São Paulo, domingo, 25 de maio de 2008

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+ sociedade

Muralha na China

Adiamento de congresso mundial de antropologia, que ocorreria em Kunming, em julho, causa surpresa

GUSTAVO LINS RIBEIRO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O adiamento "sine die" do 16º Congresso Mundial da União Internacional de Ciências Antropológicas e Etnológicas (IUAES), que seria realizado em Kunming, na China, em 15 de julho, mostra que, à medida que a Olimpíada de Pequim se aproxima, o governo chinês toma mais iniciativas para controlar os impactos que a situação no Tibete possa causar a sua imagem internacional.
Para muitos, este será o século chinês, um período no qual ocorrerá o deslocamento da hegemonia do sistema mundial dos EUA para aquele país.
Daí o interesse do Estado chinês em mostrar que pode dar conta de questões conflituosas sem agredir noções de direitos humanos prevalentes no Ocidente, entendidas como universais e que qualificam seus seguidores à convivência civilizada.
Trata-se de tarefa complicada não apenas porque os direitos humanos são também utilizados como pragmática arma de pressão para fins de controle da crescente importância chinesa no cenário global, mas também porque episódios como as recentes rebeliões no Tibete, com o seu grande número de mortos e a condenação de líderes à prisão perpétua por resistirem ao domínio nacionalista chinês, reacendem as acusações de abusos perpetrados pelo Estado chinês.
As minorias étnicas, nos Estados nacionais, são historicamente alvos de violências institucionais, deliberadas ou não. Entretanto uma grande mudança política ocorrida nos últimos 20 anos foi a aceitação da necessidade de pluralizar o Estado, admitindo, concomitantemente, o caráter plural da nação. É claro que velhas visões homogeneizadoras do Estado, da democracia, da vida pública e do acesso aos benefícios da modernidade continuam vivas e rebrotam em diferentes momentos e lugares, agitando fantasmas da "segurança nacional". Basta ver, no Brasil, o que se fala sobre a Terra Indígena Raposa/Serra do Sol.
É estranho esse aparente impedimento de última hora de um congresso envolvendo mais de 6.000 antropólogos de todo o mundo e que, até então, vinha se desenrolando a contento, contando com o apoio de diferentes organismos do Estado chinês. Na verdade a comunidade antropológica internacional sabe que algumas vozes haviam se levantado em diferentes países pedindo o boicote do congresso, diante dos acontecimentos no Tibete.

Gafe ou ingenuidade
E-mails circularam atribuindo a ordem de suspender o congresso justamente à Comissão Estatal de Assuntos Étnicos do governo chinês. De fato, é difícil não ver o espectro do Tibete por trás dessa enorme decepção e gafe internacional.
Afinal, acreditava-se que um congresso mundial de antropologia na China representaria também a oportunidade de discutir, de forma aberta e acadêmica, os problemas das minorias e dos direitos humanos naquele país e em outros.
Deve ser louvado o esforço feito pelos colegas chineses na tentativa de incrementar suas relações com a comunidade acadêmica internacional, um subproduto óbvio de um congresso mundial.
Porém, mesmo que o evento venha a ser realizado em outra data, infelizmente o seu "adiamento" acaba reforçando um certo isolamento.
Pode parecer ingênua a pergunta, mas não é: estará despreparado o Estado chinês para enfrentar, em foros que não controle, a diversidade de opiniões e críticas? A resposta positiva a essa pergunta levanta sérias dúvidas sobre qual estilo a elite política da China deseja imprimir ao crescente poder do seu país na globalização.
Seria ingênuo, agora sim, supor ser possível controlar uma grande e sofisticada comunidade internacional, como a dos antropólogos, arraigada em princípios democráticos nos quais o respeito à diferença é um valor.
Qualquer desejo de hegemonia no plano global supõe uma abertura a ideais cosmopolitas, uma disposição para enfrentar encontros comunicativos heteroglóssicos e para negociar por meio de diálogos críticos que não podem ser entendidos como uma ameaça ao Estado. A China acaba de perder uma grande oportunidade de mostrar uma outra cara ao mundo.


GUSTAVO LINS RIBEIRO é diretor do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Brasília.


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