São Paulo, Domingo, 25 de Abril de 1999
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Cantos da guerra

CANTO 1
A INVOCAÇÃO DAS MUSAS

A ira, Deusa, celebra do Peleio Aquiles, o irado desvario, que aos Aqueus tantas penas trouxe, e incontáveis almas arrojou no Hades de valentes, de heróis, espólio para os cães, pasto de aves rapaces: fez-se a lei de Zeus; desde que por primeiro a discórdia apartou o Atreide, chefe de homens, e o divino Aquiles. Que Deus, posto entre ambos, provocou a rixa? O filho de Latona e Zeus. Irou-o o rei. A peste então lavrou no exército: ruína cai sobre o povo! (....)

CANTO 2
ÔNEIROS, O SONHO

Deuses e os homens de elmo equinoforme ornados dormiam todos, toda a longa noite. Zeus, só ele, não cedia à hipnose do sonho, mas ponderava: como, nos navios acaios, muitíssimos matar, honrando assim Aquiles. Decide o coração (e lhe parece bem): enviar -ruinoso- o sonho ao Atreide Agamêmnon. "Ôneiros!" -chamou (e asas-frases tatalaram): "alcança, oniro-fúnebre, os navios aqueus. Junto ao leito do Atreide, diz-lhe, tal e qual: Põe os Aqueus, cabelos-longos, -já!- em armas, todos, a tomar Tróia, pólis de amplas ruas: que os Imortais, do Olimpo aonde habitam, não mais discrepam, nenhum deles. Hera os dobrou a todos, suplicante. A angústia sobrepaira: ai dos Troianos!". Falou. Ôneiros ouviu.

CANTO 3
HÉCTOR REPREENDE PÁRIS

Como Noto de névoa espessa coifa o cume das montanhas, infenso ao pastor, aos ladrões mais que a noite propício (não se enxerga um tiro de pedra adiante), um vórtice de pó se eleva dos pés que em marcha rápida transpõem o plaino. Assim que os dois exércitos se defrontaram, eis Páris Alexandro, à testa dos Troianos. Diviniforme, à espádua a pele de um leopardo, portando o arco recurvo, a espada e duas lanças pontiaguçadas, brônzeas, chamava os mais bravos Aqueus a se medir com ele, cara a cara. Quando o dileto-de-Ares, Menelau, o viu avançando passadas largas, na dianteira, se alegrou, como um leão, que afronta presa grande -um caprino selvagem, um cervo de galhos- e faminto a devora, ainda quando ao encalço lhe venham cães e jovens ávidos de caça. Assim rejubilou Menelau, com seus olhos vendo o diviniforme Páris, o culpado a punir. Saltou perto do carro, armas prontas. Foi só vê-lo assomar, e o coração de Páris, deiforme conturbou-se. Então, fugindo à Moira, recuou, junto às fileiras tróicas se alojando. Como quem se depara com uma serpente nos convales do monte, e salta para trás medroso, rosto pálido, Páris, deiforme, por entre os bravos Tróicos barafusta, pávido, apavorado diante do filho de Atreu. Héctor o atalhou, com palavras insultuosas: "Ó mal-parido Páris, belo só nas formas, mulherengo, impostor! Não-nascido, sem-bodas, estarias melhor do que a servir de opróbio e vexame perante os olhos de nós todos".

CANTO 4
O EMBATE DOS GUERREIROS

A uns, Ares instava; Atena, olhos-azuis, aos outros. O Terror e o Temor, a Discórdia acorriam (a Discórdia, sanha que não cessa, irmã e sócia de Ares, matador-de-gente, desponta diminuta e cresce e entesta com o céu, e calca a terra, dor e furor pelas tropas lançando). Quando os guerreiros, enfim, se dão de encontro, frente à frente, e os broquéis se entre- batem, e se entrechocam o vigor e as lanças dos guerreiros de bronze encouraçados contra os escudos bojudos, como umbigos, ergue-se um tumulto de gritos de dor e de triunfo dos que vão trucidando e dos que estão morrendo; e o sangue jorra sobre a terra e a inunda. Como quando o degelo desiberna os rios, e do alto, duas torrentes saltam das montanhas, indo rebojar simultâneas num promíscuo vale, cavo, que atroa ao ímpeto das águas, trom que o pastor, muito ao longe, escuta, assim o embate -clamor e estupor- de ambas as facções (...).

LOBOS SOBRE O CADÁVER

Fura-lhe o capacete crinilongo e a fronte; o golpe brônzeo vara o miolo e os ossos; noite profunda lhe enegrece os olhos; como torre tomba. Pelos pés, puxa-o Elefénor, rei dos Abantes (quer, longe da lide, das armas despojá-lo; frustrado intento!). Antenor, árdego- animoso o descobre no ato e vendo o flanco exposto do guerreiro abaixado, com dardo pontibrônzeo o lanceia: os membros, moles, morrem-lhe. A alma lhe foge. Sobre o cadáver, precípites, a uma sinistra empresa se entregam Troianos e Gregos: se encarniçam como lobos uns contra os outros, lutando corpo a corpo.

