São Paulo, domingo, 25 de agosto de 2002

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O SAMBISTA SEM SAUDADES


PAULINHO DA VIOLA FALA DE PIXINGUINHA E JACOB DO BANDOLIM, AOS QUAIS CONHECEU QUANDO AINDA ERA MENINO, DIZ QUE A MÚSICA BRASILEIRA É MUITO "RECENTE" E DESTACA A IMPORTÂNCIA DO VIOLONISTA GAROTO PARA O SURGIMENTO DA BOSSA NOVA


Arthur Nestrovski
Nuno Ramos
enviados especiais ao Rio

Ele flutua quando anda e dedilha um violão invisível enquanto fala. Nada nele carrega peso nem presença -tudo parece sinal, memória, indício de uma outra coisa, de um outro lugar. No entanto fala, gosta de falar, passando ao canto sem fronteira nítida, embora seu pensamento seja sempre alusivo, parentético, como um sistema de bonecas russas à procura da menor e mais oculta.
Nunca responde diretamente a nada, como se cada pergunta devesse ser comentada, em vez de respondida. Recolhe as migalhas com o miolo do pão, numa delicadeza de miniaturista. Reclama da umidade da casa, mas seria difícil imaginá-lo perto da praia. Algo ali parece esperar uma mudança, mas permanece o que é, como a piscina lá fora, vazia.
Paulinho da Viola nos recebeu -na sala em frente à marcenaria onde ouve Bach e Mozart, mas principalmente Brahms- em sua casa em Itanhangá, no Rio de Janeiro, para uma conversa de mais de quatro horas. Receber, no caso, além da gentileza extrema, do cafezinho e da goiabada com requeijão (ele prefere marmelada), significa introduzir ao mundo suspenso da música e da bondade uma música feita de sambas e de choros, mas também de histórias e casos exemplares, de detalhes e pequenas frases que abrem passagem ao sentido e à vida verdadeira. Ele parece, de alguma forma, o portador dessa chave, que não é feita tanto de memória quanto de poesia e de canção.
Por isso, perto de completar 60 anos, não sente saudades e passa uma maturidade que não é a do velho, mas de quem, ao velar pelo que foi, vela pelo que ainda não se formou. Por isso também suas respostas desviam e deixam o assunto sempre em suspensão, como se soubessem que somente o que ainda não se concluiu pode nascer todo dia.

Você cresceu numa casa onde se fazia muita música. Como foi ser menino nesse ambiente?
Meu pai sempre teve músicos na casa dele. Ou era o pessoal do choro ou o do samba. E, naquela época, quando era o pessoal do choro, ninguém cantava. Ficava todo mundo compenetrado, quase nem se falava. Meu pai tocou 35 anos com Jacob do Bandolim [no conjunto Época de Ouro]. E eles conversavam com os instrumentos. Jacob, então... Eles se olhavam nos olhos e tocavam; e estavam conversando.
Saía tudo ali na hora ou eram músicas conhecidas?
Muita coisa na hora, aquelas variações todas. E ninguém cantava. Ainda mais quando o Jacob [1918-69] estava presente. Nas reuniões na casa dele, aonde iam Pixinguinha [1898-1973] e tantos outros, era a mesma coisa. A não ser que estivesse também algum cantor, convidado especial naquela noite.
Curioso, porque muitos choros têm letra.
É verdade. Mas vou dizer uma coisa para você: eu não gosto. Alguns choros históricos receberam letra depois e se tornaram marcantes assim. É o caso do "Carinhoso", do Pixinguinha, que foi feito em 1917. Quando a gente aprendeu a tocar "Carinhoso", mais tarde, aquilo já estava tão difundido que dava a sensação de ser uma coisa só. Mas eu, que fui do mundo do choro desde pequeno, quando vejo um choro em que alguém põe uma letra... parece que engessa a música.
Você chegou a tocar com Jacob?
Eu não ousaria. Convivi muito com ele; mas, quando comecei a tocar, gostava mais era de ouvir. E Jacob gostava que eu ficasse ali perto. Às vezes ele afinava o bandolim e ficava olhando nos meus olhos; tinha confiança no meu ouvido. A minha maior honra foi uma vez em que o Jacob me deu o bandolim para encordoar. Eu devia ter uns 15 anos.
Falando desses tempos do choro, você passa a impressão de algo quase mítico.
