São Paulo, domingo, 25 de outubro de 1998

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Conto infantil escrito por Mary Shelley em 1820 só foi publicado neste ano

Reprodução
A escritora Mary Shelley em retrato pintado por Richard Rothwell em cerca de 1840


SAMUEL TITAN JR.
especial para a Folha

Um pouco à maneira de certo cientista genebrino, Mary Shelley é um daqueles criadores que acabam à sombra de suas próprias obras: com o passar do tempo, a memória de leitores e espectadores não só transferiu para o "Prometeu Moderno" de Frankenstein (1818) o nome de seu criador direto, como quase apagou o de sua autora remota. Um recente achado talvez avive o interesse por uma personalidade literária tão interessante: "Maurice ou a Choupana do Pescador", conto inédito que andou sumido por mais de século e meio.
Redigido em Pisa (Itália), por volta de agosto de 1820, e dedicado a Lauretta Tighe, menina de 11 anos e filha natural de um outro casal de expatriados, o manuscrito foi acidentalmente encontrado em 1997 num caixote de velharias por uma bisneta de Nerina Tighe, irmã da jovem amiga de Mary Shelley. O conto foi acabar nas mãos de Claire Tomalin, que estabeleceu o texto e assinou a introdução desta atrasadíssima primeira edição.
Deixando de lado a gula fetichista por novidades, "Maurice" surpreende à primeira leitura pelo contraste com Frankenstein: o tom é bucólico, a ação é parca, o pathos é mínimo, o estilo é quase desleixado. Como explicar a diferença? Talvez pela idade da destinatária? O leitor mais rabugento dirá que sim, e não tardará a encontrar provas de complacência infantilizante nas dúzias de lugares-comuns e fórmulas prontas da narrativa oitocentista; dirá talvez que o pouco fôlego do ambiente provinciano contaminou a inventiva da autora, que não vai além de uma débil pretensão de "realismo".
Por outro lado, não custa chamar a atenção do leitor para alguns traços singulares de Maurice: a narração "em tempo real" cobre apenas dois lances finais da história; todos os outros elementos são narrados em flash-back e para isso Shelley põe em ação nada menos que quatro narradores. Tanta elaboração supõe boa dose de interesse da autora, mais interesse do que a caracterização social e psicológica, de fato superficial, levaria a crer.
Lendo com mais atenção, o leitor logo percebe que o ambiente "realista" serve apenas para tornar palatável ao gosto da hora o velhíssimo motivo da criança de ascendência desconhecida ("foundling", em inglês) que logo se descobrirá filho do rei, eleito dos deuses ou algo do gênero. E com isso estamos de volta ao plano de modernização literária de temas arquetípicos, isto é, de volta à fórmula que fizera o sucesso de Frankenstein.
No caso específico deste conto, é possível que o motivo da "criança achada" tivesse ressonâncias particularmente íntimas para a autora: Mary Shelley foi criada, junto com sua meia-irmã Fanny, por uma madrasta; viveu "em pecado" com Percy Shelley até 1816, quando da morte da primeira mulher do poeta, o qual parecia mais interessado em Claire Clairmont, filha das primeiras núpcias de sua madrasta, a mesma Claire que teve uma filha de Lord Byron; por sua vez, Lauretta e Nerina, as primeiras leitoras de Maurice, eram filhas ilegítimas de outro casal de adúlteros, e o catálogo de identidades sob suspeita poderia seguir adiante.
Tudo isso talvez explique o tom melancólico, talvez incrédulo, que introduz uma nota levemente destoante do final feliz: Maurice não pode habitar a enseada edênica perto de Torquay, que retorna a um estado de harmonia natural, pré-humana, inacessível mesmo à família reunida.


Samuel Titan Jr. é mestrando um teoria literária na USP.



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