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Renato Mezan exerce papel estratégico na importante união entre psicanálise e universidade no Brasil
INCERTEZAS DA RAZÃO E DESRAZÃO
por Joel Birman
A psicanálise tem já um século de existência, se
considerarmos a publicação de "A Interpretação dos Sonhos" (1900) como o seu marco
de fundação, de acordo não apenas com
Freud, mas também com os seus comentadores. Nasceu, pois, na aurora do século passado, marcando e sendo permeada, de maneira indelével, pela modernidade.
Produziu nesta história efeitos salientes nos campos da
ética e da estética, além de ter impacto sobre o que se
concebe hoje como sendo uma teoria, nos sentidos filosófico e epistemológico do termo. Ao lado disso, subverteu a concepção de clínica, inscrevendo o psiquismo
nas condições de possibilidade do adoecimento e da cura. Sobreviveu, por isso, ao genocídio produzido pelo
nazismo e às ditaduras da América Latina, mostrando
ainda aqui as pegadas de sua criatividade teórica. O
enunciado freudiano sobre o mal-estar na modernidade foi seu fio condutor maior para surfar nas ondas imprevisíveis dos acontecimentos trágicos que nos acossaram no século anterior.
Na tradição brasileira a psicanálise é bem mais jovem,
apesar de seus ruídos estarem presentes entre nós desde
os anos 20, tanto no discurso psiquiátrico quanto no literário. Nos anos 40 inicia-se a sua lenta institucionalização, primeiramente em São Paulo e depois no Rio de
Janeiro. Nos anos 70 a psicanálise se inscreveu na cultura de maneira mais orgânica, na qual se disseminou de
forma rápida, nos registros teórico, social e assistencial.
Tanto no eixo vertical quanto no horizontal, ela passou
a estar presente em toda a parte, como uma referência
obrigatória. Penetrou então na universidade de maneira irresistível, sendo esta uma de nossas singularidades,
bastante prezada pelos europeus, estabelecendo então
um fecundo diálogo interdisciplinar, inexistente nos
primeiros analistas.
No que concerne a isso, Renato Mezan ocupou, sem
dúvida nenhuma, uma posição estratégica nesse processo. Faz parte de uma nova geração de psicanalistas
brasileiros que tinha uma exigência teórica maior, produzindo, desde os anos 80, diversas obras de valor inestimável, tendo sempre na universidade o seu laboratório de elaboração e de interlocução. Se "Freud - A Trama dos Conceitos" (Perspectiva) evidenciava já a sua
volúpia epistemológica, em "Freud, Pensador da Cultura" (Brasiliense) era a sua preocupação em estabelecer
os limites entre psicanálise e filosofia que estava no primeiro plano. No entanto, o seu fascínio pela clínica estava sempre presente, de forma insofismável, nas linhas e
entrelinhas destes livros magistrais, evidenciando-se de
forma frontal, contudo, na sua recente obra sobre a escrita na experiência psicanalítica. Ao lado disso, suas
contribuições teóricas para uma história da psicanálise
são relevantes, formulando conceitos outros para a sua
feitura. Portanto Mezan escreveu uma obra no campo
específico da psicanálise, percorrendo-o de diferentes
pontos de vista, forjando problemáticas originais em
sua inquietação permanente.
A obra que nos ofereceu há pouco, "Interfaces da Psicanálise" (Companhia das Letras, 568 págs.), é uma evidência incontestável disso tudo. Jogando com a oposição e superposição entre as palavras "face" e "interface", se deslocando assim entre o rigor da geometria e a
imprecisão da informática, Mezan parece indicar que a
psicanálise é habitada por um paradoxo, qual seja, os
impasses da razão e a sedução da desrazão. Se a geometria estabelece para a psicanálise o imperativo da demonstração, a informática evidencia naquela as teias
costuradas entre signos, imagens e palavras que tecem
redes entre si, numa constante interpenetração. O que
resulta disso é a idéia de texto, que, na contramão do
conceito de livro (Derrida), indica o movimento do
pensamento na construção de uma obra aberta (Eco).
