São Paulo, domingo, 25 de novembro de 2001

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Aos 80 anos, um dos principais nomes do "nouveau roman" francês lança duas obras que imprimem novo fôlego à arte narrativa e à reflexão teórica atuais

A dupla longevidade de Robbe-Grillet

Reprodução
Os escritores Robert Pinget, Tom Bishop, Claude Simon, Alain Robbe-Grillet e Nathalie Sarraute em um colóquio em Nova York em 1982


por Juan José Saer

A permanência do "nouveau roman" em diversas esferas é um fato que dispensa provas. A primeira esfera, de domínio público, refere-se à persistência biológica de seus principais autores: embora Robert Pinget tenha cometido o erro estatístico de morrer relativamente jovem, aos 78 anos, Nathalie Sarraute, em compensação, morreu com mais de 100, e, dos que continuam vivos e em atividade, Claude Simon acaba de completar 88 (e de publicar mais um romance, "Le Tramway", há poucos meses), e Michel Butor, o benjamim da turma, os 75, ao passo que Claude Ollier e Alain Robbe-Grillet já estão chegando, sem muito esforço aparente, à casa dos 80.
Mas a segunda longevidade do "nouveau roman" se verifica num plano na verdade mais importante que o da mera biologia, o plano puramente literário, não apenas porque seus pressupostos teóricos e procedimentos narrativos geram periodicamente os mesmos debates apaixonados, mas sobretudo porque seus representantes mais notórios continuam escrevendo e publicando livros que em alguns casos se tornam best-sellers, como "Infância", a autobiografia de Nathalie Sarraute, ou "O Amante", de Marguerite Duras, e porque certos acontecimentos, como o Nobel de Literatura a Claude Simon, em 1985, ou a incorporação das obras completas de Sarraute à Bibliothèque de la Pléiade [coleção de prestígio publicada pela ed. Gallimard", põem em evidência a vitalidade e a importância do movimento.
Depois do surrealismo nos anos 20 e do apogeu literário e filosófico do existencialismo, no início do pós-guerra, o "nouveau roman" constitui o último grande movimento literário significativo das letras francesas. E, assim como nos anos 30 e 40 era difícil escrever na França sem levar em conta o surrealismo e o existencialismo, quer se estivesse a favor ou contra esses movimentos, e por mais solitário e original que fosse o projeto dos escritores da época, a partir de 1960 se tornou impossível empreender a prática novelística pretendendo ignorar a essência problemática do gênero narrativo que os teóricos do novo romance tiveram a perspicácia de apontar.
Se seu reconhecimento internacional, nos EUA, no Japão, na Europa e na América Latina, foi quase imediato e indiscutivelmente duradouro, na França os novos narradores despertaram um truculento repúdio, para não dizer um ódio intenso e pertinaz. E, como são raros os que, depois do sucesso do "nouveau roman", conquistaram algum reconhecimento ou alguma influência no estrangeiro -ou pelo menos algumas traduções-, os romancistas franceses acadêmicos pretendem que o novo romance, por causa da aridez e do intelectualismo de seus procedimentos, tenha contribuído representação de acontecimentos aos quais se atribui um peremptório suceder exterior ao texto não encontrarão em "La Reprise" nenhuma dessas pautas tranquilizadoras, ou, pelo menos, não como imperativos excludentes de qualquer outro intento de exploração das possibilidades do relato.
Porque, embora o romance esteja cheio de clichês familiares (Berlim em ruínas, as quatro zonas militarizadas, agentes secretos, assassinatos, personagens obscuros de dupla, tripla e até múltipla identidade, espiões nazistas, bordéis para apreciadores de garotinhas quase impúberes, mortos que ressuscitam, estrangeiras misteriosas, cerimônias sadomasoquistas, reminiscências infantis etc.), o que o torna interessante é o fato de eles aparecerem justamente como clichês, como imagens planas ou estereótipos que não representam nenhuma realidade exterior e que, se adquirem algum sentido coerente, será por causa do lugar que lhes reserva a estrutura singular do relato, integrando-os com uma lógica própria. Conta-se que certa vez perguntaram a Faulkner se seus romances não tinham começo, meio e fim, e que Faulkner respondeu: "Têm, sim, mas não necessariamente nessa ordem".


