São Paulo, domingo, 25 de junho de 2006

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Além do princípio do prazer

Deirdre Bair fala da reação violenta dos herdeiros a "Jung - Uma Biografia" e relembra como o criador da psicologia analítica foi marginalizado por Freud por diminuir a importância da sexualidade

CAIO LIUDVIK
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Eu simplesmente sou uma pessoa que não pode ser obrigada a ajustar-se ao esquema comum, e esse é o significado da minha vida." A biógrafa norte-americana Deirdre Bair levou a sério essas palavras de Carl Gustav Jung ao estudar a vida dele em sua obra de dois volumes que está sendo lançada no Brasil no mês que vem, pela editora Globo. "Jung - Uma Biografia" (trad. Helena Londres, 624 págs. e 506 págs., respectivamente; preços não definidos) destaca-se pela riqueza de detalhes e pelo tom objetivo, que evita reduzir Jung aos "esquemas comuns", que costumam estereotipá-lo como "santo" padroeiro da new age ou, no outro extremo, como o "diabólico" traidor de Freud -que o escolhera como "príncipe herdeiro", mas de quem se afasta em 1913 ao propor uma visão da libido discordante da ênfase sexual da psicanálise [leia texto na pág. 6]. Jung, ao lado do seu ex-mestre vienense, é um dos nomes mais célebres da psicologia moderna. Termos que criou ou redefiniu, como inconsciente coletivo, arquétipo, complexo, introvertido/extrovertido, sincronicidade [leia texto na pág. ao lado], estão amplamente difundidos até na linguagem cotidiana. Sua linha terapêutica atrai profissionais e clientela em grau expressivo. O interesse atual pelo psicólogo suíço pode ser medido inclusive por outro tipo de indicador: uma coleção de manuscritos e cartas de Jung foi vendida no início deste mês por 707.380 libras (cerca de R$ 2,9 milhões), segundo a casa de leilões Sotheby's. Foram leiloados cerca de 50 documentos, entre os quais minutas de trabalho, conferências, cartas, desenhos e fotos, retratando inquietações profissionais e pessoais de Jung, e a forma com ele reagia a algumas das muitas controvérsias que pesam sobre esse -como ele próprio se define- "desajustado" personagem. Além do virulento divórcio intelectual com Freud, uma dessas controvérsias é a acusação -por ele sempre negada, mas que o perseguiu até o fim da vida- de que foi adepto do nazismo, devido ao fato de Jung ter presidido, nos anos 30, uma entidade psicoterapêutica internacional com sede na Alemanha de Hitler. Deirdre Bair, como mostra na entrevista a seguir, estudou detalhadamente a questão, negando fundamento a tal denúncia. Também enfrentou outras polêmicas, como a curta e tumultuada relação de Jung com James Joyce e a suposta -e também infundada, diz ela- denúncia de que ele "roubou" de um orientando a teoria do inconsciente coletivo -estrutura psíquica comum a todos os povos e que se explicitaria nos mitos, sonhos e delírios. Uma das inspirações originais para essa formulação foi um paciente esquizofrênico do hospital psiquiátrico em que Jung trabalhava, nos primeiros anos do século 20, e que fantasiava sobre como o "pênis do Sol" produziria o vento, visão essa que mais tarde Jung reencontraria, em termos muito similares, em documento arcaico sobre os adeptos do culto a Mitra, muito provavelmente desconhecidos de seu paciente. Deirdre Bair é autora de biografias sobre outros grandes nomes da cultura ocidental contemporânea, como Samuel Beckett, que lhe rendeu o prestigioso National Book Award.

 

FOLHA - Por que, após ter feito a biografia de autores como Samuel Beckett, Simone de Beauvoir e Anaïs Nin, a senhora escolheu Jung? O que nele a atraiu mais?
DEIRDRE BAIR -
Sou interessada em escrever sobre pessoas que exerceram tremenda influência na cultura e sociedade contemporâneas. A idéia de escrever sobre Jung não se originou em mim, mas veio à tona mediante o que Jung chamou de "sincronicidade" -quando acontecem eventos não relacionados [causalmente], mas que, quando tomados conjuntamente, [vemos que] se integram num todo. Eu vinha lendo Jung havia vários anos, tanto em estudos de pós-graduação na Universidade da Pensilvânia quanto no doutorado na Columbia (nos dois casos, em literatura comparada). Como muitas mulheres que chegaram à idade adulta no movimento feminista dos anos 70, eu acreditava que Jung tinha mais relevância para as vidas das mulheres do que Freud, que parece ignorar nossa metade da raça humana. Estudei literatura medieval intensamente, por isso conhecia todos os manuscritos que Jung lera, e tinha uma boa compreensão de seu conhecimento sobre mito, simbolismo, alquimia, religião comparada e história. O que me faltava era treinamento clínico, mas tive sorte por contar com a ajuda e o suporte de alguns dos mais respeitados acadêmicos e escritores em suas profissões clínicas, e eles me deram orientação nesse campo.

