São Paulo, domingo, 25 de julho de 2004

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OS "GRANDES TEXTOS BREVES" DO ESCRITOR URUGUAIO JUAN CARLOS ONETTI DESMANTELAM A TRADIÇÃO TRIUNFANTE DA FICÇÃO DO SÉCULO 20

O REALISMO ESQUARTEJADO

Divulgação
O escritor uruguaio Juan Carlos Onetti, autor de "A Vida Breve"


Juan José Saer

Por volta de 1960, para muitos dos jovens narradores que encararam o trabalho literário, a forma que representava a máxima aspiração estética, o modelo de toda perfeição narrativa, não era nem o romance nem o conto, e sim a novela. Eqüidistante da súbita transcrição do conto, semelhante à do poema, e da elaboração lenta do romance, que parecia valer-se de uma série de mediações consideradas um tanto indignas devido ao caráter técnico e vagamente desnecessário a elas atribuído, a novela tinha a atraente singularidade de permitir um certo desenvolvimento narrativo ao mesmo tempo em que parecia surgir de uma concepção intuitiva e repentina, e até, quanto ao tempo material de execução, oferecer a possibilidade de uma relativa rapidez, capaz de preservar o frescor exaltante da inspiração. E, embora a dificuldade de realizar tão exorbitantes perspectivas fosse evidente, o fascínio exercido pela novela só veio a decair quando, em meados dos anos 60, o gênero "grande romance da América", patética superposição de estereótipos latino-americanos concebida para conquistar o mercado anglo-saxônico, mediante a sujeição a suas normas comerciais de conteúdo e formato, desalojou das livrarias os discretos e admirados volumes com cerca de cem páginas que perpetuavam tantas obras-primas. As normas de extensão que circulavam na época -de 20 a 120 páginas mais ou menos- eram sem dúvida convencionais, mas tinham a vantagem de ser amplas o bastante para oferecer muitas opções construtivas à imaginação e ao mesmo tempo reduzir ao máximo a tirania do gênero, cuja freqüentação, para dizer a verdade, estimula nos narradores certa liberdade formal não apenas com a novela, mas também com qualquer outro gênero pelo qual se aventurem. Mas é óbvio que não eram nem a extensão nem o tema que estimulavam a imaginação dos narradores, e sim alguns atributos propriamente poéticos e retóricos, como o ritmo, o cuidado verbal, o laconismo, a sugestão, em contraste com a discursividade, o prosaísmo, as convenções estruturais, o conceitualismo do romance. O romance era um pouco o primo pobre da criação narrativa, e a tradição novelística latino-americana só existia graças a duas ou três exceções. É verdade que, nos manuais, os romances pululavam, mas suas pautas estéticas já pertenciam a épocas passadas, e, se analisarmos retrospectivamente o mapa da narração latino-americana a partir de 1960, salvaremos pouquíssimos romances no sentido convencional do termo, ao passo que a abundante produção de contos e de novelas constitui uma coleção de indiscutível riqueza. Mariano Azuela, Horacio Quiroga, Roberto Arlt, Jorge Luis Borges, Bioy Casares, Silvina Ocampo, Juan Rulfo, Juan Carlos Onetti, Antonio di Benedetto, Felisberto Hernández etc. são a prova mais do que suficiente de que, com a dupla exceção de Arlt e de Onetti (e talvez também de Alejo Carpentier), a criação narrativa latino-americana da primeira metade do século 20 fora capaz de prescindir do romance. Uma das características mais atraentes da obra de Onetti é justamente o fato de as diversas narrações que a compõem não corresponderem a nenhum formato fixo e que cada uma delas se cristaliza graças a uma necessidade interna que rege a extensão, a estrutura, a voz narrativa. Esses elementos, que poderíamos chamar universais da narração, são sempre utilizados de maneira inovadora e complexa, adequada a cada caso concreto, o que faz com que, por debaixo da monocórdia elegia onettiana, o conjunto de suas ficções ofereça uma farta variedade formal. Isso também vale para seus romances, mas salta à vista em seus contos e novelas. Entre seus textos breves mais bem-sucedidos ou pelo menos mais ambiciosos, não há dois cuja construção se assemelhe, embora todos levem a marca inconfundível de sua inconfundível personalidade artística.

