São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

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+ brasil 505 d.C.

A modernização da Turquia vista daqui

Transformação do Império Otomano em república no século 20, tendo como meta a abertura para o Ocidente, oferece paralelo estimulante com a história brasileira

Boris Fausto

Houve tempo em que a Turquia era uma referência mais constante do que se poderia imaginar na sociedade brasileira. Sultões e seus haréns povoavam a imaginação de muitos. "Turcos" eram chamados -e ainda hoje em certa medida são, não sem um toque depreciativo-, súditos do Império Otomano, que, na verdade, eram sírios e libaneses. Como em seus passaportes constava a nacionalidade "turca", turcos ficaram sendo.
Em um plano mais pragmático, como sabem os historiadores, surgiu nos primeiros anos do século 20 um movimento no Exército, cujos integrantes se intitularam "jovens turcos". Reunidos em torno de uma revista -"A Defesa Nacional", lançada em 1911-, tendo o apoio do marechal Hermes da Fonseca e inspirados na disciplina do Exército alemão, onde muitos deles foram fazer treinamento militar, os "turcos" pretendiam essencialmente modernizar o Exército e, indiretamente, o país. Entre eles, estavam figuras como Leitão de Carvalho, Bertholdo Klinger e o pai do general João Batista Figueiredo, o também general Euclides Figueiredo.
Mas por que esse rótulo de "jovens turcos"? Pela mocidade, é claro, mas também pela referência a um movimento militar no âmbito do Império Otomano que tinha como alvo colocar a Turquia em compasso com o mundo ocidental. Prova disso são as idéias que circulavam entre os oficiais, muitos deles interessados na história da Revolução Francesa e leitores de Rousseau, Montesquieu, Victor Hugo. Em 1908, o movimento forçou o velho sultão Abdulhamid a recolocar em vigor a Carta Constitucional de 1876 e a convocar o Parlamento. Um ano depois, diante de uma contra-revolução conservadora e clerical, os "jovens turcos" assumiram um papel de primeira plana, ao destituir o sultão e contribuir para colocar no trono Mehmed 5º.
Nesse Exército "sui generis", no contexto do Oriente Médio, vai se destacar, a partir da Primeira Guerra, a figura de Mustafá Kemal. Nascido em Salônica, na Grécia, em uma família turca de classe média, ele opta pela carreira militar e se destaca no curso do conflito, já como general. O Império Otomano, eterno rival da Rússia, perfila-se ao lado de outros dois impérios, o alemão e o austro-húngaro, e com eles sai derrotado da guerra, o que apressará sua desagregação.
Enquanto o sultanato, em Istambul, capitula diante das forças francesas e britânicas, além dos gregos, que ocupam parte do território turco, Kemal organiza a resistência no interior, situando seu quartel-general em Ancara -a futura capital-, então uma cidadezinha com menos de 20 mil habitantes. Um longo conflito opôs as tropas revoltosas aos ocupantes estrangeiros, e somente em 1922 os kemalistas vitoriosos entraram em Istambul.
O ano de 1923 será o do tratado de Lausanne, revendo as condições humilhantes do anterior tratado de Sèvres e de fundação da República turca, tendo Mustafá Kemal como seu primeiro presidente. Mustafá Kemal ganhou na Turquia o cognome de Kemal Ataturk, "Ataturk" significando, aproximadamente, "pai dos turcos". Ele e seu movimento foram responsáveis por um conjunto de medidas que deram ao país a fisionomia própria que ostenta nos dias de hoje, para bem e para mal.
Sua figura se converteu em ícone da independência nacional e em herói da modernização da Turquia. Reformador autoritário, a ele farão referência seus equivalentes doutrinários em outros países, inclusive no Brasil. Por exemplo, aparece em escritos e entrevistas do general Góes Monteiro, ao lado de outros personagens considerados admiráveis, como Lênin e Mussolini, incluído na salada de nomes que o general gostava de fazer. Em nível mais refinado, numa longa nota de "Sobrados e Mucambos", Gilberto Freyre insiste na valorização da cultura material e se refere à ação de Kemal, ao proibir os trajes orientais, como forma de simbolizar a ocidentalização do país e mudar sentimentos e idéias.
Nos últimos anos, historiadores da Turquia contemporânea têm tratado de demonstrar que o corte entre o Império Otomano e a República turca não é tão nítido quanto os construtores do mito kemaliano conseguiram implantar. A revisão faz sentido, mas desde que não se vá tão longe como as revisões costumam fazer. O império caracterizou-se por padrões de relativa tolerância religiosa, desde os tempos em que serviu de abrigo aos judeus perseguidos pela Inquisição. É verdade também que as reformas datavam já de fins do século 19 e do início do século 20. Entre elas, uma rede de escolas públicas e um aparelho judiciário a que foram atribuídas muitas competências dos tribunais religiosos.
Acrescente-se a isso que o contraste entre o velho império dos sultões e a Turquia moderna representou uma construção com propósitos políticos bem definidos. Estabelecer o contraste entre "velhos" e "novos" tempos é uma tendência generalizada dos movimentos revolucionários e, se quisermos um exemplo brasileiro, lembremos o corte ideológico entre a república oligárquica ou República Velha e a nova república ou, melhor dizendo, o governo chefiado por Getúlio Vargas, convertido este em guia paternal do povo brasileiro.
Não obstante é inegável o ímpeto autoritário-modernizador do regime kemalista. Entre 1925 e 1928, ordena-se o fechamento dos conventos; a interdição do uso do fez masculino e sua substituição pelo chapéu, do véu feminino e de vestimentas religiosas; adota-se o sistema horário e o calendário ocidental, o Código Civil suíço, os caracteres latinos na escrita. Uma revisão constitucional de abril de 1928 suprime os artigos dispondo que o islã é a religião do Estado turco.
As reformas não produziram o resultado desastroso que se verificaria no Irã, cerca de 50 anos depois. Comemorações e estátuas celebrando Ataturk se perpetuam na Turquia, o que não é pouco em uma época em que estátuas costumam ser derrubadas fragorosamente pelas multidões, na Rússia, no Iraque e em outras partes do mundo.
Mais do que isso, sem ignorar as violências de governos repressivos, as ações brutais contra os curdos, a Turquia tenta esboçar hoje uma convivência entre democracia e tolerância religiosa que convém acompanhar de perto.


Boris Fausto é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de, entre outros, "A Revolução de 30" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Brasil 505 d.C." (depois de Cabral).


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