FOLHA - Quais são as principais descobertas de seu livro?
BAIR -
São muitas. Fui a única biógrafa de Jung que realmente fez uma pesquisa de sua vida e obra. Fui a arquivos onde encontrei por volta de 900 cartas que Jung trocou com altos oficiais do Partido Nazista e, ao fazer isso, fui capaz de provar conclusivamente que Jung não era um colaborador nazista. Também descobri que ele era um agente aliado na Segunda Guerra, conhecido como "Agente 488". Quando Eisenhower [1890-1969, general na Segunda Guerra e presidente dos EUA entre 1953 e 1961] quis distribuir panfletos à população civil alemã, para trazer a guerra a um fim rápido, ele consultou Jung sobre o que deveria ser escrito. Eu descobri o manuscrito original do "homem do falo solar", que levou Jung à descoberta do inconsciente coletivo, provando, assim, que ele não era um mentiroso ou um ladrão, mas o criador de sua teoria. Elas todas são produto de um intenso e difícil esforço de pesquisa, por meio do qual reuni tantos fatos quanto podia para chegar à mais acurada "verdade" sobre Jung.

FOLHA - A senhora menciona no livro os severos mecanismos de controle, pela família de Jung, de seu espólio e de sua memória. Foi difícil lidar com isso? A senhora se sentiu pressionada a incluir ou excluir dados em seu livro?
BAIR -
A família de Jung me recebeu bem desde o início da minha pesquisa e foi muito graciosa e generosa comigo ao longo dos sete ou oito anos que levei para escrever o livro. Por isso fiquei surpresa e chocada pela violência do ataque deles ao meu livro assim que publicado.
O acordo que tínhamos desde o início foi o mesmo que tive nos meus três livros anteriores (as duas pessoas vivas, Beckett e Beauvoir, e o espólio de Anaïs Nin): eles não leriam o livro antes de publicado; não tentariam interferir no que eu escrevi nem tentariam me influenciar de nenhuma maneira a me ajustar a suas visões. Eles aceitaram esse acordo, e, se fosse de outro modo, eu não teria sido capaz de escrever sobre Jung.
Todas as interpretações nas biografias que escrevo são minhas -e também os enganos ou erros factuais. Assumo total responsabilidade pelo que escrevo. Foi muito triste o fato de os herdeiros de Jung terem sido de alguma maneira levados a atacar meu livro, uma vez que eu tinha muita documentação para cada afirmação que fiz.
Estou aliviada porque, após dois anos tentando me fazer reescrever o livro em conformidade com seus desejos, os herdeiros de Jung não tiveram suporte legal para tanto em nenhum país.

FOLHA - Mas que pontos do livro eles exigiram que fosse alterado?
BAIR -
Você vai achar a minha resposta tão estranha quanto achei as reclamações deles. Não sei ao certo o que (ou talvez quem) levou os herdeiros de Jung a atacar meu livro, coisa que não tinham feito até a publicação. Suas principais objeções foram: 1) Jung tinha dois barcos à vela, e eu dei a vela vermelha para o barco errado. 2) Eu mencionei que ele quase caiu de uma ponte pênsil no Rheinfall [ponto mais alto das corredeiras do rio Reno], quando tinha 3 anos de idade. Eles reclamaram que não era uma ponte pênsil, embora os arquivos que eu consultei mostrem claramente que era. 3) Eles (os netos, a quem chamo de os herdeiros) reclamaram que eu difamei Emma Jung (que morreu em 1954 e, portanto, não podia ser difamada no sistema legal de nenhum país) quando escrevi que ela era uma mãe distante, mais preocupada com o trabalho do marido do que em estar próxima de suas crianças. Eu entrevistei quatro de seus cinco filhos, e todos disseram isso a mim e a muitos outros entrevistadores antes de mim que haviam escrito sobre isso. Os netos eram crianças quando Emma morreu e, embora lembrem dela com grande afeição (a qual estou certa de que é genuína), não estão qualificados para contradizer seus pais, os reais filhos de Emma. Essas foram as principais razões pelas quais eles acreditavam que os editores em todos os países deveriam impedir a circulação de meu livro até que eu o reescrevesse segundo tais especificações. Loucura, não?

