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+ sociedade
Muralha na China
Adiamento
de congresso mundial de antropologia, que ocorreria
em Kunming,
em julho, causa surpresa
GUSTAVO LINS RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
adiamento "sine
die" do 16º Congresso Mundial da
União Internacional de Ciências
Antropológicas e Etnológicas
(IUAES), que seria realizado
em Kunming, na China, em 15
de julho, mostra que, à medida
que a Olimpíada de Pequim se
aproxima, o governo chinês toma mais iniciativas para controlar os impactos que a situação no Tibete possa causar a
sua imagem internacional.
Para muitos, este será o século chinês, um período no qual
ocorrerá o deslocamento da
hegemonia do sistema mundial
dos EUA para aquele país.
Daí o interesse do Estado
chinês em mostrar que pode
dar conta de questões conflituosas sem agredir noções de
direitos humanos prevalentes
no Ocidente, entendidas como
universais e que qualificam
seus seguidores à convivência
civilizada.
Trata-se de tarefa complicada não apenas porque os direitos humanos são também utilizados como pragmática arma
de pressão para fins de controle da crescente importância
chinesa no cenário global, mas
também porque episódios como as recentes rebeliões no Tibete, com o seu grande número
de mortos e a condenação de líderes à prisão perpétua por resistirem ao domínio nacionalista chinês, reacendem as acusações de abusos perpetrados
pelo Estado chinês.
As minorias étnicas, nos Estados nacionais, são historicamente alvos de violências institucionais, deliberadas ou não.
Entretanto uma grande mudança política ocorrida nos últimos 20 anos foi a aceitação da
necessidade de pluralizar o Estado, admitindo, concomitantemente, o caráter plural da nação. É claro que velhas visões
homogeneizadoras do Estado,
da democracia, da vida pública
e do acesso aos benefícios da
modernidade continuam vivas
e rebrotam em diferentes momentos e lugares, agitando fantasmas da "segurança nacional". Basta ver, no Brasil, o que
se fala sobre a Terra Indígena
Raposa/Serra do Sol.
É estranho esse aparente impedimento de última hora de
um congresso envolvendo mais
de 6.000 antropólogos de todo
o mundo e que, até então, vinha
se desenrolando a contento,
contando com o apoio de diferentes organismos do Estado
chinês. Na verdade a comunidade antropológica internacional sabe que algumas vozes haviam se levantado em diferentes países pedindo o boicote do
congresso, diante dos acontecimentos no Tibete.
Gafe ou ingenuidade
E-mails circularam atribuindo a ordem de suspender o congresso justamente à Comissão
Estatal de Assuntos Étnicos do
governo chinês. De fato, é difícil
não ver o espectro do Tibete
por trás dessa enorme decepção e gafe internacional.
Afinal, acreditava-se que um
congresso mundial de antropologia na China representaria
também a oportunidade de discutir, de forma aberta e acadêmica, os problemas das minorias e dos direitos humanos naquele país e em outros.
Deve ser louvado o esforço
feito pelos colegas chineses na
tentativa de incrementar suas
relações com a comunidade
acadêmica internacional, um
subproduto óbvio de um congresso mundial.
Porém, mesmo que o evento
venha a ser realizado em outra
data, infelizmente o seu "adiamento" acaba reforçando um
certo isolamento.
Pode parecer ingênua a pergunta, mas não é: estará despreparado o Estado chinês para
enfrentar, em foros que não
controle, a diversidade de opiniões e críticas? A resposta positiva a essa pergunta levanta
sérias dúvidas sobre qual estilo
a elite política da China deseja
imprimir ao crescente poder do
seu país na globalização.
Seria ingênuo, agora sim, supor ser possível controlar uma
grande e sofisticada comunidade internacional, como a dos
antropólogos, arraigada em
princípios democráticos nos
quais o respeito à diferença é
um valor.
Qualquer desejo de hegemonia no plano global supõe uma
abertura a ideais cosmopolitas,
uma disposição para enfrentar
encontros comunicativos heteroglóssicos e para negociar por
meio de diálogos críticos que
não podem ser entendidos como uma ameaça ao Estado.
A China acaba de perder uma
grande oportunidade de mostrar uma outra cara ao mundo.
GUSTAVO LINS RIBEIRO é diretor do Instituto
de Ciências Sociais da Universidade de Brasília.
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