Esse é o ponto de chegada de tudo aquilo que se teceu
anteriormente, mas é ao mesmo tempo o ponto de partida de outras incursões. Além disso, indica alguns dos
pontos de cruzamento do que vinha se cerzindo antes,
costurando outros fios discursivos que tinham sido
provisoriamente deixados em silêncio. É assim que o
autor toma e retoma sempre os fios evanescentes de sua
tecelagem ficcional (Mannoni), para delinear as incertezas entre razão e desrazão no campo psicanalítico. É
nessa interface que a clínica em psicanálise se faz corpo
e se materializa como texto.
Na obra em questão os fios condutores se condensam
em três pontos nodais: história da psicanálise, relações
desta com o contexto sociocultural e efeitos de sua inserção na universalidade. Cada um desses pontos se
constitui de diversos ensaios e artigos, escritos em diferentes tempos, alguns já publicados e outros ainda inéditos.
No eixo sobre história da psicanálise, o autor se desloca de temas mais clássicos na produção analítica -como o comentário sobre "A Interpretação dos Sonhos",
a correspondência de Freud, o estatuto do olhar em psicanálise, as leituras sobre Abraham e Ferenczi- até
problemáticas mais contemporâneas, como os ensaios
sobre o campo psicanalítico no Brasil e a recepção francesa da psicanálise. Em ambas as séries já se revela, no
entanto, a marca de Mezan, qual seja, a exigência de não
querer repetir as fórmulas consagradas, ao enunciar
sempre novas hipóteses sobre as questões em pauta.
Tudo isso se desdobra na segunda parte da coletânea,
a mais instigante, na medida em que existe nela um esforço efetivo de fazer dialogar a psicanálise com a atualidade. Assim, das subjetividades contemporâneas à linguagem da publicidade, passando por uma reflexão sobre o judaísmo e a violência, o autor nos faz debruçar
frontalmente sobre alguns dos impasses da atualidade.
Destaca então a contribuição que a psicanálise pode
oferecer para a compreensão do mundo conturbado de
hoje. A pujança maior desta obra está justamente aqui,
não apenas por sua dimensão polêmica, mas também
por sua ousadia teórica.
Na terceira parte, Mezan nos propõe a sua leitura sobre a presença da psicanálise na universidade, posto
que esta é uma das personagens dessa recente história.
Se a resistência da universidade à psicanálise nos revela
um dos registros desta, não se pode esquecer, contudo,
que existe também uma outra, a resistência dos analistas à universidade, já que nesse contexto devem estabelecer um diálogo com outras disciplinas, sem se colocar
acima do Bem e do Mal. O confronto interdisciplinar se
impõe aqui necessariamente, colocando frontalmente
em questão qualquer pretensão soberba da psicanálise.
Pode-se afirmar que "Interfaces da Psicanálise" é um
produto efetivo dessa interlocução interdisciplinar, que
trabalha em surdina a obra de Mezan e costura os nós
de seus fios esparsos. Diálogo este nem sempre fácil,
mas tampouco catastrófico, no qual a psicanálise pode
expor ao mesmo tempo os argumentos de suas demonstrações e deixar surgir os restos do real que não se
absorvem jamais no campo do conceito. Porém são tais
restos que se encontram em disseminação tanto nos
impasses da clínica quanto no imaginário cultural. É
apenas dessa interface que o diálogo se torna possível
na atualidade, numa interlocução fecunda da psicanálise com as demais disciplinas, para que se possa trabalhar de fato sobre as problemáticas do mundo contemporâneo. É somente pelas bordas dessas faces que podemos ainda efetivamente caminhar.
Joel Birman é psicanalista e professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de, entre outros,
"Gramáticas do Erotismo" (ed. Civilização Brasileira).
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