CANTO 5
MORTE A LANÇA

(...) Meríone caça-lhe o filho e o fere a lança num dos glúteos, por sob o osso; transvara-lhe a bexiga e o púbis lhe fura. Ajoelha-se de dor e a morte o entolda.

MORTE A GLÁDIO

A esse alcançando, Eurípilo acomete e o gládio lhe corta fora o braço que, pesado, cai por terra, ensanguentado. Pelos olhos lhe entram a morte cor de púrpura e a ferrenha Moira. Assim vai decorrendo o conflito feroz.

DIOMEDES FERE O DEUS ARES

(...) Então Diomedes, voz altíssona, arroja o pique brônzeo, que Atena endereça aos baixos, onde aperta o cinturão do deus. Ali o fere e punge. Rasga a pele fina e a lança extrai do ferimento. Ares, o brônzeo, berra, com um bramido de nove ou dez mil homens, lutando a mando do nume da guerra. Troianos e Aqueus tremem aterrorizados, tamanho o urro de Ares belicoso. Assim como um vapor das nuvens, tenebroso, exala-se em tempo de calor, quando o vento raivoso tempestua, assim viu Diomedes o bronzeado Ares subir, a par das nuvens, para o vasto céu urânio. Ao Olimpo escarpado, solar dos deuses, chega, célere e aos pés do Croníada senta-se e mostra, doído, o cruor imorredouro que escorre, ambrósio. (...)

CANTO 6
A MORTE DE ADRASTO

"Poupa-me, Atreide, a vida; em contraparte aceita resgate condizente: meu pai, no palácio, entesoura riquezas: ouro, bronze, ferro, linda lavra; profuso prêmio te daria por mim, se me soubesse cativo dos Gregos." Falou. E quase convenceu, no íntimo, o Atreide, que às naus gregas estava a ponto de mandá-lo, aos cuidados de um servo. Interveio Agamêmnon correndo a seu encontro e gritando: "Ó meu caro Menelau. Não te apiedes desse homem! Boas coisas -recorda- os Tróicos já fizeram em teu lar! Que em nossas mãos, nenhum deles refuja à morte atroz. Mesmo os que a mãe levar dentro do ventre ainda não-natos. Todos hão de perecer longe de Ílion, imêmores, sem tumba". Assim falou. E persuadiu o irmão diversamente, pois dissera o correto. Menelau repele Adrasto com as mãos. Agamêmnon o fere na ilharga e ele, de costas, cai. O Atreide extrai-lhe -calcanhar sobre o peito- o dardo, freixo agudo.

OS HOMENS E AS FOLHAS

"Ó Tideide, ardoroso de ânimo, por que perguntas minha origem? Símile à das folhas a geração dos homens: o vento faz cair as folhas sobre a terra. Verdecendo a selva enfolha outras mais, vinda a primavera. Assim, a linhagem dos homens: nascem e perecem."

PÁRIS, HELENA E HÉCTOR

(...) Assim que o viu, censuras ásperas lhe fez Héctor, dileto de Zeus: "Infeliz, pobre diabo! Esse fel, que te corrói a entranha, não é belo! Os guerreiros morrem junto aos muros da cidade, lutando. O estrépito da guerra que circum-flama a pólis, tu o motivaste; reprovarias um outro que fugisse à luta. Vamos! O fogo adverso já nos ronda as portas". O deiforme Alexandro assim lhe respondeu: "É justo o que me dizes, não contra a justiça; escuta-me, porém, dá-me atenção. Não foi o fel da cólera, o ânimo dorido contra os Tróicos, a razão de eu recolher-me à casa tanto tempo; queria consolar-me das mágoas. Minha esposa exortou-me com palavras suaves a retornar à luta. Assim também entendo, a vitória na guerra é mutável. Espera que eu vista as armas de Ares. Ou, vai na frente, eu irei ao teu encontro". Falou. Héctor, elmo coruscante, calou. Helena, voz de mel, voltando-se, lhe diz: "Meu cunhado -cunhado desta cadela má, de mente maliciosa, odienta. Quando vi a luz, melhor teria sido que um vendaval me arremessasse ao topo de um monte ou para o mar de políssonas ondas, que me tragassem antes disso tudo. Os deuses não quiseram. Que eu fosse então esposa de homem de mais brio, que soubesse de vingança e ofensas. Este não é e não será jamais de firme têmpera, e há de colher os frutos disso, em breve, temo. Mas entra e senta-te, cunhado. Tens o coração num círculo de mágoas, por causa desta cadela que eu sou e do louco Páris, a quem Zeus fado sinistro impôs, para que, ambos, sejamos tema dos vates vindouros".

