São Paulo, domingo, 25 de março de 2001

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A anatomia e seu destino

por Maria Rita Kehl

Uma das características mais marcantes da subjetividade criada pelos chamados tempos modernos, período cujas origens remontam ao Renascimento, consolida-se depois das revoluções burguesas do final do século 18 e persiste ainda, em sua forma "pós", em nosso século 21: é o enorme vazio instalado no lugar do ser. O que pode dizer com segurança o sujeito moderno a respeito do que ele é? Quase nada, além da meia dúzia de palavras gravada em sua carteira de identidade: que nasceu de tais pai e mãe, possui um corpo com alguns traços externos identificáveis (até prova em contrário), como cor da pele, olhos e cabelos além de um atributo cujo suporte nos parece garantido pela anatomia e que no documento responde pelo nome de sexo: masculino, feminino. Filiação, corporeidade, sexuação: eis tudo o que podemos afirmar relativo ao ser, numa sociedade que eliminou ou superou todas as outras marcas que diferenciavam as pessoas umas das outras.
Atributos como "sangue", casta, posição na ordem familiar, profissão transmitida de pai para filho ao longo das gerações etc. perdem consistência ontológica com a mobilidade de classes estabelecida pelo capitalismo; do mesmo modo as certezas conferidas pelo reconhecimento da comunidade em que as pessoas passavam suas vidas, as certezas morais e cognitivas transmitidas pela tradição, a segurança de um destino preestabelecido pelo projeto de um Deus onisciente, todas elas se desmancham rapidamente no ar das sociedades industriais, laicas, urbanas modernas, enfim.
Onde falta o ser proliferam os discursos. O homem moderno é um pesquisador minucioso das coisas humanas e um autor compulsivo de sua própria biografia. Confessa-se, descreve-se, explica-se, tenta fixar em palavras faladas ou escritas a permanente incerteza sobre quem ele é. O ser não nos é dado; o ser se constrói ao longo da vida. Construir o ser é constituir diferenças. A diferença entre homens e mulheres, objeto de investigações filosóficas desde a Antiguidade, foi investida de uma enorme quantidade de saberes que procuravam encontrar na natureza dos gêneros alguma espécie de verdade sobre o ser.
Porém, como escreve Thomas Laqueur, é impossível assentar o discurso das diferenças sexuais sobre uma certeza ontológica. A produção incessante de saberes em busca de estabelecer o que é que faz de nós homens ou mulheres atesta a fragilidade da "natureza" da diferença sexual, além de manter em aberto a questão de saber se essa diferença pode ser estabelecida com base nas funções procriativas dos machos e das fêmeas.

Suposta diferença
Mas é na anatomia e na fisiologia -"fatos" da natureza, afinal- que se tenta fundamentar uma suposta diferença segura e estável entre homens e mulheres. Desde a diferença aristotélica dos princípios masculino e feminino até a "anatomia é destino" do moderníssimo Freud, busca-se nos corpos as evidências de uma diferenciação que, no entanto, ao longo da história e nas diversas culturas humanas, assume os desenhos mais variados.
No curso das invenções da diferença sexual catalogadas por Laqueur desde a Grécia clássica, o período da consolidação da cultura burguesa, entre o final do século 18 e o início do 20, surge como uma curiosa exceção. É o único período na história do Ocidente em que se concebem os homens e as mulheres como portadores de duas sexualidades de naturezas diferentes. Até então, todas as teorias sobre as diferenças sexuais postulavam um sexo único que se manifestava de maneiras opostas e complementares nos corpos dos homens e das mulheres. O homem (atividade, calor) imprime forma à matéria fria e inerte oferecida pelo corpo da mulher, pensavam os gregos. Os ovários e a vagina das mulheres são o negativo imperfeito do pênis e dos testículos, diziam os anatomistas do Renascimento.
A teoria do sexo único justificava o poder masculino e a insignificância histórica das mulheres, limitadas, na vida pública e nas atividades do espírito, pelas tarefas da maternidade. Existe um sexo, o masculino, e seu complemento menos perfeito, porém necessário, o sexo feminino. No "pacote" das características sexuais primárias e secundárias, define-se o que seriam os homens e as mulheres, seu lugar na sociedade, os limites e o alcance de seus destinos pessoais.
Foi a Revolução Francesa, as reivindicações universais por igualdade e liberdade e a afirmação dos direitos iguais entre todos os humanos, homens e mulheres, que derrubaram num primeiro momento a hierarquia fundada sobre os discursos tradicionais a respeito das diferenças de gênero.
Em reação ao período de desordem revolucionária, a consolidação da ordem burguesa precisou produzir um pensamento que desse conta dos deslocamentos já realizados pelas mulheres no novo campo de forças sociais. O sexo, escreve Laqueur, "foi um importante campo de batalha da Revolução Francesa (...), a criação de uma esfera pública burguesa (...) levantou com violência a questão de qual sexo deveria ocupá-la. E em todo lugar a biologia entrava no discurso".


