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São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

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Renato Mezan exerce papel estratégico na importante união entre psicanálise e universidade no Brasil

INCERTEZAS DA RAZÃO E DESRAZÃO

por Joel Birman

A psicanálise tem já um século de existência, se considerarmos a publicação de "A Interpretação dos Sonhos" (1900) como o seu marco de fundação, de acordo não apenas com Freud, mas também com os seus comentadores. Nasceu, pois, na aurora do século passado, marcando e sendo permeada, de maneira indelével, pela modernidade. Produziu nesta história efeitos salientes nos campos da ética e da estética, além de ter impacto sobre o que se concebe hoje como sendo uma teoria, nos sentidos filosófico e epistemológico do termo. Ao lado disso, subverteu a concepção de clínica, inscrevendo o psiquismo nas condições de possibilidade do adoecimento e da cura. Sobreviveu, por isso, ao genocídio produzido pelo nazismo e às ditaduras da América Latina, mostrando ainda aqui as pegadas de sua criatividade teórica. O enunciado freudiano sobre o mal-estar na modernidade foi seu fio condutor maior para surfar nas ondas imprevisíveis dos acontecimentos trágicos que nos acossaram no século anterior.
Na tradição brasileira a psicanálise é bem mais jovem, apesar de seus ruídos estarem presentes entre nós desde os anos 20, tanto no discurso psiquiátrico quanto no literário. Nos anos 40 inicia-se a sua lenta institucionalização, primeiramente em São Paulo e depois no Rio de Janeiro. Nos anos 70 a psicanálise se inscreveu na cultura de maneira mais orgânica, na qual se disseminou de forma rápida, nos registros teórico, social e assistencial. Tanto no eixo vertical quanto no horizontal, ela passou a estar presente em toda a parte, como uma referência obrigatória. Penetrou então na universidade de maneira irresistível, sendo esta uma de nossas singularidades, bastante prezada pelos europeus, estabelecendo então um fecundo diálogo interdisciplinar, inexistente nos primeiros analistas.
No que concerne a isso, Renato Mezan ocupou, sem dúvida nenhuma, uma posição estratégica nesse processo. Faz parte de uma nova geração de psicanalistas brasileiros que tinha uma exigência teórica maior, produzindo, desde os anos 80, diversas obras de valor inestimável, tendo sempre na universidade o seu laboratório de elaboração e de interlocução. Se "Freud - A Trama dos Conceitos" (Perspectiva) evidenciava já a sua volúpia epistemológica, em "Freud, Pensador da Cultura" (Brasiliense) era a sua preocupação em estabelecer os limites entre psicanálise e filosofia que estava no primeiro plano. No entanto, o seu fascínio pela clínica estava sempre presente, de forma insofismável, nas linhas e entrelinhas destes livros magistrais, evidenciando-se de forma frontal, contudo, na sua recente obra sobre a escrita na experiência psicanalítica. Ao lado disso, suas contribuições teóricas para uma história da psicanálise são relevantes, formulando conceitos outros para a sua feitura. Portanto Mezan escreveu uma obra no campo específico da psicanálise, percorrendo-o de diferentes pontos de vista, forjando problemáticas originais em sua inquietação permanente.
A obra que nos ofereceu há pouco, "Interfaces da Psicanálise" (Companhia das Letras, 568 págs.), é uma evidência incontestável disso tudo. Jogando com a oposição e superposição entre as palavras "face" e "interface", se deslocando assim entre o rigor da geometria e a imprecisão da informática, Mezan parece indicar que a psicanálise é habitada por um paradoxo, qual seja, os impasses da razão e a sedução da desrazão. Se a geometria estabelece para a psicanálise o imperativo da demonstração, a informática evidencia naquela as teias costuradas entre signos, imagens e palavras que tecem redes entre si, numa constante interpenetração. O que resulta disso é a idéia de texto, que, na contramão do conceito de livro (Derrida), indica o movimento do pensamento na construção de uma obra aberta (Eco).
Esse é o ponto de chegada de tudo aquilo que se teceu anteriormente, mas é ao mesmo tempo o ponto de partida de outras incursões. Além disso, indica alguns dos pontos de cruzamento do que vinha se cerzindo antes, costurando outros fios discursivos que tinham sido provisoriamente deixados em silêncio. É assim que o autor toma e retoma sempre os fios evanescentes de sua tecelagem ficcional (Mannoni), para delinear as incertezas entre razão e desrazão no campo psicanalítico. É nessa interface que a clínica em psicanálise se faz corpo e se materializa como texto.
Na obra em questão os fios condutores se condensam em três pontos nodais: história da psicanálise, relações desta com o contexto sociocultural e efeitos de sua inserção na universalidade. Cada um desses pontos se constitui de diversos ensaios e artigos, escritos em diferentes tempos, alguns já publicados e outros ainda inéditos.
No eixo sobre história da psicanálise, o autor se desloca de temas mais clássicos na produção analítica -como o comentário sobre "A Interpretação dos Sonhos", a correspondência de Freud, o estatuto do olhar em psicanálise, as leituras sobre Abraham e Ferenczi- até problemáticas mais contemporâneas, como os ensaios sobre o campo psicanalítico no Brasil e a recepção francesa da psicanálise. Em ambas as séries já se revela, no entanto, a marca de Mezan, qual seja, a exigência de não querer repetir as fórmulas consagradas, ao enunciar sempre novas hipóteses sobre as questões em pauta.
Tudo isso se desdobra na segunda parte da coletânea, a mais instigante, na medida em que existe nela um esforço efetivo de fazer dialogar a psicanálise com a atualidade. Assim, das subjetividades contemporâneas à linguagem da publicidade, passando por uma reflexão sobre o judaísmo e a violência, o autor nos faz debruçar frontalmente sobre alguns dos impasses da atualidade. Destaca então a contribuição que a psicanálise pode oferecer para a compreensão do mundo conturbado de hoje. A pujança maior desta obra está justamente aqui, não apenas por sua dimensão polêmica, mas também por sua ousadia teórica.
Na terceira parte, Mezan nos propõe a sua leitura sobre a presença da psicanálise na universidade, posto que esta é uma das personagens dessa recente história. Se a resistência da universidade à psicanálise nos revela um dos registros desta, não se pode esquecer, contudo, que existe também uma outra, a resistência dos analistas à universidade, já que nesse contexto devem estabelecer um diálogo com outras disciplinas, sem se colocar acima do Bem e do Mal. O confronto interdisciplinar se impõe aqui necessariamente, colocando frontalmente em questão qualquer pretensão soberba da psicanálise.
Pode-se afirmar que "Interfaces da Psicanálise" é um produto efetivo dessa interlocução interdisciplinar, que trabalha em surdina a obra de Mezan e costura os nós de seus fios esparsos. Diálogo este nem sempre fácil, mas tampouco catastrófico, no qual a psicanálise pode expor ao mesmo tempo os argumentos de suas demonstrações e deixar surgir os restos do real que não se absorvem jamais no campo do conceito. Porém são tais restos que se encontram em disseminação tanto nos impasses da clínica quanto no imaginário cultural. É apenas dessa interface que o diálogo se torna possível na atualidade, numa interlocução fecunda da psicanálise com as demais disciplinas, para que se possa trabalhar de fato sobre as problemáticas do mundo contemporâneo. É somente pelas bordas dessas faces que podemos ainda efetivamente caminhar.


Joel Birman é psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de, entre outros, "Gramáticas do Erotismo" (ed. Civilização Brasileira).


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