Eu me sinto um felizardo de ter presenciado algumas coisas. Mas vou lhe dizer: não sinto saudade. Não preciso sentir saudade. A música brasileira me parece uma coisa tão, tão recente... Uma mistura de várias coisas, na situação mais adversa, algo de extremamente diversificado e rico, num espaço muito curto de tempo.
Não dá para ter saudades. Nossa música popular de massa tem o quê? Uns 70 anos. Meu pai tem 83! Então, não tenho saudade. A música está presente. Eu faço assim: está aqui.
Então vamos falar de um amigo do seu pai. Que importância teve a música de Pixinguinha para você?
Pixinguinha, para mim, é... Deus no céu, ele aqui. Ele e o Luiz Gonzaga [1912-89]. São as duas grandes figuras, as mais importantes da nossa música popular. E "Carinhoso", para mim, é a música do século.
Pensando nesses 70 anos, você veria uma "época de ouro", que teria acabado? Como você vê a época atual, em relação a esse tempo?
Olha, até entendo que uma geração anterior à minha se refira a determinada era de ouro. Mas não gosto muito disso, não. Acho que nós tivemos um tempo muito curto, é tudo muito recente, mudando muito rápido. E hoje em dia você vê a mesma força relativa na canção. Nossa música está se diversificando, é muita informação nova. Aferir tudo isso e fazer uma abordagem... para mim, é cedo.
E tem coisa recente de que você goste, de coração?
Muita. Só de música instrumental, tem muita coisa. Aquele quarteto de clarinetes, o Sujeito a Guincho: aquilo é uma maravilha. E a Banda Mantiqueira? São incríveis. Cantoras ótimas, também. Só que não dá tempo de a gente ouvir tudo, ainda.
Sua geração viveu um fato novo, que foi a música comercial de massa, em grande escala -encarnada, a princípio, na figura de Roberto Carlos. Como foi sua reação inicial a esse tipo de música?
Antes do Roberto Carlos, teve o rock chegando ao Brasil. Eu era garoto, estudava num colégio ali no largo do Machado.
O rock era Elvis?
Bill Haley. Aquele filme, "No Balanço das Horas" ["Rock around the Clock" (1956), de Fred F. Sears]. O rock chegou em 55, 56. Mas, antes de o rock chegar, tinha um negócio rolando, assim: "Vem aí um ritmo alucinante". Nunca mais esqueci. Comecei a ficar apavorado. A garotada falava: "Vem aí um ritmo alucinante". Quando apareceu o filme, eu só faltei me esconder. Fui criado ouvindo aquelas valsas, sambas e choros. Embora ouvisse música americana, também, como todo mundo: Tommy Dorsey. Muito fox. Boogie. Chegou o rock e foi avassalador. Levei um susto, fiquei meio traumatizado. A primeira coisa que aconteceu foi o seguinte: começaram a quebrar os cinemas. Neguinho entrava no cinema onde tinha "No Balanço das Horas" e quebrava o cinema inteiro. O escândalo fazia parte da coisa. Aí começa a mudar, realmente, toda uma ordem de comportamento.
E como você reagiu a isso?
Para mim foi terrível. Muito difícil, porque fiquei anos sozinho. Meu relacionamento era com pessoas mais velhas. Na minha geração, mesmo, eu não tinha muitos amigos. Eu não tinha namorada. Já rapazinho, quando apareceu a bossa nova, foi diferente. Aí fui meio obrigado a estar junto do pessoal da bossa nova. Porque a bossa nova era também uma espécie de contraponto a isso. Embora também fosse um pouco estranha, para mim, porque eu já tinha envolvimento com bloco de rua, com Carnaval, samba. Do rock, eu nem quis saber. Só fui ouvir muito depois.
E João Gilberto? Em 1959?
A turma gostava. Eu gostava. Se você ouvir meu violão, ele é um pouco uma mistura dessas coisas todas. Quando comecei, com o Elton [Medeiros], no conjunto A Voz do Morro, ainda estava muito influenciado pelo pessoal do regional. O tempo foi passando; um dia a gente se encontrou e o Elton: "Pô, você não toca mais daquele jeito?". E eu não conseguia mais.
Não só no violão, mas no seu modo de cantar, sente-se alguma coisa daquele sentido que o João Gilberto tem da interpretação "exemplar". A interpretação que parece pôr o gênero inteiro ali, naquela canção.
