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Cantos da guerra
CANTO 1
A INVOCAÇÃO DAS MUSAS
A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles,
o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas
trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades
de valentes, de heróis, espólio para os cães,
pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus;
desde que por primeiro a discórdia apartou
o Atreide, chefe de homens, e o divino Aquiles.
Que Deus, posto entre ambos, provocou a rixa?
O filho de Latona e Zeus. Irou-o o rei.
A peste então lavrou no exército: ruína
cai sobre o povo! (....)
CANTO 2
ÔNEIROS, O SONHO
Deuses e os homens de elmo equinoforme ornados
dormiam todos, toda a longa noite. Zeus,
só ele, não cedia à hipnose do sonho,
mas ponderava: como, nos navios acaios,
muitíssimos matar, honrando assim Aquiles.
Decide o coração (e lhe parece bem):
enviar -ruinoso- o sonho ao Atreide Agamêmnon.
"Ôneiros!" -chamou (e asas-frases tatalaram):
"alcança, oniro-fúnebre, os navios aqueus.
Junto ao leito do Atreide, diz-lhe, tal e qual:
Põe os Aqueus, cabelos-longos, -já!- em armas,
todos, a tomar Tróia, pólis de amplas ruas:
que os Imortais, do Olimpo aonde habitam, não
mais discrepam, nenhum deles. Hera os dobrou
a todos, suplicante. A angústia sobrepaira:
ai dos Troianos!". Falou. Ôneiros ouviu.
CANTO 3
HÉCTOR REPREENDE PÁRIS
Como Noto de névoa espessa coifa o cume
das montanhas, infenso ao pastor, aos ladrões
mais que a noite propício (não se enxerga um tiro
de pedra adiante), um vórtice de pó se eleva
dos pés que em marcha rápida transpõem o plaino.
Assim que os dois exércitos se defrontaram,
eis Páris Alexandro, à testa dos Troianos.
Diviniforme, à espádua a pele de um leopardo,
portando o arco recurvo, a espada e duas lanças
pontiaguçadas, brônzeas, chamava os mais bravos
Aqueus a se medir com ele, cara a cara.
Quando o dileto-de-Ares, Menelau, o viu
avançando passadas largas, na dianteira,
se alegrou, como um leão, que afronta presa grande
-um caprino selvagem, um cervo de galhos-
e faminto a devora, ainda quando ao encalço
lhe venham cães e jovens ávidos de caça.
Assim rejubilou Menelau, com seus olhos
vendo o diviniforme Páris, o culpado
a punir. Saltou perto do carro, armas prontas.
Foi só vê-lo assomar, e o coração de Páris,
deiforme conturbou-se. Então, fugindo à Moira,
recuou, junto às fileiras tróicas se alojando.
Como quem se depara com uma serpente
nos convales do monte, e salta para trás
medroso, rosto pálido, Páris, deiforme,
por entre os bravos Tróicos barafusta, pávido,
apavorado diante do filho de Atreu.
Héctor o atalhou, com palavras insultuosas:
"Ó mal-parido Páris, belo só nas formas,
mulherengo, impostor! Não-nascido, sem-bodas,
estarias melhor do que a servir de opróbio
e vexame perante os olhos de nós todos".
CANTO 4
O EMBATE DOS GUERREIROS
A uns, Ares instava; Atena, olhos-azuis,
aos outros. O Terror e o Temor, a Discórdia
acorriam (a Discórdia, sanha que não cessa,
irmã e sócia de Ares, matador-de-gente,
desponta diminuta e cresce e entesta com
o céu, e calca a terra, dor e furor pelas
tropas lançando). Quando os guerreiros, enfim,
se dão de encontro, frente à frente, e os broquéis se entre-
batem, e se entrechocam o vigor e as lanças
dos guerreiros de bronze encouraçados contra
os escudos bojudos, como umbigos, ergue-se
um tumulto de gritos de dor e de triunfo
dos que vão trucidando e dos que estão morrendo;
e o sangue jorra sobre a terra e a inunda. Como
quando o degelo desiberna os rios, e do alto,
duas torrentes saltam das montanhas, indo
rebojar simultâneas num promíscuo vale,
cavo, que atroa ao ímpeto das águas, trom
que o pastor, muito ao longe, escuta, assim o embate
-clamor e estupor- de ambas as facções (...).
LOBOS SOBRE O CADÁVER
Fura-lhe o capacete crinilongo e a fronte;
o golpe brônzeo vara o miolo e os ossos; noite
profunda lhe enegrece os olhos; como torre
tomba. Pelos pés, puxa-o Elefénor, rei
dos Abantes (quer, longe da lide, das armas
despojá-lo; frustrado intento!). Antenor, árdego-
animoso o descobre no ato e vendo o flanco
exposto do guerreiro abaixado, com dardo
pontibrônzeo o lanceia: os membros, moles, morrem-lhe.
A alma lhe foge. Sobre o cadáver, precípites,
a uma sinistra empresa se entregam Troianos
e Gregos: se encarniçam como lobos uns
contra os outros, lutando corpo a corpo.
