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+(L)ivros
Outrora agora
Em "O Pai, a Mãe e a Filha", Ana Luisa Escorel esquadrinha
as memórias
de infância
e delineia
um panorama
da São Paulo dos anos
1940 e 1950
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
A observação que
Fernando Pessoa
dedicou às areias
movediças do passado vem à mente
do leitor, ao notar como Ana
Luisa Escorel joga com essa
ambiguidade, equilibrando-se
airosamente na corda bamba:
"E eu era feliz? Não sei:/ Fui-o
outrora agora."
Entretanto, entre memórias
de infância e memórias de escritores, dois gêneros bem assentados, estas nada têm de
ambíguas. O olhar da menina
-assim nomeada- vai organizando e decifrando o mundo a
partir de seu nicho, a casa, focalizando o entorno, os vizinhos,
a malta mirim, os visitantes.
Contamos com uma tradição
de admiráveis memórias de infância de escritores, como as de
Graciliano Ramos e de Cyro
dos Anjos; de Helena Morley,
que se ateve a um só livro; de
Maria Helena Cardoso, que recorda por ela e pelo irmão Lúcio [Cardoso]; ou a primeira
parte da obra de Pedro Nava.
Nem todas são vazadas em
forma de autobiografia. Afora
poemas avulsos, há livros inteiros de poesia evocatória das
primícias, por autores tão diferentes quanto Carlos Drummond de Andrade (os dois volumes de "Boitempo"), Silviano
Santiago, José Paulo Paes, Cacaso, Ledo Ivo, Francisco Alvim. Variantes são a prosa poética de Murilo Mendes em "A
Idade do Serrote" e o romance
de José Lins do Rego.
Microcosmo
Pairam sobre quem se embrenhou por essas reminiscências os nomes tutelares de
Proust, Rousseau, Sartre. Traço
unificador do conjunto é que
são muito bem escritas, nada
devendo à ficção.
Esta filha de intelectuais [Escorel é filha dos críticos Antonio Candido e Gilda de Mello e
Souza] nasceu entre livros e,
como Pedro Nava, não se preocupava em tornar-se escritora.
Só o seria tardiamente, antes
concentrando seus talentos no
visual enquanto designer gráfica, como corroboram seus primeiros desenhos. Carinhosamente colecionados pela mãe,
datados com minúcia, trazendo
a idade da artista em anos e meses, vêm estampados no livro.
É nas primeiras páginas que
o leitor se inteira do ritmo
manso da rua Perdões, no bairro paulistano da Aclimação, por
volta dos anos 1940-50. Microcosmo a partir do qual o olhar
da menina descobre o mundo
num ângulo de visão que não
ultrapassa um metro de altura
-mas que olhar!
Veem-se todas as casas, todos os moradores de todas as
casas, o leito da rua e o piso das
calçadas, as cores das paredes.
As pessoas compõem uma
amostra do arco-íris da metrópole, que mais tarde só tenderia
a se intensificar: passam pela
rua ou vivem nas imediações
estrangeiros louros, franceses,
italianos, chineses, gente do interior, japoneses, pretos e
brancos.
Não faltam os prodígios e
portentos das mil e uma noites
oferecidos tanto pela loja de armarinho quanto pela farmácia
ou pelo cinema do bairro, apesar de acanhado. E tudo isso relacionado com o mundo exterior, em suspensão no horizonte, autárquico e impermeável,
só se materializando quando de
lá vêm os amigos adultos ou
saem daqui, embora raramente, expedições cheias de perigos
e encantamento.
O forte, nesse começo, é, de
um lado, a vida independente
que os menores levam, seus
personagens, suas alianças,
suas dores, seus amores. A menina, filha única até seus casimirianos oito anos, é danada de
traquinas, dada a travessuras
arriscadas. De outro, a visão dura e sem atavios que tem dos
crescidos. Estes estão presentes nos parentes, nos vizinhos e
nos frequentadores da casa, impiedosamente dissecados.
Não que as crianças escapem
e tenham direito a um estatuto
de santidade: mais de uma vez,
a menina traz à tona o veio sádico que as habita, inclusive ela
própria.
Em suma, a menina oferece
ao leitor seu universo, um universo dividido em três partes,
que são os espaços em que circula: a rua Perdões; o interior
paulista com a fazenda conjugada à cidade ou vice-versa; e a
casa de Poços de Caldas [MG].
A primeira é para a vida cotidiana, as outras duas situam-se no
país das maravilhas que são as
férias. Nestas, desdobram-se
outros mundos, com novas personagens e novas, aliás mais desabusadas, molecagens.
Olhar vertical
Até aqui, tínhamos uma
perspectiva, por assim dizer,
horizontal. Mas o olhar da menina vai-se tornar vertical. E se
volta da infância para trás,
perscrutando o passado tal como se apresenta às crianças,
encarnado nos mais velhos: os
pais, os tios, os avós, e os casos
que contam. A teia vai compondo o casulo em que a menina se
envolve.
Imperceptivelmente, deslizando a partir do presente, sob
a instigação dos dois mundos
das férias, emergem seus quatro costados. Vai-se perfurando
um verdadeiro túnel do tempo,
a escavação trazendo à superfície camadas cada vez mais profundas, revolvendo húmus e lodo, desenterrando gerações remotas.
A prosa apurada, que evita o
clichê, mas incorpora o coloquial, revela-se cheia de sábias
escolhas. Quem escreve é um
adulto, sopesando, discriminando, ponderando. Podam-se
com rigor os nomes próprios, o
que alivia o texto e evita o cunho de almanaque.
Os "podres" são narrados
com graça. A vida deste "tomboy" franzino mas forte no seu
macacão, os cabelos cortados, é
cheia de peraltices e peripécias.
Delineiam-se os perfis de um
pai e uma mãe marcantes, nem
é preciso dizer, mas igualmente
os de muitos outros figurantes.
Duas tensões atravessam a
narrativa. A primeira, ecoando
Fernando Pessoa, entre a
criança de outrora e o adulto de
agora. É este quem desenrola o
carretel das linhagens, a exigir
esclarecimentos de tão enredadas que são; ajusta contas com
as anedotas ouvidas; fornece
súmulas. A segunda, entre ficção e "pacto autobiográfico".
O mundo dos deveres e obrigações, estudo, escola, praticamente inexiste: a boa ficção comanda que se ignore o que é da
rotina. O esvaecimento da vida
prática conferiria uma atmosfera de sonho, não fosse o olhar
perspicaz que nada perdoa e
nada deixa passar.
Contribuindo, a reconstituição dos hábitos da geração anterior, sobretudo do pai e seus
irmãos, mas também de patamares mais arcaicos, abre as
asas para a ficção.
O leitor fica com pena quando o livro acaba, cerrando a
concha mágica de uma infância
de cujo imaginário partilhou:
da leitura, persiste a autonomia
de uma menina de olhos argutos, arisca e valente.
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é professora
emérita de teoria literária na USP e autora de
Euclidiana" (Companhia das Letras), entre outros livros.
O PAI, A MÃE E A FILHA
Autora: Ana Luisa Escorel
Editora: Ouro sobre Azul (tel. 0/ xx/
21/ 2286-4874)
Quanto: R$ 35
(288 págs.)
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