É importante frisar o seguinte: o João Gilberto traz uma coisa nova no resultado. Mas tem uma ponte atrás. Ele canta Geraldo Pereira [1918-55", declarou muitas vezes sua admiração pelo Orlando Silva [1915-78] etc. Compôs até um choro maravilhoso, "Um Abraço no Bonfá" -ele, que quase nunca compôs nada. E ele tem algo que... Deixa eu ver se consigo explicar. São uns sotaques, umas coisas que a gente percebe. E você já encontra isso no Garoto [1915-55". Aliás, todo violão que veio depois já estava no Garoto. Nada de muito diferente do que ele já tinha feito.
Nem o Baden Powell?
Nem o Baden. O Baden [1937-2000" veio daqui, com a vivência de subúrbio, de choro, de samba, um pouco diferente do Garoto, que era de São Paulo. Mas também vem do Garoto. Todo mundo sempre tem alguma influência assim. Por exemplo, eu conheci uma figura, num show que nós fizemos em 1973, chamado "Sarau". Um cara chamado Valzinho [1914-80]. Muito admirado pelos colegas. Tocava num regional, na rádio Nacional. Foi parceiro do Orestes Barbosa, do Custódio Mesquita [1910-45]. Não compôs muita coisa; mas a pequena obra dele... Radamés [Gnatalli] tinha o maior respeito por ele. O Tom [Jobim] também tinha o maior respeito por ele. Uma vez encontrei o Tom [1927-94] no centro do Rio e contei que tinha gravado uma música do Valzinho, "Óculos Escuros" [no disco "Paulinho da Viola", 1971]. Eu vinha do estúdio, estava com a letra no bolso. E o Tom falou: "Valzinho? Eu assino embaixo". E assinou mesmo, "Antônio Carlos Jobim", debaixo da letra. Tenho esse papel até hoje. Acho que o Valzinho foi um dos precursores da bossa nova. Meio involuntariamente. Como aconteceu com outros -Custódio Mesquita, Garoto. Você escuta e diz: isso é uma bossa nova. Geraldo Pereira. Mestre Marçal [1930-94]. Com toda a sua genialidade, o João [Gilberto] sofreu essas influências. E devia estar tão aberto para captar certas coisas que fez algo de realmente grande. Sempre tendo como referencial uma coisa que ele amava e reconhecia como sendo de seus mestres. Já que estamos falando de referências, você comentou, certa vez, que a música "Sinal Fechado" vinha de seus estudos de Villa-Lobos: inversões de acordes, a primeira corda solta etc. Que estudos foram esses? Ou são os próprios "Estudos"?
Eu toquei alguns dos "Estudos", alguns dos "Prelúdios". Num determinado momento, até pensei em estudar violão, virar solista; o Turíbio [Santos" dizia que eu podia. Mas depois enveredei por outra coisa, não é? Sobre "Sinal Fechado" [1969]: no começo, queria fazer essa música de certo jeito. Mas, quando escutei -eu tinha mania de gravar tudo o que ia fazendo-, pensei: não é isso. Está muito doce. Era um samba-canção. Minha forma de cantar, desde o início, foi a que está registrada; com aquele lirismo, meio inerente. A solução era criar uma coisa mais marcial, mais dura, com mais dissonâncias. Meio áspera, meio fria. Porque o diálogo [das personagens da letra] é seco, ali, no sinal. Aliás, antes do sinal, era outra coisa. Aquele era um momento [1968-9] muito difícil, para todos nós. E tinha um cara que encontrava comigo em qualquer lugar e dizia assim: "Preciso falar com você -tenho uma coisa para te falar". Mas não falava nada. Até hoje estou esperando! E ele estava sempre passando, nunca parava. Vivia enrolado na época... Foi torturado.
E essa era a cena, antes do sinal?
Antes do sinal, teve outra coisa. Nunca soube se foi um sonho ou só um momento em que eu estava divagando. Mas essa coisa ficou. Era tão forte que fecho os olhos, hoje, e sou capaz de visualizar a cena (eu, que tenho uma dificuldade enorme de visualização). A cena era a seguinte: eu entrava num ônibus, em frente ao Monumento aos Pracinhas [no aterro do Flamengo, no Rio]; e o ônibus estava cheio. Aí eu olhava e tinha uma pessoa lá na frente, que às vezes era uma mulher, às vezes um homem. E eu queria falar com aquela pessoa e não conseguia. A impressão que me dava, também, era a de que o ônibus tinha andado, mas continuava no mesmo lugar. Lembro que essa pessoa saía do ônibus e eu queria falar e não conseguia. Ela me dava adeus e eu não conseguia falar. Essa imagem ficou presente muito tempo na minha vida, como um mote. E foi uma referência para fazer o "Sinal Fechado".