CANTO 5
MORTE A LANÇA
(...) Meríone
caça-lhe o filho e o fere a lança num dos glúteos,
por sob o osso; transvara-lhe a bexiga e o púbis
lhe fura. Ajoelha-se de dor e a morte o entolda.
MORTE A GLÁDIO
A esse alcançando, Eurípilo acomete e o gládio
lhe corta fora o braço que, pesado, cai
por terra, ensanguentado. Pelos olhos lhe entram
a morte cor de púrpura e a ferrenha Moira.
Assim vai decorrendo o conflito feroz.
DIOMEDES FERE O DEUS ARES
(...) Então Diomedes, voz altíssona,
arroja o pique brônzeo, que Atena endereça
aos baixos, onde aperta o cinturão do deus.
Ali o fere e punge. Rasga a pele fina
e a lança extrai do ferimento. Ares, o brônzeo,
berra, com um bramido de nove ou dez mil
homens, lutando a mando do nume da guerra.
Troianos e Aqueus tremem aterrorizados,
tamanho o urro de Ares belicoso. Assim
como um vapor das nuvens, tenebroso, exala-se
em tempo de calor, quando o vento raivoso
tempestua, assim viu Diomedes o bronzeado
Ares subir, a par das nuvens, para o vasto
céu urânio. Ao Olimpo escarpado, solar
dos deuses, chega, célere e aos pés do Croníada
senta-se e mostra, doído, o cruor imorredouro
que escorre, ambrósio. (...)
CANTO 6
A MORTE DE ADRASTO
"Poupa-me, Atreide, a vida; em contraparte aceita
resgate condizente: meu pai, no palácio,
entesoura riquezas: ouro, bronze, ferro,
linda lavra; profuso prêmio te daria
por mim, se me soubesse cativo dos Gregos."
Falou. E quase convenceu, no íntimo, o Atreide,
que às naus gregas estava a ponto de mandá-lo,
aos cuidados de um servo. Interveio Agamêmnon
correndo a seu encontro e gritando: "Ó meu caro
Menelau. Não te apiedes desse homem! Boas coisas
-recorda- os Tróicos já fizeram em teu lar!
Que em nossas mãos, nenhum deles refuja à morte
atroz. Mesmo os que a mãe levar dentro do ventre
ainda não-natos. Todos hão de perecer
longe de Ílion, imêmores, sem tumba". Assim
falou. E persuadiu o irmão diversamente,
pois dissera o correto. Menelau repele
Adrasto com as mãos. Agamêmnon o fere
na ilharga e ele, de costas, cai. O Atreide extrai-lhe
-calcanhar sobre o peito- o dardo, freixo agudo.
OS HOMENS E AS FOLHAS
"Ó Tideide, ardoroso de ânimo, por que
perguntas minha origem? Símile à das folhas
a geração dos homens: o vento faz cair
as folhas sobre a terra. Verdecendo a selva
enfolha outras mais, vinda a primavera. Assim,
a linhagem dos homens: nascem e perecem."
PÁRIS, HELENA E HÉCTOR
(...) Assim que o viu, censuras ásperas
lhe fez Héctor, dileto de Zeus: "Infeliz,
pobre diabo! Esse fel, que te corrói a entranha,
não é belo! Os guerreiros morrem junto aos muros
da cidade, lutando. O estrépito da guerra
que circum-flama a pólis, tu o motivaste;
reprovarias um outro que fugisse à luta.
Vamos! O fogo adverso já nos ronda as portas".
O deiforme Alexandro assim lhe respondeu:
"É justo o que me dizes, não contra a justiça;
escuta-me, porém, dá-me atenção. Não foi
o fel da cólera, o ânimo dorido contra
os Tróicos, a razão de eu recolher-me à casa
tanto tempo; queria consolar-me das mágoas.
Minha esposa exortou-me com palavras suaves
a retornar à luta. Assim também entendo,
a vitória na guerra é mutável. Espera
que eu vista as armas de Ares. Ou, vai na frente, eu
irei ao teu encontro". Falou. Héctor, elmo
coruscante, calou. Helena, voz de mel,
voltando-se, lhe diz: "Meu cunhado -cunhado
desta cadela má, de mente maliciosa,
odienta. Quando vi a luz, melhor teria
sido que um vendaval me arremessasse ao topo
de um monte ou para o mar de políssonas ondas,
que me tragassem antes disso tudo. Os deuses
não quiseram. Que eu fosse então esposa de homem
de mais brio, que soubesse de vingança e ofensas.
Este não é e não será jamais de firme
têmpera, e há de colher os frutos disso, em breve,
temo. Mas entra e senta-te, cunhado. Tens
o coração num círculo de mágoas, por
causa desta cadela que eu sou e do louco
Páris, a quem Zeus fado sinistro impôs, para
que, ambos, sejamos tema dos vates vindouros".