FOLHA - A sra. afirma que Jung "se tornou tudo", após a publicação de "Tipos Psicológicos": desde um "deus", o "mais sábio dos homens", até um "perfeito idiota". E completa: "De fato, ao longo da segunda metade de sua vida, ele foi um pouco disso tudo".
BAIR -
Quando escrevi esse parágrafo conclusivo de um capítulo do livro, eu queria fazer uma "provocação" e queria que o leitor a tivesse em mente enquanto lesse o restante do livro. Em cada um dos capítulos que se seguem, por exemplo, ao falar da amizade de Jung com homens, das viagens dele à Índia ou à África, das relações dele com mulheres, mostro como essas descrições contribuem para as partes da "verdade total" da vida de Jung.

FOLHA - Jung era, como Freud e tantos outros o acusaram, um "anti-semita"? Ele de algum modo se valeu do regime nazista como meio de difundir e institucionalizar sua própria psicologia, assim como muitos nazistas se aproveitaram dele como via de legitimação da idéia de diferenças raciais?
BAIR -
Penso que Jung exibe o mesmo grau de anti-semitismo que era encontrado em quase toda a cultura européia de seu tempo, e que era certamente extrema na Suíça alemã. Mas chamá-lo de anti-semita é injusto e incorreto. Uma das partes importantes do livro é como demonstro que Jung fez muito para salvar judeus durante a Segunda Guerra e como acolheu judeus em sua psicologia analítica. Que ele tenha proferido afirmativas danosas sobre o caráter e a identidade judaicas em alguns de seus escritos é uma pena, porque elas obscurecem sua realização muito real em acolher e ajudar judeus que estavam em perigo. Como para muitos europeus de sua época, o balanço não é imaculadamente limpo, mas também não drasticamente manchado e sujo. E o que dizer de Freud, que chamava seus próprios seguidores de "judeus sujos" e que dizia estar envergonhado deles e constrangido por eles? Por que não fazemos as mesmas acusações de anti-semitismo a Freud?

FOLHA - O que a senhora pensa sobre o papel de Jung na família dele? O discurso junguiano sobre o valor da "individuação" (grosso modo, o desenvolvimento da singularidade pessoal de cada um) não é de algum modo "negado" pela atitude de Jung em relação à mulher, Emma, fazendo-a suportar, a contragosto, a presença de uma "segunda mulher" em casa, Toni Wolff?
BAIR -
Jung parece ser um dos poucos homens nos tempos contemporâneos que eram capazes de lidar tanto com uma mulher como com uma amante (ou, como ele chamava Toni Wolff, sua "outra mulher"). Mas ele foi capaz disso porque essas duas mulheres notáveis tornaram isso possível. Os filhos de Jung (quatro dos quais eu entrevistei para meu livro) achavam que seu pai fosse uma presença ausente, se posso fazer essa afirmação contraditória: ele estava sempre em casa, mas raramente presente na vida deles, pois estava sempre trabalhando. Jung foi muito mais amoroso como avô, e todos os seus netos lembram dele com grande ternura, amor e afeição.

FOLHA - É possível comparar a "intolerância" de Freud com relação às inovações teóricas de Jung -quando da ruptura entre os dois, em 1913- com a que o próprio Jung manifestou em relação a seus seguidores? A senhora concorda com a acusação de Richard Noll de que Jung articulou um "culto" religioso em torno de si?
BAIR -
Devemos lembrar que Freud estabeleceu, por quase um século, os termos pelos quais Jung seria considerado mundo afora quando, em 1913, publicou uma "História da Psicanálise" logo após Jung ter tido a coragem de romper com ele no que tange à teoria da libido. Freud disse que "a psicanálise é minha, eu a possuo, eu a criei, eu a inventei". Ele começa uma campanha deliberada para marginalizar e mesmo destruir Jung. E Jung, que tinha grande respeito por Freud, nada fez para denunciá-lo, mas permitiu que o tempo e a história julgassem se a teoria dele [de Jung] seria duradoura e respeitada. Eu verdadeiramente acredito que o século 20 foi freudiano, mas que o século 21 será junguiano. Pense nas pessoas hoje, em todo o mundo, que estão em busca de satisfação pessoal para suas vidas. Elas estão lendo Jung em número recorde e encontrando em sua teoria um modo de pensar que traz sustentação espiritual que elas não podem achar noutro lugar, na política, nas artes ou mesmo na religião organizada. A teoria de Jung da "individuação" ajuda as pessoas a aceitarem-se como são enquanto começam a longa jornada de auto-exame para tornarem-se as pessoas que querem ser. Dizer que Jung é um "culto religioso", como fez Richard Noll, é grosseiramente injusto. Seus livros -embora contenham grande quantidade de matéria interessante sobre a história cultural do século 19, que formou o pensamento de Jung- são injustos e inverídicos em sua insistência de que Jung, voluntariamente, criou um culto. Cultos podem ter de fato florescido ao redor de Jung (por exemplo, os muitos usos new age de seu nome onde não há absolutamente nenhuma conexão com ele ou com sua teoria), mas, se esses cultos cresceram em torno do nome de Jung, eles o fizeram sem nenhum "empurrão" da parte dele.