Fico pensando nessa idéia de que o ônibus andou e ficou no mesmo lugar: não deixa de ser seu modo de ver a música. Do modo como você fala, a música não teve uma época melhor, outra pior. Ela é um eterno agora. Tudo o que é, foi, e tudo o que foi, é. O curioso é que você viveu uma época muito marcada pelo sentido de ruptura.
E não foi fácil, para mim. Quando comecei, tinha a sensação de que alguém estava me empurrando por trás. E eu: "Peraí, Peraí!". Sensação que tive até poucos anos. Alguém me empurrando: "Vai! Está bom, eu vou. Mas calma". Eu era muito tímido, também. Lembro uma ocasião, em 1968, no programa da Hebe. Acho que foi a primeira vez em que cantei num programa de TV. Ela começou a me entrevistar, mas, quando vi o público, entrei em pânico! Eu já tinha cantado no "Rosa de Ouro" e em outros shows. Mas não para um grande público, assim. Rapaz, eu não conseguia falar. Mal consegui cantar. Como é que podia virar artista? Foi uma dificuldade enorme.
Isso passou?
Foi passando, tinha de passar.
Mudando bastante de assunto: como foi sua história com o Partido Comunista? Você chegou a ser membro, de fato, do partido?
De carteirinha, não. Mas tivemos uma célula, nos anos 60. Capinam, Abel Silva e eu. Foi coisa muito rápida, um ano só, por aí.
E você chegou a ser procurado?
Não. Ou melhor: uma vez só, por causa de uma entrevista com o Torquato Neto para o "Última Hora". A matéria era muito "bandeira". Um sujeito chegou perto de mim e me fez uma advertência, para eu tomar cuidado e tal.
Posso citar uma frase de uma entrevista sua à Folha (1973)? "O que eu mais detesto é a classe média."
[Risos.] Eu dizia coisas desse tipo. Dizia umas bobagens... Certa vez vi uma coisa e pensei: não é possível. Eu falei mal do Zé Kéti! Numa entrevista. Dizia que ele estava meio perdido, algo assim. Tenho certeza de que o Zé, uma pessoa que me adorava, me perdoou. Ele jamais tocou no assunto. E eu devo tanta coisa ao Zé Kéti.
Você pode falar um pouco dele?
Zé Kéti [1921-99] era uma pessoa maravilhosa. Extremamente generosa. Como Cartola [1908-80], Nelson Cavaquinho [1911-86]. Esse pessoal era a generosidade. Zé Kéti me estimulou muito. Andava sempre com ele, na época do "Diz Que Fui Por Aí" [1964]. Muitas vezes, foi me pegar no banco onde eu trabalhava, para a gente fazer algum show. E me estimulava muito a compor. Ele e o Hermínio [Bello de Carvalho". Eu já andava envolvido com o pessoal da Portela, também, mas não era assim de fazer música todo dia. Como até hoje. Levo muito tempo sem compor. Meu ritmo é esse, sempre fui assim. Vou fazer outras coisas; às vezes fico muito tempo sem tocar, também. Como um exercício de vida, mesmo. Fico mais de um mês, até, sem pegar no instrumento. Pode ver que estou sem calinhos nos dedos. Fico ouvindo música, lendo. Faço marcenaria, vou conversar, jogar sinuca. Se tenho um período sem shows, aproveito.
Voltando ao Zé Kéti.
O samba do Zé... Tinha umas coisas que ele fazia, muito características, umas diminutas -tem diminutas na música de todo mundo, claro, mas, na dele, estão num determinado lugar.
Você pode dar um exemplo?
Ah, são tantos. [Cantarola:] "Eu vou te dar a mão/ Para te puxar da lama/ Onde tu estás caída/ Tu és a flor do morro em minha vida/ Teu nome é mulher fingida...". Isso, um samba batucado. Podia cantar (dele e do Elton): "Sorri/ Depois do beijo sorri/ Depois do abraço senti/ Marcamos um novo encontro/ Tu não vieste, eu fiquei triste...". Que melodista! E uma coisa de uma alegria, rapaz, de uma alegria. E era ele, você via o Zé cantar um samba e era a alegria.
Você chegou a ver o curta-metragem "Meu Compadre Zé Kéti" (2001), do Nelson Pereira dos Santos?