CANTO 7
O GIGANTE ÁJAX ENFRENTA HÉCTOR
(...) Assim o agigantado
Ájax se move, rocha dos Aqueus, ridente,
mas temível, a passos largos, lança longa-
-sombra. Os Gregos ao vê-lo, todos, rejubilam
e um frêmito de medo perpassa os Troianos;
o próprio coração de Héctor palpita rápido.
Recuar, retroceder para as fileiras tróicas
não era mais possível: fôra o desafiante.
Ájax se avizinhava, sobraçando o escudo
torriforme, de bronze, provido de sete
entrecouros de boi; Tíquio o fizera, o mais
afamado correeiro de Hila. Sete couros
taurinos entremeara, e uma oitava camada
de bronze martelado, para reforçá-lo.
Diante do peito o escudo, Ájax, o Telamônio,
pára próximo de Héctor e o ameaça gritando:
"Agora verás quantos campeões têm os Gregos
para o combate cara a cara, mesmo ausente
Aquiles, coração leonino, rompe-tropas,
que junto às naus recurvas transnavegadoras
recolheu-se, com raiva de Agamêmnon, rei;
há muitos entre nós para fazer-te frente".
NOITE, MEDO, SONO
Um copioso festim, então, preparam. Noite
adentro, os Aqueus, longos-cabelos, reunidos,
se banquetearam; Tróicos e aliados também,
na pólis. Noite adentro, Zeus no entanto armava-lhes
tramas e males, torvo, trovejando. Verde-
-cloroso medo os toma; derramam o vinho;
ninguém mais bebe sem antes libar a Zeus.
Deitam-se enfim e os suaves dons de Hipnos recolhem.
CANTO 8
O PODER DE ZEUS
A Aurora abrira o peplo amarelo-açafrão
por sobre toda a terra. Zeus Fulgurador
reúne em assembléia os numes, no mais alto
cimo do Olimpo, multiescarpado. Ele fala
e, submissos, os outros o escutam: "Ouvi-me,
deuses e deusas, vou dizer-lhes o que manda
meu coração; ninguém, deus ou deusa, descumpra
meu ditame, antes, todos me obedeçam, para
que eu possa dar fim rápido a esta empresa; assim,
aquele que, afastado dos demais, eu veja
vivamente voltado a socorrer os Tróicos
ou os Dânaos, ao céu olímpio voltará
sob aguilhão, em mau estado; ao fosco Tártaro,
caso o decida, posso logo arremessá-lo,
no fundo mais profundo onde se abisma o báratro
sob a terra; onde o férreo portal e o limiar
de bronze distam do Hades tanto quanto o céu
da terra. Vereis quão grande é meu poder. Caso
queirais fazer a prova, suspendei do céu
uma corrente de ouro. Pendurados dela,
tentai, deuses e deusas juntos, das alturas
puxar Zeus soberano para a terra. Mesmo
com todo o esforço, não conseguireis. Enquanto,
querendo, eu puxarei a todos e de arrasto
a terra e o mar; num pico do Olimpo prendendo
a áurea cadeia, farei que tudo fique no ar,
pênsil meteoro. Tanto excedo deuses e homens!".
CANTO 9
O JAVALI DE ÁRTEMIS
Recordo um velho caso e vou narrá-lo tal
e qual aconteceu, amigos: certa vez,
nas terras calidônias, se batiam Curetes
e Étolos; defendiam estes a cidadela;
aqueles outros -guerricoléricos- por
destruí-la ardendo em Ares. Ártemis, do trono-
-áureo, lhes provocara o mal. Enraivecida
por Eneu não lhe ter ofertado primícias
do cultivo dos campos. Hecatombes para
os outros deuses; a ela, filha de Zeus, nada.
Ou esquecera, ou não pensara: grande equívoco!
Com raiva, a Sagitária, raça de Zeus, solta
contra Eneu um robusto javardo, de presas
brancobrilhantes, que, selvagem, contumaz
predador, danifica-lhe os campos, derruba
altas árvores, raízes reversas, com flores
e com frutos pendentes. Meleagro abateu-o,
filho do rei Eneu, que convocou de muitas
cidades caçadores e cães; não teria
vencido a fera com pouca gente, enormíssima
como era, à pira odiosa tendo enviado muitas
vítimas. Suscitou a deusa então celeuma
e alarido de guerra em torno da carcaça.
A quem caberia -Étolo ou Curete- a pele
hirsuta? A quem a megatesta? (...)
CANTO 10
A CABEÇA DE DÓLON
"(...) Se aceitarmos resgate,
se te deixarmos livre, de novo às naus gregas,
certo, virás rondar, ou como espia, ou já
para nos dar combate aberto; se, porém,
por minha mão domado, exânime, tu expiras,
então não serás mais capaz de dano aos Dânaos."
Falou. Súplice Dólon intentou tocar-lhe
o queixo. De um só golpe o Aqueu, a fio de espada,
cortou-lhe os dois tendões à nuca; ainda falando
a cabeça de Dólon rolou na poeira. Ambos,
do seu gorro de fuinha, do arco vibrador,
da lupina pelagem, da lança o despojam.
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