Unicidade vívida
Tão estimável, exato e sutil na maioria de suas páginas, Barthes, no entanto, errava ao aplicar o dogma estruturalista à análise da narrativa: essa suposta estrutura subjacente, esse repertório de invariantes pode até existir em toda ficção, mas não tem mais valor que o cavalete, a tela e o bastidor ou o tópico sobre o qual o artista trabalha -o nu ou o retrato de família, por exemplo- no interior da superfície pintada, em relação à obra única e singular que sai de suas mãos. Cada um dos grandes textos breves de Onetti contribui para confirmar essa unicidade vívida que justifica toda obra de arte.
O narrador, por exemplo, para além das classificações acadêmicas do foco, em quase todos seus textos tem sempre uma posição, uma distância, uma capacidade de perceber e de compreender em relação ao narrado que é diferente e válida apenas para o relato a que se aplica. O famoso "Não sei que tanto vocês vêem nesse coiso" (Henry James), proferido por Onetti no bar La Fragata, diante da cara de escândalo de Borges e Rodríguez Monegal, poderia ser explicado pela perseverança admirável -de James- na rigorosa utilização de um mesmo ponto de vista para cada texto, que talvez Onetti, leitor de Conrad, Joyce e Faulkner, considerasse coisa do passado (e talvez pensasse o mesmo do pudor jamesiano, não menos corrosivo, porém, que a crueldade de seus sucessores).
A opacidade do mundo social, cuja leitura se mostra difícil em muitos textos de Henry James e que vem a par da impossibilidade de extrair sentido e moral dos diversos comportamentos, se tornou para Onetti um atoleiro viscoso e labiríntico, pátria obscura do desgaste, do fracasso e da perdição. Conforme a estratégia de cada relato, os vários narradores intuem, verificam e às vezes até suscitam a catástrofe prevista desde o início.
É sempre a derrota o que os narradores de Onetti contam ou pressupõem, embora certos textos, como "Jacob y el Otro", por exemplo, finjam acabar bem. Contudo um dos traços exemplares de sua narrativa é que, apesar do intenso pateticismo de seus temas e situações, a organização formal supera o risco do melodrama. O vocabulário dos sentimentos e das paixões é perfeitamente natural em suas narrações, graças ao trabalho estilístico que redistribui as palavras desgastadas pelo uso indiscriminado que o comércio melodramático faz delas, numa construção verbal que as relativiza e as poda, devolvendo-lhes o sentido original.
Essa característica é talvez o que sua literatura tem de mais pessoal: um distanciamento não apenas irônico ou cético, mas sobretudo formal, em relação ao universo trágico que é sua matéria narrativa. Em seus relatos, tudo leva à catástrofe: o desespero, como em "Tão Triste como Ela" (Cia. das Letras), mas também, como em "La Cara de la Desgracia", menos previsível, e talvez por isso mais cruel, absurda, a esperança.
A observação de Gilbert Murray segundo a qual "na tragédia grega, quando um homem é chamado de feliz, seu futuro se anuncia negro" parece ter sido pensada para os personagens de Onetti, muitos dos quais são conscientes da situação, como o vendeiro de "Los Adioses", que logo no magnífico primeiro parágrafo do romance, que todos os aspirantes a escritor de minha geração sabíamos de cor, anuncia a inelutável derrota. E um dos mais importantes achados desse relato, para não dizer o principal, é justamente a distância e a posição do narrador em relação ao que ele narra.
A distância e a posição, que são literalmente espaciais, transcendem esse sentido literal e traduzem a fragmentariedade do conhecimento, a essência ambígua do acontecer ao mesmo tempo, em que, por mostrá-lo de longe, por meio dos sinais exteriores de seu comportamento, dão ao protagonista o jeito de um inseto que, com um misto de despudor e piedade, vemos debater-se em sua agonia. Também resultam da posição do narrador certos acontecimentos que poderíamos chamar hipotéticos, que não ocorrem no espaço-tempo empírico do relato, e sim na imaginação um tanto errática do narrador, enredado em devaneios e suposições. A propósito do espaço-tempo, seria bom nos determos em Santa María, o lugar imaginário de Onetti, situado em um impreciso ponto geográfico entre Montevidéu e Buenos Aires, ao menos no mapa de seu inventor, Brausen, e ao qual só é possível dar o nome genérico de lugar devido a seu estatuto e suas dimensões imprecisas, inconstantes, já que às vezes é apenas uma cidade, à qual se acrescenta sua colônia, mas que por momentos ("Jacob y el Otro") tem as características de um pequeno país da América do Sul. Esse lugar, diferentemente de outros territórios imaginários da literatura, que disfarçam ligeiramente uma região real, tem uma série de estranhas características que expressam o que poderíamos chamar de tendências barrocas de Onetti, já presentes em "A Vida Breve" e que alcançam uma curiosa exacerbação em "Para una Tumba sin Nombre" e "La Muerte y la Niña". Nesses dois textos, espaço e tempo, ficção e narração, experiência e fantasia, verdade e falsidade, realidade e representação literária são submetidos a diversas permutas, nas quais pressentimos que a reflexão sobre os paradoxos da ficção prevalece sobre a própria representação.