Nem me fale. Eu também fui convidado a participar da filmagem. E... não fui. Uma bobeira. Fui informado, estava em casa no dia. E me deu um branco. Liguei para o Nelson, contei a verdade, pedi desculpas. Fiquei tão passado. Ainda mais com o Zé Kéti! A gente comete essas coisas. Eu falei mal do Zé... Fui visitá-lo, pouco antes de ele morrer, quando estava internado. Pensei que não ia conseguir. Mas fui lá. O Zé estava entubado, dormindo. O médico me dizia para falar com ele, que isso lhe faria bem, que ele precisava me reconhecer. Então me preparei e entrei no quarto, onde ele estava com outros pacientes. Zé Kéti me chamava de "meu pupilo". Aonde ele me levava, dizia: "Meu pupilo!". Cheguei perto dele e falei: "Zé, sou eu, Paulinho. Paulinho da Viola. Você está me ouvindo?".
Fiquei falando e ele ali, de olho fechado. "Olha, vim aqui te dar um abraço, ver se você melhorou." Eu queria falar baixo, para não incomodar as outras pessoas, mas o médico dizia "não, não fale baixo, fale para ele ouvir". Aí disse assim para ele: "Olha, sou eu, Paulinho, tudo bem? Sou eu, Paulinho. Seu pupilo". E ele fez assim com a cabeça... Ficou me olhando, sabe como é? E caiu uma lágrima, assim, do canto do olho... Rapaz, nunca mais esqueci; me deu uma dor.
Ele reconheceu você.
Ah, certamente. Mas não podia falar nem nada. E foi a última vez que eu vi o Zé. A gente era muito... Eu era um garoto, para ele. E cantava os sambas dele, sabia muitos sambas. Sabia samba que nem foi gravado ainda. Samba dele com o Nelson Cavaquinho, que nem tem letra. Ainda vou mostrar para o Guilherme de Brito, para ele fazer uma letra.
E Nelson Cavaquinho, você conheceu bem?
Alguém precisava escrever um livro sobre o Nelson. Era uma pessoa muito irreverente. Muito brincalhão. Gostava de tomar as bebidas dele, tomava bem. Era um boêmio. A gente saía muito em grupo, nessa época: Zé, Elton, Jair do Cavaquinho, o Nelson. Voltávamos dessas reuniões de ônibus, já de manhãzinha. Eles iam juntos, para o mesmo subúrbio; o [governador" Carlos Lacerda tinha dado casas para o Zé, para Jair e para o Nelson. E acontecia o seguinte -não foi uma nem duas vezes, não. A gente vinha no ônibus, até a Central. Chegava na Lapa, o Nelson saltava. E o Zé dizia: "Pô, Nelson, vambora". Que nada, ia para a Lapa. Ficava assim dias. Dias. Foi o único cara que eu vi cantar samba para peixeiro, antes da feira. Eu presenciei umas histórias... Mas tenho medo de contar; porque não vai traduzir o que significa. A não ser que você desligue o gravador. [Gravador desligado]
Vocês cantavam juntos na "Segunda do Samba".
A gente cantava muito no Opinião. E o Nelson era adorado. Adorado. Lembro de uma vez, ele já tinha tomado todas. Fazia um calor incrível. A galera sem camisa e chamando ele: Nelson, Nelson. E ele entrou. Quando o canhão de luz acendeu, tuuum: ficou estático. O conjunto (o Nosso Samba) fez a introdução e ele nem percebeu. Carlinhos do cavaquinho ficou olhando para o Nelson, esperando. E ele sacou que tinha acontecido alguma coisa. Parou e ficou olhando para o Carlinhos. E o Carlinhos, meio sem graça, olhando para ele. E o Nelson olhando para o Carlinhos, com aquele cabelo caído. Aí falou: "Meu filho, não olha muito para o Nelson, não, ou... [em tom grave] você se apaixona".
"O" Nelson.
"O" Nelson, ele falava muito assim.
Quer dizer que esse lado trágico dele convivia com o lado brincalhão.
Muito, muito! Era uma figurinha. Mas tinha cada samba. Vendeu muito samba, também.
Como era isso? Vendia mesmo?
Vendia. Chegava alguém e comprava. Como um negócio qualquer.
Ficou faltando você falar do Cartola.
