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Com a livre concorrência, a insegurança da vida sentimental se estendeu
à vida profissional
Descaminhos do caráter
JURANDIR FREIRE COSTA
especial para a Folha
Dois livros, recém-editados,
discutem a idéia de caráter moral.
O primeiro, "A Corrosão do Caráter" (Editora Record), de Richard
Sennett, de forma explícita; o segundo, "O Que é a Filosofia Antiga" (Editora Loyola), de Pierre
Hadot, de modo tangencial, mas
com igual sensibilidade crítica. A
relevância dos livros para o debate ético entre nós é enorme.
Usamos a palavra caráter, na
língua corrente, para falar da maneira como a pessoa sente, pensa
e age em face dos ideais morais estabelecidos. "Ter caráter", como
assinala o dicionário "Aurélio",
significa ser alguém "firme, coerente nas atitudes e com domínio
de si". Ora, Sennett e Hadot mostram que o caráter moral não é
uma manifestação irrefletida de
nossos anjos ou demônios interiores. "Ter caráter" é um aprendizado, uma disciplina do espírito
que depende do esforço individual, mas também dos meios culturais à disposição dos indivíduos.
Na Antiguidade clássica e nos
primórdios do cristianismo, diz
Hadot, a busca da felicidade implicava sobretudo a luta contra as
paixões da alma. O caráter era forjado na ascese pessoal, cujo objetivo era o controle dos prazeres
ilusórios, que não eram apenas os
prazeres do sexo, da comida ou da
bebida, como costumamos pensar, mas, principalmente, os prazeres do poder, do dinheiro, da
ostentação, da ira, da vingança ou
da vaidade. Estóicos, epicuristas,
céticos, cristãos etc. viam na razão
e na vontade os meios de anular a
cegueira moral das paixões e alcançar a moderação necessária à
realização da justiça. A força do
caráter era dada pela capacidade
de bem governar a si ou aos outros.
Na modernidade ocidental, como fez ver Sennett, ocorreu uma
radical alteração do "ethos" antigo: o cuidado com o caráter deu
lugar à preocupação com a "personalidade". O outro deixou de
ser o fiador da fidelidade do sujeito ao bem comum para se tornar
o cúmplice ansioso ou "voyeurista" de suas idiossincrasias psicológicas. A privacidade burguesa
criou a "tirania da intimidade" e
nos levou a crer que a felicidade
consiste, quase exclusivamente,
em satisfazer as aspirações da vida afetiva. O bem-viver não era
mais descrito como realização das
virtudes públicas, mas como satisfação sentimental.
Em "A Corrosão do Caráter",
Sennett dá um passo a mais na
análise das metamorfoses da subjetividade. A cultura da intimidade, ao deslocar o centro da identidade pessoal do público para o
privado, gerou um fator de instabilidade permanente na consciência de si. Os afetos, em especial os
afetos sexuais, se mostraram incapazes de fornecer critérios duradouros para o julgamento ético
do que somos ou queremos ser,
dada a própria maneira como se
constituem. Ou seja, uma das formas que temos de saber "o que é
uma emoção privada" é justamente poder reconhecer o fenômeno mental sentido como algo
que independe do escrutínio público para ser julgado bom ou
mau. A vida emocional íntima, ao
contrário da vida pública, é aquela em que podemos exercer, livremente, o direito à experimentação em matéria de estilização de
preferências ou inclinações. Essa
é a marca original e irrepetível da
"personalidade" privada.
A liberdade íntima, entretanto,
tem um ônus. Decidir, sozinhos,
se o que vivemos emocionalmente é bom ou mau pode ser uma tarefa hercúlea. O justo caminho
pode se revelar, rapidamente, um
descaminho, e a certeza de hoje
pode se mostrar, amanhã, auto-engano, obrigando-nos a rever
verdades recentes sobre nós mesmos. O efeito cultural da "tirania
da intimidade" não foi, portanto,
a autonomia em relação ao "outro
público", mas a dependência
transferida para os técnicos em
normalidade psicológica.
No entanto, a erosão da confiança em si, provocada pela fé na
"sabedoria dos sentimentos", foi
contrabalançada pela permanência de outras instâncias formadoras de identidade, entre as quais o
trabalho. O valor do trabalho e o
apreço pela competência profissional continuaram sendo estímulos para que o sujeito continuasse a se ver como alguém potente para agir com retidão e eficiência. Podíamos ter perdido a
atração pela ação política; podíamos estar confusos quanto ao valor moral de muitas experiências
emotivas, mas dispúnhamos de
critérios razoavelmente claros e
partilhados para avaliar a criatividade e a produtividade de cada
um, no processo de fabricação de
artefatos úteis ao mundo.
Atualmente, mesmo esse frágil
gancho com o que está "fora de
nós" veio abaixo. Com as novas
regras da livre concorrência, a insegurança da vida sentimental se
estendeu à vida profissional.
Qualquer parceria se tornou precária. A presença do outro não
mais suscita apelo à colaboração,
mas sim desejo de instrumentalização. Tornamo-nos uma multidão anônima, sem rosto, raízes ou
futuro comum. E, se tudo é provisório, se tudo foi despojado da
dignidade que nos fazia querer
agir corretamente, quem ou o que
pode apreciar o "caráter moral"
de quem quer que seja?
Na cultura da "flexibilidade",
como reza o jargão neoliberal, ou
fingimos acreditar em valores que
não mais existem ou acreditamos,
verdadeiramente, em miragens
-e a alienação é ainda maior.
Isolados do público, pela paixão
dos interesses privados, e dos
mais próximos afetivamente, pela
degradação do trabalho e pela volubilidade sentimental, erramos
em direção ao nada ou a qualquer
coisa. Tanto faz o bem e o mal, o
justo e o injusto, quando o que temos como guia é o bem-estar do
corpo e das sensações.
Resta acreditar que "consumir
objetos de desejo" é o mesmo que
"satisfazer desejos". Enquanto
acreditamos nisso, o show continua: no desfile das drogas, cartões
de crédito, pornografia na Internet etc. No momento em que deixamos de acreditar, a "alegria"
muda de endereço: passa de nossos corpos para as mãos de quem
comanda o espetáculo. Vide a epidemia de violência imotivada e
distúrbios físico-mentais que fazem a "festa" dos patrões da indústria de armamentos e de medicamentos.
Hadot e Sennett, é óbvio, não
nos convidam a ser viúvas de Atenas, Roma ou Londres e Paris de
fim de século. Ambos são mais sábios ou sagazes, como se preferir.
Dizem, apenas, que o sentido da
vida e da morte não se contabiliza.
Podemos mudar o vocabulário
que deu sentido à palavra "caráter", e por que não? Podemos
criar formas inéditas de avaliar o
bem e o mal que nos convêm, e
por que não? Só duvido que possamos rebaixar nossa imaginação
criativa a ponto de reduzi-la à bisonha e miserável rotina de acumular dinheiro, compulsiva e indefinidamente, sem jamais perguntar por quê e para quê?
Jurandir Freire Costa é psicanalista, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e autor de "A Inocência e o Vício" (Relume-Dumará) e "Sem Fraude Nem Favor"
(Rocco). Ele escreve mensalmente na seção
"Brasil 500 d.C.", da Folha.
E-mail:jfreirecosta@alternex.com.br
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