CANTO 7
O GIGANTE ÁJAX ENFRENTA HÉCTOR

(...) Assim o agigantado Ájax se move, rocha dos Aqueus, ridente, mas temível, a passos largos, lança longa- -sombra. Os Gregos ao vê-lo, todos, rejubilam e um frêmito de medo perpassa os Troianos; o próprio coração de Héctor palpita rápido. Recuar, retroceder para as fileiras tróicas não era mais possível: fôra o desafiante. Ájax se avizinhava, sobraçando o escudo torriforme, de bronze, provido de sete entrecouros de boi; Tíquio o fizera, o mais afamado correeiro de Hila. Sete couros taurinos entremeara, e uma oitava camada de bronze martelado, para reforçá-lo. Diante do peito o escudo, Ájax, o Telamônio, pára próximo de Héctor e o ameaça gritando: "Agora verás quantos campeões têm os Gregos para o combate cara a cara, mesmo ausente Aquiles, coração leonino, rompe-tropas, que junto às naus recurvas transnavegadoras recolheu-se, com raiva de Agamêmnon, rei; há muitos entre nós para fazer-te frente".

NOITE, MEDO, SONO

Um copioso festim, então, preparam. Noite adentro, os Aqueus, longos-cabelos, reunidos, se banquetearam; Tróicos e aliados também, na pólis. Noite adentro, Zeus no entanto armava-lhes tramas e males, torvo, trovejando. Verde- -cloroso medo os toma; derramam o vinho; ninguém mais bebe sem antes libar a Zeus. Deitam-se enfim e os suaves dons de Hipnos recolhem.

CANTO 8
O PODER DE ZEUS

A Aurora abrira o peplo amarelo-açafrão por sobre toda a terra. Zeus Fulgurador reúne em assembléia os numes, no mais alto cimo do Olimpo, multiescarpado. Ele fala e, submissos, os outros o escutam: "Ouvi-me, deuses e deusas, vou dizer-lhes o que manda meu coração; ninguém, deus ou deusa, descumpra meu ditame, antes, todos me obedeçam, para que eu possa dar fim rápido a esta empresa; assim, aquele que, afastado dos demais, eu veja vivamente voltado a socorrer os Tróicos ou os Dânaos, ao céu olímpio voltará sob aguilhão, em mau estado; ao fosco Tártaro, caso o decida, posso logo arremessá-lo, no fundo mais profundo onde se abisma o báratro sob a terra; onde o férreo portal e o limiar de bronze distam do Hades tanto quanto o céu da terra. Vereis quão grande é meu poder. Caso queirais fazer a prova, suspendei do céu uma corrente de ouro. Pendurados dela, tentai, deuses e deusas juntos, das alturas puxar Zeus soberano para a terra. Mesmo com todo o esforço, não conseguireis. Enquanto, querendo, eu puxarei a todos e de arrasto a terra e o mar; num pico do Olimpo prendendo a áurea cadeia, farei que tudo fique no ar, pênsil meteoro. Tanto excedo deuses e homens!".

CANTO 9
O JAVALI DE ÁRTEMIS

Recordo um velho caso e vou narrá-lo tal e qual aconteceu, amigos: certa vez, nas terras calidônias, se batiam Curetes e Étolos; defendiam estes a cidadela; aqueles outros -guerricoléricos- por destruí-la ardendo em Ares. Ártemis, do trono- -áureo, lhes provocara o mal. Enraivecida por Eneu não lhe ter ofertado primícias do cultivo dos campos. Hecatombes para os outros deuses; a ela, filha de Zeus, nada. Ou esquecera, ou não pensara: grande equívoco! Com raiva, a Sagitária, raça de Zeus, solta contra Eneu um robusto javardo, de presas brancobrilhantes, que, selvagem, contumaz predador, danifica-lhe os campos, derruba altas árvores, raízes reversas, com flores e com frutos pendentes. Meleagro abateu-o, filho do rei Eneu, que convocou de muitas cidades caçadores e cães; não teria vencido a fera com pouca gente, enormíssima como era, à pira odiosa tendo enviado muitas vítimas. Suscitou a deusa então celeuma e alarido de guerra em torno da carcaça. A quem caberia -Étolo ou Curete- a pele hirsuta? A quem a megatesta? (...)

CANTO 10
A CABEÇA DE DÓLON

"(...) Se aceitarmos resgate, se te deixarmos livre, de novo às naus gregas, certo, virás rondar, ou como espia, ou já para nos dar combate aberto; se, porém, por minha mão domado, exânime, tu expiras, então não serás mais capaz de dano aos Dânaos." Falou. Súplice Dólon intentou tocar-lhe o queixo. De um só golpe o Aqueu, a fio de espada, cortou-lhe os dois tendões à nuca; ainda falando a cabeça de Dólon rolou na poeira. Ambos, do seu gorro de fuinha, do arco vibrador, da lupina pelagem, da lança o despojam.


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