Embora o romance esteja cheio de clichês familiares, o que o torna interessante é o fato de eles aparecerem justamente como clichês, como imagens planas ou estereótipos que não representam nenhuma realidade exterior


Algo semelhante poderia se dizer dos romances de Alain Robbe-Grillet: neles o sentido não provém do discurso, cujo papel corrente é veicular sentido, mas da forma narrativa, ou seja, da maneira como os diversos fragmentos do relato se organizam entre si.
Estes, em vez de se explicarem uns aos outros, como costuma ocorrer nas histórias lineares, apontam a se contradizer, a se desmembrar, a se transformar, revelando a cada passo sua precariedade: sem trégua, espaço, tempo, intriga, personagens, cada um dos elementos que compõem todo o relato são submetidos, apesar da minuciosa precisão da prosa, ao que poderíamos caracterizar como um sistemático princípio da incerteza. O texto não se esgota para a razão ou para a inteligência do leitor, que só podem captá-lo de maneira fragmentária e até contraditória, nem sequer para suas emoções no que elas têm de conscientes, mas produz seu impacto numa zona crepuscular da consciência, na qual os mecanismos associativos estimulam reminiscências que, por vagas que pareçam à zona clara, produzem um efeito seguro nas regiões escuras, semelhante às associações confusas que despertam os sonhos e até à forma narrativa de muitos deles, na qual a incoerência aparente da anedota não consegue enfraquecer um sentido onipresente, a um só tempo familiar e secreto.
Desse modo, os múltiplos rastros que a escritura vai deixando impregnam, quase de contrabando, a imaginação do leitor: as peripécias se sucedem para minar a ilusão de certeza, as alusões, os acenos, as citações, as contradições e o contínuo recomeçar do relato em diferentes direções, seu abismamento permanente por meio de imagens que evocam a estrutura mesma do romance e o itinerário do narrador, como, por exemplo, a escada de caracol, o intertexto que inclui Sófocles, Kierkegaard, Andersen, Proust, Borges, Nabokov, Graham Greene, Sade, Goya, Robbe-Grillet etc., as minuciosas e admiráveis descrições que, com sua evidência enigmática, não acrescentam clareza ao conjunto, mas antes dúvida e mistério, vão deixando no leitor uma sucessão de impressões que não fornecem nenhum sentido unívoco, e sim uma espécie de implicação emocional ao mesmo tempo vaga e nítida.
E, embora o romance contenha duas ou três cenas eróticas de uma exagerada crueza, para espanto de alguns críticos desavisados, não devemos nos enganar, pois elas não comportam a mais mínima concessão: são simples estereótipos, inseridos a uma altura avançada do romance, de modo que, para chegar até eles, não basta ser perverso: se deve ser, acima de tudo, um verdadeiro e concentrado leitor.
Os estudiosos de Robbe-Grillet sustentam que a partir de 1965, com "La Maison de Rendez-Vous", sua obra novelística toma um rumo radicalmente oposto ao que vinha seguindo até aquele momento (de passagem, e como fofoca literária de primeira ordem para os argentinos, vale lembrar que a arquitetura do bordel de Hong Kong que dá título ao romance foi inspirada na da casa de Victoria Ocampo em San Isidro). Ainda que essa guinada, que só na aparência é radical, possa eventualmente ser aceita como autêntica no que toca à forma, é necessário sublinhar que, nos efeitos de sua leitura, toda a obra de Robbe-Grillet -incluídos os roteiros cinematográficos, a combinação de ficção e autobiografia e até seus melhores filmes- apresenta uma notável continuidade: uma coerência sem falhas foi ordenando, durante mais de meio século, um sistema em que a nítida miragem da imagem narrativa propõe e ao mesmo tempo subtrai o sentido para se resolver na evidência material da linguagem e da forma.
