|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Síntese misturada
"Deleuze, a Arte e a Filosofia", do professor da Universidade Federal do RJ Roberto Machado, resgata o pensador francês da acusação de irracionalismo
|
VLADIMIR SAFATLE
ESPECIAL PARA A FOLHA
Durante um certo
tempo, o pensamento francês contemporâneo foi
visto nos departamentos de filosofia com uma
certa suspeição.
As acusações eram muitas:
deriva estetizante, relativismo,
irracionalismo próprio a esses
que procuram fazer críticas totalizantes da razão. Em maior
ou menor grau, acusações desta natureza foram sistematicamente dirigidas contra autores
como Gilles Deleuze, Derrida,
Foucault e Lyotard.
Mas foram necessárias algumas décadas para que tivéssemos à nossa disposição trabalhos dispostos a demonstrar o
contrário, expondo não só a
densidade propriamente filosófica dessas experiências intelectuais, mas a maneira que alguns desses autores se relacionam à tradição racionalista.
Sistema
É dentro dessa nova tendência que encontramos o novo livro de Roberto Machado, "Deleuze, a Arte e a Filosofia".
Machado é conhecido principalmente por seus estudos precisos sobre o pensamento de
Foucault, Nietzsche e Deleuze,
assim como por sua extensa
produção sobre problemas ligados à estética.
Em seu novo livro, as reflexões sobre a história da filosofia contemporânea são aliadas
às considerações sobre as artes
(em especial a literatura, a pintura e o cinema) a fim de fornecer um trabalho que procura
expor a sistematicidade do
pensamento de Deleuze.
De fato, um dos muitos méritos deste livro é não temer tratar o pensamento deleuziano
como um sistema no qual a
multiplicidade de questões
abordadas se submete a um núcleo duro de problemas continuamente repostos.
Nada estranho em se tratando de um filósofo que costumava dizer ser possível, no campo
da filosofia, reduzir experiências intelectuais complexas a
uma única questão, como se toda verdadeira produção filosófica fosse a modulação infindável e necessária de uma problemática levada às suas últimas
consequências.
O livro aparece assim como o
trabalho de um filósofo experiente que procura algo com a
espinha dorsal do pensamento
deleuziano.
Daí porque privilegia o movimento que vai dos primeiros
textos deleuzianos sobre história da filosofia (principalmente
Espinoza, Nietzsche, Kant,
Bergson) até "Diferença e Repetição".
Essa escolha permitiu a Machado apresentar Deleuze como um filósofo às voltas com a
exigência de livrar o pensamento conceitual dos limites
de uma filosofia da consciência
submetida aos ditames da identidade e da representação.
Pois retirar a consciência da
posição de fundamento do saber implica problematizar os
regimes de constituição de objetos da experiência que estão a
ela associados.
Assim, mesmo que o livro comece apresentando as críticas
de Deleuze a filósofos anteriores ao que poderíamos chamar
de "primado da filosofia da
consciência" (Platão e Aristóteles), trata-se, na verdade, de levar a sério a máxima nietzschiana segundo a qual a filosofia de nossa época ainda estaria
presa às amarras de estratégias
de pensamento herdadas de
um certo platonismo.
Ou seja, trata-se de procurar
a raiz do que se desenvolverá,
com toda sua força, no interior
da tradição moderna da filosofia da consciência.
Neste sentido, o livro tem o
mérito de expor com clareza o
sentido e a centralidade do recurso a Kant no interior do
pensamento de Deleuze.
Pois a maneira deleuziana de
abandonar os limites da filosofia da consciência consistiria,
para além do problema da relação entre tempo e pensamento,
em reconstruir uma doutrina
das faculdades onde estas não
estariam mais submetidas a
uma harmonia natural capaz
de garantir um senso comum.
Para tanto, faz-se necessário
mostrar como é possível pensar experiências a partir do
"uso paradoxal das faculdades",
de sua "relação desregrada" onde cada faculdade comunica à
outra apenas "a violência que a
eleva a seu limite próprio como
diferente".
Arte e razão
Algumas das páginas mais esclarecedoras do livro são exatamente aquelas nas quais o sentido dessa doutrina deleuziana
das faculdades é cuidadosamente explicado.
Feito isso, Machado pode
mostrar como o modelo desse
uso paradoxal das faculdades
vem de Marcel Proust, de Francis Bacon, de "O Ano Passado
em Marienbad" [filme de Alain
Resnais].
Obras capazes de nos mostrar como podemos dar forma
a: "Um limite agramatical -intensivo- que devasta as designações e as significações, permitindo que a linguagem deixe
de ser representativa e adquira
a potência de dizer o que é indizível para a linguagem empírica
ou habitual".
Com isso, a arte aparece como um setor avançado da história da razão.
Como se Machado quisesse,
ao final, nos mostrar que uma
filosofia incapaz de compreender que a arte pensa é uma filosofia que nunca conseguirá ultrapassar as cisões irreparáveis
da razão moderna.
Nunca aprenderá a pensar a
síntese do irredutivelmente
heterogêneo.
VLADIMIR SAFATLE é professor no departamento de filosofia da USP.
DELEUZE, A ARTE E A FILOSOFIA
Autor: Roberto Machado
Editora: Zahar (tel. 0/xx/ 21/ 2108-0808)
Quanto: R$ 44 (344 págs.)
Texto Anterior: Rituais vazios Próximo Texto: Deleuze revalorizou a diferença Índice
|