São Paulo, domingo, 25 de abril de 2010

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+(L)ivros

Outrora agora

Em "O Pai, a Mãe e a Filha", Ana Luisa Escorel esquadrinha as memórias de infância e delineia um panorama da São Paulo dos anos 1940 e 1950

WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

A observação que Fernando Pessoa dedicou às areias movediças do passado vem à mente do leitor, ao notar como Ana Luisa Escorel joga com essa ambiguidade, equilibrando-se airosamente na corda bamba: "E eu era feliz? Não sei:/ Fui-o outrora agora."
Entretanto, entre memórias de infância e memórias de escritores, dois gêneros bem assentados, estas nada têm de ambíguas. O olhar da menina -assim nomeada- vai organizando e decifrando o mundo a partir de seu nicho, a casa, focalizando o entorno, os vizinhos, a malta mirim, os visitantes.
Contamos com uma tradição de admiráveis memórias de infância de escritores, como as de Graciliano Ramos e de Cyro dos Anjos; de Helena Morley, que se ateve a um só livro; de Maria Helena Cardoso, que recorda por ela e pelo irmão Lúcio [Cardoso]; ou a primeira parte da obra de Pedro Nava.
Nem todas são vazadas em forma de autobiografia. Afora poemas avulsos, há livros inteiros de poesia evocatória das primícias, por autores tão diferentes quanto Carlos Drummond de Andrade (os dois volumes de "Boitempo"), Silviano Santiago, José Paulo Paes, Cacaso, Ledo Ivo, Francisco Alvim. Variantes são a prosa poética de Murilo Mendes em "A Idade do Serrote" e o romance de José Lins do Rego.

Microcosmo
Pairam sobre quem se embrenhou por essas reminiscências os nomes tutelares de Proust, Rousseau, Sartre. Traço unificador do conjunto é que são muito bem escritas, nada devendo à ficção.
Esta filha de intelectuais [Escorel é filha dos críticos Antonio Candido e Gilda de Mello e Souza] nasceu entre livros e, como Pedro Nava, não se preocupava em tornar-se escritora. Só o seria tardiamente, antes concentrando seus talentos no visual enquanto designer gráfica, como corroboram seus primeiros desenhos. Carinhosamente colecionados pela mãe, datados com minúcia, trazendo a idade da artista em anos e meses, vêm estampados no livro.
É nas primeiras páginas que o leitor se inteira do ritmo manso da rua Perdões, no bairro paulistano da Aclimação, por volta dos anos 1940-50. Microcosmo a partir do qual o olhar da menina descobre o mundo num ângulo de visão que não ultrapassa um metro de altura -mas que olhar!
Veem-se todas as casas, todos os moradores de todas as casas, o leito da rua e o piso das calçadas, as cores das paredes. As pessoas compõem uma amostra do arco-íris da metrópole, que mais tarde só tenderia a se intensificar: passam pela rua ou vivem nas imediações estrangeiros louros, franceses, italianos, chineses, gente do interior, japoneses, pretos e brancos.
Não faltam os prodígios e portentos das mil e uma noites oferecidos tanto pela loja de armarinho quanto pela farmácia ou pelo cinema do bairro, apesar de acanhado. E tudo isso relacionado com o mundo exterior, em suspensão no horizonte, autárquico e impermeável, só se materializando quando de lá vêm os amigos adultos ou saem daqui, embora raramente, expedições cheias de perigos e encantamento.
O forte, nesse começo, é, de um lado, a vida independente que os menores levam, seus personagens, suas alianças, suas dores, seus amores. A menina, filha única até seus casimirianos oito anos, é danada de traquinas, dada a travessuras arriscadas. De outro, a visão dura e sem atavios que tem dos crescidos. Estes estão presentes nos parentes, nos vizinhos e nos frequentadores da casa, impiedosamente dissecados.
Não que as crianças escapem e tenham direito a um estatuto de santidade: mais de uma vez, a menina traz à tona o veio sádico que as habita, inclusive ela própria.
Em suma, a menina oferece ao leitor seu universo, um universo dividido em três partes, que são os espaços em que circula: a rua Perdões; o interior paulista com a fazenda conjugada à cidade ou vice-versa; e a casa de Poços de Caldas [MG]. A primeira é para a vida cotidiana, as outras duas situam-se no país das maravilhas que são as férias. Nestas, desdobram-se outros mundos, com novas personagens e novas, aliás mais desabusadas, molecagens.

Olhar vertical
Até aqui, tínhamos uma perspectiva, por assim dizer, horizontal. Mas o olhar da menina vai-se tornar vertical. E se volta da infância para trás, perscrutando o passado tal como se apresenta às crianças, encarnado nos mais velhos: os pais, os tios, os avós, e os casos que contam. A teia vai compondo o casulo em que a menina se envolve.
Imperceptivelmente, deslizando a partir do presente, sob a instigação dos dois mundos das férias, emergem seus quatro costados. Vai-se perfurando um verdadeiro túnel do tempo, a escavação trazendo à superfície camadas cada vez mais profundas, revolvendo húmus e lodo, desenterrando gerações remotas.
A prosa apurada, que evita o clichê, mas incorpora o coloquial, revela-se cheia de sábias escolhas. Quem escreve é um adulto, sopesando, discriminando, ponderando. Podam-se com rigor os nomes próprios, o que alivia o texto e evita o cunho de almanaque.
Os "podres" são narrados com graça. A vida deste "tomboy" franzino mas forte no seu macacão, os cabelos cortados, é cheia de peraltices e peripécias. Delineiam-se os perfis de um pai e uma mãe marcantes, nem é preciso dizer, mas igualmente os de muitos outros figurantes.
Duas tensões atravessam a narrativa. A primeira, ecoando Fernando Pessoa, entre a criança de outrora e o adulto de agora. É este quem desenrola o carretel das linhagens, a exigir esclarecimentos de tão enredadas que são; ajusta contas com as anedotas ouvidas; fornece súmulas. A segunda, entre ficção e "pacto autobiográfico".
O mundo dos deveres e obrigações, estudo, escola, praticamente inexiste: a boa ficção comanda que se ignore o que é da rotina. O esvaecimento da vida prática conferiria uma atmosfera de sonho, não fosse o olhar perspicaz que nada perdoa e nada deixa passar.
Contribuindo, a reconstituição dos hábitos da geração anterior, sobretudo do pai e seus irmãos, mas também de patamares mais arcaicos, abre as asas para a ficção. O leitor fica com pena quando o livro acaba, cerrando a concha mágica de uma infância de cujo imaginário partilhou: da leitura, persiste a autonomia de uma menina de olhos argutos, arisca e valente.


WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é professora emérita de teoria literária na USP e autora de Euclidiana" (Companhia das Letras), entre outros livros.

O PAI, A MÃE E A FILHA
Autora: Ana Luisa Escorel
Editora: Ouro sobre Azul (tel. 0/ xx/ 21/ 2286-4874)
Quanto: R$ 35
(288 págs.)



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