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CINEMA
Um dos responsáveis pela Nouvelle Vague, o crítico André Bazin deu status intelectual aos filmes nos anos 50
Educação do olhar
GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha
Homem culto e crítico de cinema, André Bazin é, com Henry
Langlois -que foi diretor da Cinemateca Francesa-, um dos
dois responsáveis pela Nouvelle
Vague, movimento cinematográfico do qual surgiram muitos filmes e os pequenos cinemas de arte em Paris.
Todos os cineastas da Nouvelle
Vague -de Truffaut a Godard-
são unânimes em dizer que André Bazin deu status intelectual ao
cinema na década de 50, tendo como mote a famosa pergunta: o
que é o cinema?
Para os jovens da Nouvelle Vague, o crítico André Bazin era um
cineasta que não fazia filmes, mas
que fazia cinema ao falar dos filmes. Tão importante quanto fazê-los era falar dos filmes, obsessão
que volta e meia ressurge nos veteranos da Nouvelle Vague, a
exemplo de Jean-Luc Godard, para quem o grande pecado do cinema atual é que os cineastas não
mais conversam entre si.
O sentimento de solidão tomou
conta dos cineastas. A troca de
idéias tornou-se problemática.
Antes de André Bazin, o pensador
do plano sequência, existiu Roger
Leenhardt, o teórico mais sutil do
cinema na França. Ambos foram
amigos e admiradores. O epitáfio
de Bazin, feito por Leenhardt em
1959, é célebre por tê-lo colocado
ao lado do filósofo Sócrates, e não
de Aristóteles.
Antes de dialetizar o sentido de
um filme em meio a outros filmes,
André Bazin partia de um detalhe
concreto, de uma imagem viva, de
um pequeno detalhe do plano cinematográfico.
O cineasta François Truffaut, filho único, morou uns tempos na
casa de Bazin. Este tirou Truffaut
duas vezes da cadeia. Seu primeiro filme, "Os Incompreendidos"
(1959), é dedicado ao grande crítico que alentava o projeto de realizar um curta-metragem documentário sobre as Igrejas de Roma. Mas não deu tempo. André
Bazin morreu sem filmar e sem
ver a estréia de seu discípulo Truffaut.
A patota do "Cahiers du Cinéma" presta até hoje um merecido
culto a André Bazin, que integra a
notável tradição de crítica de arte
na França, a qual teve seu começo
com Diderot, depois Baudelaire, a
que se seguem Élie Faure e André
Malraux.
Cinema, arte sem futuro. Cumpriu-se a profecia. Na metade do
século 20, em Paris, a morte do cinema foi pranteada pela Nouvelle
Vague como o cinema criança, o
"petit enfant" mudo, que começa
a falar e logo morre para dar vida
à TV. A tese de Godard, dialogando com André Malraux, é que o
cinema pós-pintura teve morte
depressa, mas essa arte sem futuro produziu o século 20. É clássica
sua definição: "Cinema, arte do
século 19, que traz o 20".
A crítica francesa é a melhor crítica estética do mundo, segundo
Godard em sua "História do Cinema". Nesta, André Bazin é homenageado como o filósofo da
imagem. O cinema nasce com a
pintura moderna de Édouard
Manet.
A morfogênese do cinema foi o
lance crítico revelado pela Nouvelle Vague, graças à incorporação
da psicologia da arte feita por André Malraux, segundo a qual o fim
da pintura representativa coincide com o nascimento do cinema
como arte de ficção. Da pintura ao
cinema. Resulta daí a formulação
engenhosa e provocativa de Godard: a Nouvelle Vague, em vez de
começar alguma coisa, foi na verdade uma porta que se fechou,
pois o cinema começou a morrer
justamente com o advento da televisão e a morte de André Bazin.
Embora dotado de um raciocínio sempre claro ("Cidadão Kane" é um americano dispendioso,
com grana, que conquista em vão
o mundo porque perdeu a infância), André Bazin fazia crítica de
cinema usando a linguagem da
metáfora.
Recordo-me do nosso Paulo
Emílio na Escola de Comunicações da USP, já cercado por uma
platéia libeluneoliberal: todo filme brasileiro tem de ser visto.
Atenção: o cinema é produtor de
sentido.
Eis Bazin, agora, neste ano, falado por Jean-Luc Godard: o cinema produz o século 20. Essa montagem como atração implícita de
idéias caracterizará o procedimento de todo cinema moderno.
É o caso por exemplo de Glauber
Rocha, discípulo além-mar de Bazin, pensando em Orson Welles
como repórter na Brasília de Ernesto Geisel: o golpe de 64 é um
golpe de "Roliudi"! A comunicação forma e deforma a história, eis
a façanha das Pictures.
Foi o cinema que ensinou a Bazin o olho do tempo, isto é, a história na segunda metade do século 20, enquanto a televisão, médium de difusão e comércio, significará o olhar degradado ou, parafraseando Karl Marx: o sentido
deseducador da pólis.
A TV nasceu de um tubo do cinema, mas é difícil afirmar que o
cinema morto orientará o vídeo
vivo do século 21. De resto, a função da TV é produzir o esquecimento, enquanto o cinema está
interessado nas lembranças, ainda que tenha antevisto o horror
nazi-fascista antes de Auschwitz.
Esta é a lição do grande crítico
André Bazin: o cinema ensina a
olhar melhor o mundo.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é professor de ciências sociais na Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Espaço e Tempo), entre outros.
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