FOLHA - Conforme seu relato no livro, Jung manifesta, na prática de psicólogo, cada vez menos interesse por histórias de vida individuais, preferindo explorar o mundo dos símbolos arquetípicos. Isso não é um risco em termos das possibilidades "clínicas" da terapia junguiana?
BAIR -
Você está me pedindo aqui para dar explicações clínicas, e não sou uma clínica e não tenho nenhum treinamento clínico. Nunca tento me intrometer nas profissões analíticas. O que mostrei no meu livro é como o "médico doutor Jung" gradualmente se tornou menos interessado em tratar pacientes individuais e como se tornou o "professor Jung", no sentido de um filósofo, historiador ou outro scholar, que estava interessado em investigar "tipos" ou "arquétipos".

FOLHA - O que resta, a seu ver, como os principais legados de Jung para a cultura de nosso tempo?
BAIR -
Como é difícil pra mim avaliar o legado cultural de Jung! Deixe-me fazê-lo pessoalmente contando a você que, desde que meu livro foi publicado em inglês, em novembro de 2004, e na Alemanha, em novembro de 2005, tenho recebido algumas centenas de cartas de todo o mundo. As pessoas escrevem para me dizer o quão importante Jung é em suas vidas e como ler um de seus livros as levou a um estudo mais profundo de sua escrita, e o que essa escrita fez para tornar suas vidas melhores. O fato de eu ser convidada constantemente para falar sobre meu livro e de esse interesse por ele crescer o tempo todo faz-me pensar que estou correta quando digo que Jung terá enorme influência em nossa vida e época conforme o século desponta.

FOLHA - A senhora poderia dizer algo sobre a relação de Jung com o Brasil? Por exemplo, o que ele pensava do trabalho de Nise da Silveira?
BAIR -
Jung não escreveu ou falou diretamente do Brasil. Realmente sei que há um grande e importante contingente de analistas junguianos no Brasil, como sociedades que estudam sua teoria. Os analistas junguianos que eu conheço nos EUA, Inglaterra e França dizem-me que os brasileiros estão fazendo algumas das mais fascinantes e compensadoras pesquisas e escritos sobre Jung. Acredito que ele ficaria muito feliz em saber disso. Não sei sobre o conhecimento de Jung acerca de Nise da Silveira. Eu procurei pelo nome dela em todos os índices de Jung e não está lá. Mas ontem eu recebi e-mails de dois analistas junguianos, Thomas Kirsch e Andrew Samuels, e eles me lembraram que em 2000, quando eu estava assistindo a uma conferência em Londres, um jornalista brasileiro se apresentou a mim e me deu um folder de escritos a respeito de Nise da Silveira, mais fotocópias de alguns de seus quadros e desenhos. Dr. Kirsch me lembrou ontem que ele tinha escrito sobre ela em seu livro, "Os Junguianos". Em 2000, eu imediatamente comecei a investigar a conexão de Nise da Silveira com Jung, quando estava nos estágios finais da escrita de meu livro, e, se ela se afigurasse importante, eu precisaria escrever sobre ela. Fui incapaz de achar qualquer contato direto entre ela e Jung, que estava muito velho e doente na época em que ela esteve em Zurique. Não há em seus livros de apontamentos nenhum registro de que tenha se encontrado com ela.

FOLHA - Nise esteve diretamente em contato com ele em 1957, durante o 2º Congresso Internacional de Psiquiatria, em Zurique. A troca de cartas e o encontro com Jung marcaram para sempre os rumos profissionais de Nise, e seu pioneirismo na promoção da arte como caminho criativo e terapêutico para os doentes mentais.
BAIR -
Em 1957, Jung de fato apareceu no congresso, mas eu entendo que foi um momento muito breve; depois disso, ele teve pouco contato com os presentes; viu alguns velhos amigos e colegas, mas poucos novos. Todavia, pelo que você me diz, é claro que ele teve um contato com Nise da Silveira, mesmo que tenha sido breve da parte dele.
Mas, da parte dela, foi importante e duradouro, e isso mostra como a teoria dele foi influente para tantas pessoas.


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