São Paulo, Domingo, 25 de Julho de 1999
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CINEMA
Um dos responsáveis pela Nouvelle Vague, o crítico André Bazin deu status intelectual aos filmes nos anos 50
Educação do olhar

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Homem culto e crítico de cinema, André Bazin é, com Henry Langlois -que foi diretor da Cinemateca Francesa-, um dos dois responsáveis pela Nouvelle Vague, movimento cinematográfico do qual surgiram muitos filmes e os pequenos cinemas de arte em Paris.
Todos os cineastas da Nouvelle Vague -de Truffaut a Godard- são unânimes em dizer que André Bazin deu status intelectual ao cinema na década de 50, tendo como mote a famosa pergunta: o que é o cinema?
Para os jovens da Nouvelle Vague, o crítico André Bazin era um cineasta que não fazia filmes, mas que fazia cinema ao falar dos filmes. Tão importante quanto fazê-los era falar dos filmes, obsessão que volta e meia ressurge nos veteranos da Nouvelle Vague, a exemplo de Jean-Luc Godard, para quem o grande pecado do cinema atual é que os cineastas não mais conversam entre si.
O sentimento de solidão tomou conta dos cineastas. A troca de idéias tornou-se problemática. Antes de André Bazin, o pensador do plano sequência, existiu Roger Leenhardt, o teórico mais sutil do cinema na França. Ambos foram amigos e admiradores. O epitáfio de Bazin, feito por Leenhardt em 1959, é célebre por tê-lo colocado ao lado do filósofo Sócrates, e não de Aristóteles.
Antes de dialetizar o sentido de um filme em meio a outros filmes, André Bazin partia de um detalhe concreto, de uma imagem viva, de um pequeno detalhe do plano cinematográfico.
O cineasta François Truffaut, filho único, morou uns tempos na casa de Bazin. Este tirou Truffaut duas vezes da cadeia. Seu primeiro filme, "Os Incompreendidos" (1959), é dedicado ao grande crítico que alentava o projeto de realizar um curta-metragem documentário sobre as Igrejas de Roma. Mas não deu tempo. André Bazin morreu sem filmar e sem ver a estréia de seu discípulo Truffaut.
A patota do "Cahiers du Cinéma" presta até hoje um merecido culto a André Bazin, que integra a notável tradição de crítica de arte na França, a qual teve seu começo com Diderot, depois Baudelaire, a que se seguem Élie Faure e André Malraux.
Cinema, arte sem futuro. Cumpriu-se a profecia. Na metade do século 20, em Paris, a morte do cinema foi pranteada pela Nouvelle Vague como o cinema criança, o "petit enfant" mudo, que começa a falar e logo morre para dar vida à TV. A tese de Godard, dialogando com André Malraux, é que o cinema pós-pintura teve morte depressa, mas essa arte sem futuro produziu o século 20. É clássica sua definição: "Cinema, arte do século 19, que traz o 20".
A crítica francesa é a melhor crítica estética do mundo, segundo Godard em sua "História do Cinema". Nesta, André Bazin é homenageado como o filósofo da imagem. O cinema nasce com a pintura moderna de Édouard Manet.
A morfogênese do cinema foi o lance crítico revelado pela Nouvelle Vague, graças à incorporação da psicologia da arte feita por André Malraux, segundo a qual o fim da pintura representativa coincide com o nascimento do cinema como arte de ficção. Da pintura ao cinema. Resulta daí a formulação engenhosa e provocativa de Godard: a Nouvelle Vague, em vez de começar alguma coisa, foi na verdade uma porta que se fechou, pois o cinema começou a morrer justamente com o advento da televisão e a morte de André Bazin.
Embora dotado de um raciocínio sempre claro ("Cidadão Kane" é um americano dispendioso, com grana, que conquista em vão o mundo porque perdeu a infância), André Bazin fazia crítica de cinema usando a linguagem da metáfora.
Recordo-me do nosso Paulo Emílio na Escola de Comunicações da USP, já cercado por uma platéia libeluneoliberal: todo filme brasileiro tem de ser visto. Atenção: o cinema é produtor de sentido.
Eis Bazin, agora, neste ano, falado por Jean-Luc Godard: o cinema produz o século 20. Essa montagem como atração implícita de idéias caracterizará o procedimento de todo cinema moderno. É o caso por exemplo de Glauber Rocha, discípulo além-mar de Bazin, pensando em Orson Welles como repórter na Brasília de Ernesto Geisel: o golpe de 64 é um golpe de "Roliudi"! A comunicação forma e deforma a história, eis a façanha das Pictures.
Foi o cinema que ensinou a Bazin o olho do tempo, isto é, a história na segunda metade do século 20, enquanto a televisão, médium de difusão e comércio, significará o olhar degradado ou, parafraseando Karl Marx: o sentido deseducador da pólis.
A TV nasceu de um tubo do cinema, mas é difícil afirmar que o cinema morto orientará o vídeo vivo do século 21. De resto, a função da TV é produzir o esquecimento, enquanto o cinema está interessado nas lembranças, ainda que tenha antevisto o horror nazi-fascista antes de Auschwitz.
Esta é a lição do grande crítico André Bazin: o cinema ensina a olhar melhor o mundo.


Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Espaço e Tempo), entre outros.


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