado ocupar-se com o que vem a ser útil e ao indivíduo criar o que é belo, desenvolver a plenitude de suas potências. Mas essa estetização do individualismo depende do agitador, da ação corrosiva de personagens capazes de fazer ressaltar o lado infantil da humanidade, sua perfectibilidade que vai além da rebelião e almeja a paz da beleza. Trata-se, como já se percebe, de uma posição estética diante do mundo que abomina a política como tal.
Outro exemplo. Haveria maior inimigo do socialismo do que Nietzsche? Não combate ele o espírito de rebanho? No texto 473 de "Humano, Demasiado Humano", escreve: "O socialismo é o fantasioso irmão mais jovem do quase decrépito despotismo, do qual quer ser herdeiro; suas aspirações são, portanto, no sentido mais profundo, reacionárias". No entanto, quando Rubens Rodrigues Filho traduz, para a coleção "Os Pensadores", textos de Nietzsche, excelentemente selecionados por Gérard Lebrun, acrescenta, refletindo o espírito da época (1974), um artigo do jovem Antonio Candido de Mello e Souza. Nele o conselho nietzschiano "obtém a ti mesmo", que Gide põe na boca do velho Egeu se dirigindo a seu filho Teseu, serve de mote para demonstrar o lado socialista da proposta de transmudar todos os valores, a importância da figura do Peregrino, viajante sem rumo final, para recortar o figurino do homem novo vislumbrado pelo socialismo. A crítica ao espírito de rebanho fica obnubilada pela exaltação da individualidade autônoma que há de se colocar acima do bem e do mal.
O que valem essas reafirmações de socialismo? O esteticismo de Wilde está ligado a uma prática muito distante da Primeira Internacional, pois está na linhagem da "fabian society", onde militam G.B. Shaw e S. Webb; a republicação do texto de Antonio Candido, ao clima pós-68. O que interessa, todavia, é mostrar como a significação da palavra "socialismo" altera seu aspecto conforme se liga a uma prática política determinada. Mas essa mudança de significado está sempre em estreita correlação com a maneira pela qual o próprio movimento pensa sua relação com a política. Não é isso que a joga numa contradição sangrenta? Se marxismo e anarquismo forem apenas aproximados em vista de seus ideais libertários, da antevisão do homem pleno que superou a divisão do trabalho, se perde a radical oposição dos meios propostos para atingir o limite da humanidade alienada.
Mas não é a diferença desse caminhar que dá sentido diverso a um mesmo ideal cujo conteúdo religioso é evidente? Não foi essa diferença que terminou destruindo a primeira associação internacional dos trabalhadores?
Retirando as lições dessa história, cabe então esmiuçar as diferentes concepções de política tendo em vista as práticas que desencadeiam. E essas concepções se colam em vista de dois pólos, de um lado, aquele que propõe a ditadura do proletariado, a abolição dos processos intermediários de representação, a superação da democracia burguesa; de outro, aquele que pretende destruir qualquer instância autônoma de poder. Ambos os lados, contudo, são levados pela mesma negação de qualquer política democrática ancorada num debate capaz de conduzir os adversários a uma identidade posta pela razão. Que sentido pode adquirir então o socialismo moderno quando se declara radicalmente democrático?

José Arthur Giannotti é filósofo, professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e presidente do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), autor, entre outros, de "Certa Herança Marxista" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 501 d.C.", do Mais!.



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