São Paulo, domingo, 25 de outubro de 2009

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Síntese misturada


"Deleuze, a Arte e a Filosofia", do professor da Universidade Federal do RJ Roberto Machado, resgata o pensador francês da acusação de irracionalismo


VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA

Durante um certo tempo, o pensamento francês contemporâneo foi visto nos departamentos de filosofia com uma certa suspeição.
As acusações eram muitas: deriva estetizante, relativismo, irracionalismo próprio a esses que procuram fazer críticas totalizantes da razão. Em maior ou menor grau, acusações desta natureza foram sistematicamente dirigidas contra autores como Gilles Deleuze, Derrida, Foucault e Lyotard.
Mas foram necessárias algumas décadas para que tivéssemos à nossa disposição trabalhos dispostos a demonstrar o contrário, expondo não só a densidade propriamente filosófica dessas experiências intelectuais, mas a maneira que alguns desses autores se relacionam à tradição racionalista.

Sistema
É dentro dessa nova tendência que encontramos o novo livro de Roberto Machado, "Deleuze, a Arte e a Filosofia".
Machado é conhecido principalmente por seus estudos precisos sobre o pensamento de Foucault, Nietzsche e Deleuze, assim como por sua extensa produção sobre problemas ligados à estética.
Em seu novo livro, as reflexões sobre a história da filosofia contemporânea são aliadas às considerações sobre as artes (em especial a literatura, a pintura e o cinema) a fim de fornecer um trabalho que procura expor a sistematicidade do pensamento de Deleuze.
De fato, um dos muitos méritos deste livro é não temer tratar o pensamento deleuziano como um sistema no qual a multiplicidade de questões abordadas se submete a um núcleo duro de problemas continuamente repostos. Nada estranho em se tratando de um filósofo que costumava dizer ser possível, no campo da filosofia, reduzir experiências intelectuais complexas a uma única questão, como se toda verdadeira produção filosófica fosse a modulação infindável e necessária de uma problemática levada às suas últimas consequências.
O livro aparece assim como o trabalho de um filósofo experiente que procura algo com a espinha dorsal do pensamento deleuziano.
Daí porque privilegia o movimento que vai dos primeiros textos deleuzianos sobre história da filosofia (principalmente Espinoza, Nietzsche, Kant, Bergson) até "Diferença e Repetição".
Essa escolha permitiu a Machado apresentar Deleuze como um filósofo às voltas com a exigência de livrar o pensamento conceitual dos limites de uma filosofia da consciência submetida aos ditames da identidade e da representação.
Pois retirar a consciência da posição de fundamento do saber implica problematizar os regimes de constituição de objetos da experiência que estão a ela associados.
Assim, mesmo que o livro comece apresentando as críticas de Deleuze a filósofos anteriores ao que poderíamos chamar de "primado da filosofia da consciência" (Platão e Aristóteles), trata-se, na verdade, de levar a sério a máxima nietzschiana segundo a qual a filosofia de nossa época ainda estaria presa às amarras de estratégias de pensamento herdadas de um certo platonismo.
Ou seja, trata-se de procurar a raiz do que se desenvolverá, com toda sua força, no interior da tradição moderna da filosofia da consciência.
Neste sentido, o livro tem o mérito de expor com clareza o sentido e a centralidade do recurso a Kant no interior do pensamento de Deleuze.
Pois a maneira deleuziana de abandonar os limites da filosofia da consciência consistiria, para além do problema da relação entre tempo e pensamento, em reconstruir uma doutrina das faculdades onde estas não estariam mais submetidas a uma harmonia natural capaz de garantir um senso comum.
Para tanto, faz-se necessário mostrar como é possível pensar experiências a partir do "uso paradoxal das faculdades", de sua "relação desregrada" onde cada faculdade comunica à outra apenas "a violência que a eleva a seu limite próprio como diferente".

Arte e razão
Algumas das páginas mais esclarecedoras do livro são exatamente aquelas nas quais o sentido dessa doutrina deleuziana das faculdades é cuidadosamente explicado.
Feito isso, Machado pode mostrar como o modelo desse uso paradoxal das faculdades vem de Marcel Proust, de Francis Bacon, de "O Ano Passado em Marienbad" [filme de Alain Resnais].
Obras capazes de nos mostrar como podemos dar forma a: "Um limite agramatical -intensivo- que devasta as designações e as significações, permitindo que a linguagem deixe de ser representativa e adquira a potência de dizer o que é indizível para a linguagem empírica ou habitual".
Com isso, a arte aparece como um setor avançado da história da razão. Como se Machado quisesse, ao final, nos mostrar que uma filosofia incapaz de compreender que a arte pensa é uma filosofia que nunca conseguirá ultrapassar as cisões irreparáveis
da razão moderna. Nunca aprenderá a pensar a síntese do irredutivelmente heterogêneo.


VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP.

DELEUZE, A ARTE E A FILOSOFIA

Autor: Roberto Machado
Editora: Zahar (tel. 0/xx/ 21/ 2108-0808)
Quanto: R$ 44 (344 págs.)


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