Regresso ao infinito
Em "Para una Tumba sin Nombre" (1959), as várias interpretações de um acontecimento vão anulando umas às outras à medida que se sucedem, e certos anacronismos semeados ao longo do texto parecem explicar-se na conclusão, em que se sugere que nada do que se conta aconteceu de fato, e a suposta história da mulher e do cabrito não passa da justaposição de três ou quatro versões inventadas. Se levarmos em conta que o que lemos é um texto de ficção, construído segundo as pautas habituais (embora estilisticamente singulares de Juan Carlos Onetti) da representação realista, veremos até que ponto essa ficção na ficção é um regresso ao infinito, cuja filiação barroca é impossível ignorar. Em "La Muerte y la Niña" (1973), o desenho se complica ainda mais: Brausen, o inventor da Santa María, tem uma estátua na praça, estátua eqüestre, diga-se de passagem, em que o cavalo de bronze vai aos poucos adquirindo feições bovinas, numa alusão sarcástica à principal fonte de riqueza da região. Por momentos, os personagens reconhecem Brausen como o fundador da cidade, o que já é insólito, mas de repente o evocam, nem sempre com ironia, como o deus que os criou e rege seus destinos: "Pai Brausen que estás no Nada" ou "Brausen pode ter feito eu nascer em Santa María com 30 ou 40 anos de passado inexplicável, para sempre ignorado. Tem a obrigação, por respeito às grandes tradições que ele deseja imitar, de ir me matando, célula a célula, sintoma a sintoma". A autonomia do território imaginário muda de sinal; já não é mais o universo empírico maquiado de tal maneira que o leitor não pode deixar de reconhecer o modelo a que se refere, e sim uma peripécia inédita no eterno conflito que une e separa, anula e complementa, substitui e prolonga, revela e trai o real e sua representação. "As grandes tradições que ele deseja imitar": os habitantes de Santa María se encontram, em relação ao demiurgo que lhes deu vida e os pôs em seu universo secundário, numa situação semelhante à dos homens que vivem no que poderíamos chamar de realidade primária, que é o mundo de Brausen: foram lançados nele e, embora sejam conscientes desse fato inequívoco, mas inexplicável, sabem também que as combinações do acaso ou o capricho de seu criador são indiferentes ao absurdo destino que lhes foi fabricado, qual seja, serem jogados à luz do dia sem porquê, para serem abandonados à desgraça (vocábulo recorrente do léxico onettiano) e por último, como um boneco estragado pela crueldade inocente ou distraída de uma criança, serem atirados no escuro.

Século de Ouro
Enquanto a temática que se convencionou chamar de existencial chegou à literatura de Onetti como herança de seu século e da tradição rio-platense, especialmente por meio da obra de Roberto Arlt, as reflexões onettianas sobre o mundo e sua representação, problema inerente a todo exercício da arte de narrar, reintroduzem na estrutura mesma dos textos -já que o autor, dado seu temperamento, não parecia interessado na formulação conceitual- um repertório de situações e de paradoxos desaparecidos do campo de interesses da ficção desde fins do Século de Ouro, talvez por causa das lentas e laboriosas conquistas do realismo que culminaram na obra dos grandes narradores dos séculos 18 e 19. De um modo pessoal, Onetti participa do vasto desmantelamento desse realismo triunfante do qual a ficção do século 20 se aproximou. Nesse tipo de problemas, parece ter contado, na literatura em espanhol, com um único e inesperado precursor: Macedonio Fernández. Se bem que, como o "Museo de la Novela de la Eterna" só foi publicado postumamente em meados dos anos 60, ocorreu uma curiosa inversão na cronologia, e Onetti continua sendo o precursor solitário desses embates contra o sistema realista de representação.
A questão é abordada por Borges em alguns ensaios e aparece em certos elementos isolados de seus contos (na deliberada identificação do autor-narrador-protagonista de "O Aleph", por exemplo), mas é Onetti, em "La Vida Breve", no final dos 50, quem a introduz não como um mero conceito, mas no plano formal do romance.
Essas novelas não se esgotam, nem por sombra, nas primícias estruturais que oferecem ao leitor. Nelas se descortina um quadro apaixonado e vivo; a desgraça e a crueldade, a resignação e o fracasso, a raiva e a autodestruição são seus temas prediletos, mas também o amor, a culpa, a nostalgia e, sobretudo, a compaixão.
Um personagem, chafurdando nas águas lodosas da mais lúcida baixeza, se abandona, no entanto, a um último estremecimento de piedade, não apenas pelos homens, mas também pelas forças sem nome que regem seu destino: "Pena da existência dos homens, pena de quem combina as coisas desse jeito desastrado e absurdo. Pena das pessoas que tive que enganar só para continuar vivendo. Pena (...) de todos os que na verdade não têm o privilégio de escolher". Assim como os personagens de toda grande literatura, os de Onetti têm um rosto que cedo ou tarde acabamos reconhecendo: é o de cada um de nós.

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.


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