As poucas páginas que Laqueur dedica a Freud são insuficientes para dar conta da reviravolta que a psicanálise provocou


Novo estatuto masculino
Assim, no período em que uma parte da humanidade conheceu possibilidades de emancipação e progresso inusitadas, a ciência e a filosofia trabalharam para manter as mulheres atadas à natureza, enquanto os homens se beneficiavam de seu novo estatuto de seres de razão. No final do século 19, as ciências médicas e biológicas trabalham para atender a "demandas políticas imediatas para a criação de sexos biologicamente distintos", aos quais corresponderiam, é claro, lugares e papéis diferentes "por natureza". A mulher burguesa não só é mãe por vocação natural como tem seus desejos sexuais orientados e limitados pelas vicissitudes dessa função.
Mulheres vocacionadas para o casamento e a fidelidade, pouco interessadas nos prazeres sensuais e capazes de grandes sacrifícios pessoais em favor das necessidades alheias, essas eram as mães de família que a natureza deveria produzir, se nenhum fator patológico viesse desviá-las do projeto original.
Esse "fator patológico" foi a histeria, confusa manifestação de rebeldia das mulheres oitocentistas contra as limitações da condição feminina -uma forma de "feminismo espontâneo", na expressão que dá título ao livro de Emilce Dio Bleichmar. Escutando as histéricas, Freud começou a entender que havia um abismo entre a subjetividade das mulheres e a "natureza feminina" do pensamento iluminista.
As poucas páginas que Laqueur dedica a Freud, embora reconhecendo o brilho de seu pensamento, são insuficientes para dar conta da reviravolta que a psicanálise representou no pensamento ocidental.
É verdade que se pode interpretar o modelo freudiano da diferença sexual como uma volta ao modelo de sexo único anterior ao iluminismo: uma única energia, a libido, um único significante inconsciente para o desejo, o falo, constituindo subjetividades diferentes a partir da elaboração da mínima diferença inscrita nos corpos dos sujeitos. É verdade também que Freud, homem do século 19, pensou inicialmente que a cura da histeria consistiria em remeter as mulheres de volta aos ideais de feminilidade que seus sintomas insistiam em recusar.
Mas a psicanálise levou às últimas consequências a suposição de que o desejo e o prazer sexual são "cosa mentale", coisa mental, segundo a expressão de Leonardo da Vinci. A partir daí, todas as investigações que tentam fundar a diferença na anatomia se tornaram obsoletas. Homens e mulheres, diferenciados não em razão do real de seus corpos, mas por aquilo que se pode elaborar a partir deles, são sujeitos igualados em sua condição desejante, que se relacionam por meio do filtro de suas fantasias e jamais se complementam.
Pensar a diferença como não-complementar desata o nó que condicionava a sexuação às funções procriativas e faz reconhecer as mulheres como seres de linguagem e cultura. Em consequência, percebemos que a constituição dos chamados gêneros é efeito de práticas discursivas, independentes da anatomo-fisiologia do sexo. Com isso, a sexualidade começa a escapar da esfera dos saberes que, na modernidade, visavam a apoiar sobre o sexo uma verdade normatizadora do comportamento. No início de um novo milênio, a pergunta é: que outros discursos se produzirão, para que a sexualidade não seja capturada pelas leis do mercado?

Maria Rita Kehl é psicanalista e ensaísta, autora, entre outros, de "Deslocamentos do Feminino" (ed. Imago) e organizadora da coletânea "Função Fraterna" (ed. Relume-Dumará).


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