Sobre o Cartola, não posso falar tanto. Apesar de ter convivido com ele, sempre muito gentil comigo. Porque ele falava muito pouco. Muito pouco. Não tive oportunidade de ficar conversando, de verdade, com ele. Um dos momentos em que mais conversei com Cartola foi quando ele estava internado no Hospital da Lagoa [1980]. Fui lá com a Lila e ele estava sozinho, sem visitas. Quer dizer: só ele e a Zica. Estava sentado assim na cama, coçando o pé. Tinha mania de coçar o pé. Fiquei conversando com ele sobre o Fluminense, ele era Fluminense. E "como é que você está?". E ele: "Não, estou bem, estou bem". Meio cabisbaixo, assim. Ficamos falando, e a Zica fez um sinal de que ele não estava bem, não. Mas, para mim, estava ótimo. Normal, conversando, mexendo no pé. "O Fluminense precisa mudar." Aquela coisa de visita. Depois de a gente conversar um pouco assim, deu um silêncio. Fiquei olhando, e ele de cabeça baixa. O Cartola me chamava de "seu Paulo", às vezes. Sabe aquele tempo de um silêncio? Aí, com uma


MAS O CARTOLA... TUDO O QUE VOCÊ DISSER, NÃO É; CONVIVER COM UMA PESSOA É PERCEBER A FALA, OS GESTOS, O OLHAR; FELIZ DAQUELE QUE CONSEGUE DESCREVER ESSAS COISAS, UM CONTISTA, UM ROMANCISTA; MAS EU TENHO UMA DIFICULDADE ENORME; SEI SENTIR MUITO, PERCEBER COISAS; MAS, QUANDO VOU VERBALIZAR, É DIFÍCIL


frase, ele me disse tudo -porque eu comecei a visualizar, como num filme, o que fora a vida dele, com as histórias que eu conhecia. Ele parou e falou assim: "É, seu Paulo, a vida é isso aí". Sem me olhar. "É, seu Paulo, a vida é isso aí." E eu entendi tudo.
Se eu tivesse de dizer que alguma coisa me lembra, não sua música, mas uma visão de mundo, mesmo, eu diria que está no Cartola. Certo sentimento de distância, um olhar menos aderido, mais solitário. "As coisas estão no mundo, só que eu preciso aprender."
É... Acho que sim. Mas o Cartola... tudo o que você disser, não é. Conviver com uma pessoa é perceber a fala, os gestos, o olhar. Feliz daquele que consegue descrever essas coisas. Um contista, um romancista. Mas eu tenho uma dificuldade enorme. Sei sentir muito, perceber coisas; mas, quando vou verbalizar, é difícil. O que sinto é que ele era uma pessoa de um grau de humanismo muito acima do das pessoas que o cercavam. Ao mesmo tempo, ele era muito simples.
Não vou falar nada de pessoal, para não o encabular. Mas dá para dizer o mesmo da sua música.
Deixe eu lhe dizer uma coisa. A minha paixão por esse pessoal, minha admiração sempre foi tão grande, que eu sempre tive a sensação, como tenho até hoje, de que não fiz uma única coisa que se aproximasse do que eles fizeram. É a sensação que eu tenho, com toda a sinceridade.
Mas você não gosta de nada do que fez?
Daquilo que eu fiz, tem o que eu gosto, e o que não. Mas aquela sensação de: olha, fiz um samba à altura de um samba do Zé, à altura de um samba do Candeia... Isso nunca. Esse distanciamento que vocês percebem é um pouco assim. Eu sei que tive um trânsito dentro do samba. Convivi com muita gente, toquei em escolas etc. Mas é um mundo que é muito maior do que eu. Foi sempre a sensação que eu tive. Sempre descobria coisas e me dizia: "Não é possível! Olha que samba, que maravilha! Olha que pessoa!". Tem isso: gosto muito de gente. Tenho paixão por pessoas. Quando conheci o Miginha, eu me dizia assim: "Não conheço ninguém". A maneira de ele falar, de ele tocar e cantar. O Monarco. O Casquinha. As diferenças das pessoas, isso para mim tem um peso enorme. Talvez por isso eu me sinta meio fora, entendeu? Eu sei que estou quando faço "Foi um Rio que Passou na Minha Vida". Mas é como se eu nem fosse o autor. O autor são muitos.
Arthur Nestrovski é professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). É autor de "Notas Musicais" (Publifolha) e organizador de "Música Popular Brasileira Hoje" (série "Folha Explica", no prelo). Nuno Ramos é artista plástico e escritor, autor de "Cujo" e "O Pão do Corvo" (ed. 34), entre outros.

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