Desde a primeira (1949) até a mais recente (2001) de suas obras de ficção, o intento narrativo de Robbe-Grillet, quando não seus resultados, nem sempre atinge o nível excepcional de algumas de suas obras mais importantes, dada a arriscada complexidade de seu projeto, tendo-se construído com uma lógica própria que jamais é traída e que transmite ao conjunto sua autonomia e sua originalidade.
Entre os muitos nomes que o narrador multiforme de "La Reprise" vai adotando consta Le Voyageur (o viajante). Como já sabemos que nesta obra, cujo sentido discursivo nos escapa, mas sempre nos deixa um sabor de estranhamento e até de pesadelo, que nesta obra a um só tempo transparente e obscura nada é casual e que uma lógica férrea preside sua execução, se deve sublinhar que "Le Voyageur" (ed. Christian Bourgois) é também o título da recompilação de artigos, ensaios e entrevistas que acaba de aparecer simultaneamente ao romance e era também o título que num primeiro momento fora previsto para o romance que muitos consideram sua obra-prima: "Le Voyeur" (1955).
Duas letras (ag) suprimidas no meio da palavra alteraram radicalmente o sentido do título. E, agora, a restituição das duas letras confere a esses ensaios o duplo caráter de guia biográfico e autobiográfico (Robbe-Grillet é um grande viajante) e de itinerário intelectual em meio século de reflexões, de exposições didáticas, de polêmicas e de entrevistas.
As 550 páginas do livro constituem uma permanente "defesa e ilustração" do novo romance, relacionando a arte narrativa com todas as manifestações da vanguarda artística, plástica, musical, cinematográfica e até política, científica e filosófica. Inclui reflexões sobre Sade e sobre Nathalie Sarraute, sobre Barthes e sobre Camus mas também sobre Claude Simon e, quase em cada página, sobre Sartre e sobre Flaubert, sobre os procedimentos cinematográficos e sobre a constante evolução da música ocidental desde Johann Sebastian Bach (eu diria até desde Monteverdi), o que inesperadamente poderia atribuir à música dita clássica o papel de modelo de toda vanguarda. Talvez desde os ensaios críticos de Roland Barthes, os "Repertórios" 1 e 2 de Michel Butor ou as primeiras "Situações" de Sartre, as reflexões críticas de um escritor francês não tenham mergulhado com tanta agudeza e energia na problemática artística de sua época.
Suas intervenções teóricas, acadêmicas ou jornalísticas emanam uma atmosfera de euforia, de confiança intelectual, de convicção inabalável, mas ao mesmo tempo de seriedade, de busca incessante e de lucidez sobre o caráter muitas vezes contraditório e arbitrário das afirmações veementes de um criador acerca da arte que pratica. Na cacofonia atual da vida literária francesa, que pretende ocultar o silêncio petrificado com que se tem acuado toda invenção artística, o retorno teórico e narrativo de Robbe-Grillet volta a evidenciar um fato sempre orientador do trabalho dos grandes artistas do século 20: se a arte é talvez resultado de um impulso inconsciente, irracional e misterioso, sua materialização é problemática, e suas formas em constante evolução, que se desdobram ao longo dos séculos, são os vestígios deixados pelo imenso esforço da consciência por organizar num objeto único, coerente e vivaz a fulguração desconexa e cambiante da experiência.
Nos antípodas desse rigor, a pretensa inocência artística preconizada pela atual impostura literária só pode ter duas causas: na melhor das hipóteses, a inépcia; na pior, o mais sórdido comércio.


Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "A Pesquisa" e "Ninguém Nada Nunca" (Companhia das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Sergio Molina.




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