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+ sociedade
Escritor e autor de premiados documentários, Michael Moore pertence à
linhagem dos grandes satiristas, que abriga, entre outros, Swift e Twain
Um dissidente norte-americano
Walnice Nogueira Galvão
especial para a Folha
Depois de três documentários, um filme de ficção, dois livros, um programa de televisão ("TV Nation", que resultou num outro livro, em parceria), o mundo começou a prestar atenção a este gordo bonachão com seu andar bamboleante de joelhos varos, envergando boné de beisebol e óculos, que pratica a candura. O agitador Michael Moore vem a ser um elo na linhagem da sátira de língua inglesa, que abriga tanto Swift quanto Mark Twain.
Seu novo livro, "Stupid White Men" (2002), tem na mira as contravenções de
colarinho branco. Logo de saída, conta como foi montada, meses e até anos antes das eleições nos Estados Unidos, a fraude que levaria o perdedor à presidência. É de estarrecer. O candidato republicano desencavou um obsoleto dispositivo legal na Flórida -recapitulando: onde o primeiro-irmão é governador
e onde se perpetraria a falcatrua final- segundo o qual não pode votar quem
cumpriu pena.
Ora, a maioria dos condenados norte-americanos, como se sabe, é constituída
por negros, os quais, como se sabe também, votam no Partido Democrata. Impediu-se de votar até quem tinha multa de trânsito. A própria superintendente
das eleições no Estado recebeu uma carta proibindo-a de ir às urnas. Tudo isso
muito antes da questão da recontagem de votos. Para agravar o quadro, quem
investigou e descobriu a operação, tarde demais, é claro, foi a BBC -inglesa-,
porque os nativos não se interessaram.
O monólito ideológico ianque não comporta opositores: afora Chomsky,
Gore Vidal, Susan Sontag, Ralph Nader, quem já ouviu falar em mais algum? Michael Moore vem a ser, no presente, apenas o quinto da espécie. Narrador e protagonista de suas obras, dedica-se com toda a pachorra a uma variante da desobediência civil que, optando pelo humor, consiste em ser chato e fazer perguntinhas impertinentes.
O estilo é cândido. Começou por se espantar quando sua cidade, Flint, no Michigan, viu a única fonte de emprego, a General Motors, fechar a fábrica e se
transferir para o México, deixando para trás 30 mil desempregados. Não custa
lembrar que a General Motors é uma das cinco maiores empresas do mundo. E a
filial de Flint estava batendo seus próprios recordes de lucro nos últimos anos.
Michael Moore então formulou uma de
suas perguntinhas, que vão à jugular do
problema: por quê? Por que se mudar
para o México, deixando atrás de si os escombros de uma cidade entregue ao
caos, à calamidade, à anomia, à criminalidade, quando os lucros estão em alta?
Para poder economizar dez centavos no
salário por hora, descobre ele.
Bateu então de porta em porta, tentando avistar-se com o presidente da General Motors, o Roger Smith do título de
seu primeiro documentário, "Roger and
Me" (1989), e naturalmente foi sendo
barrado. Mas vai colocando a perguntinha a quem encontra pela frente e registrando os resultados, os negaceios dos
executivos, a truculência dos seguranças,
o visível vexame dos relações públicas. E,
embora o assunto seja tétrico, o espectador não consegue deixar de rir.
O documentário seguinte, "The Big
One" (1997), focaliza a turnê de lançamento de seu primeiro livro, "Downsize
This!" (1996), que poderia ser traduzido
como "Enxugue Isto!". Trata de aprofundar a perquirição, penetrar em outros
conglomerados, tentar entrevistar seus
empresários, para dar uma idéia do processo desta fase da globalização que cuida de enxugar, flexibilizar, terceirizar,
eliminar a redundância etc. Dê-se o rótulo que se dê, apontam na mesma direção:
o desemprego.
Seu filme de ficção tem passado várias
vezes na TV a cabo, enquanto os dois primeiros documentários, bem menos, e só
na calada da noite. "Operação Canadá"
("Canadian Bacon", 1995) ataca a mania
armamentista interna dos Estados Unidos, onde as pessoas acham que a livre
aquisição, posse e porte de armas são um
direito democrático, qualquer limitação
sendo um ultraje à Constituição. Nem a
ocorrência de atos de terrorismo como o
de Oklahoma City ou os assassinatos em
massa cometidos por crianças, que se
avolumaram recentemente, pode dissuadi-las. O filme põe em cena um presidente pacifista que só pode obter reeleição em tempos de pós-Guerra Fria -como sua equipe logo diagnostica- declarando uma guerra. Segue-se a correria
para escolher o inimigo. A Rússia, que
aguentou meio século e se arruinou por
isso, não topa. O alvo afinal selecionado é
o Canadá. Os motivos, todos divertidíssimos, vão desde a limpeza do país, ausência de criminalidade e conflito racial, até
a tradição de paz, que o estigmatizam como socialista. Os serviços secretos então
se encarregam de encenar atentados terroristas e atribuí-los aos relutantes canadenses, para arrastar a opinião pública
norte-americana à guerra. O humor,
convenhamos, é um tanto negro, e às vezes fica meio difícil se divertir com o cinismo dos dirigentes e a sanha belicista
dos cidadãos comuns.
Mas o fato é que, após tantas proezas, o
militante Michael Moore começa a ser
reconhecido. O último Festival de Cannes outorgou-lhe uma láurea por seu novo documentário, "Tiros em Columbine" ("Bowling for Columbine", 2002),
que trata do massacre infantil ocorrido
na escola que porta esse nome, nos Estados Unidos. O público da 26ª Mostra Internacional de São Paulo conferiu-lhe no
mesmo ano o prêmio maior.
O filme, centrado na proliferação das
armas na sociedade civil, traz, entre outros achados, um depoimento de Charlton Heston, que tem a honra de ser o presidente da Associação Nacional do Rifle,
a qual defende com furor a liberdade de
compra e posse de armas, como cabe a
uma peça do lobby da poderosa indústria bélica. O ator tem um desempenho
hidrófobo, que as más línguas estão dizendo ser o melhor de sua carreira de canastrão. Informações nada inocentes
que Michael Moore avança: a Lockheed,
fabricante de mísseis nucleares e beneficiária do maior contrato de defesa do governo, é igualmente o maior empregador
em Littleton, distrito de Denver (Colorado), onde o massacre ocorreu. E assistimos ao cineasta, atendendo ao anúncio
do North Country Bank, que tem agências na região setentrional de Michigan,
seu Estado, ganhar legalmente um rifle
automático como bônus por abrir uma
conta.
"Roger and Me" foi, no histórico dos
documentários de língua inglesa, campeão absoluto em número de espectadores, até ser superado por "Tiros em Columbine". Os livros, cada um a seu tempo, encabeçaram durante meses a lista
dos mais vendidos do "New York Times". Os prêmios se sucedem, seja em
Cannes, seja em São Paulo. Só se pode
torcer para que Moore não se mostre
apenas interessado em se tornar uma celebridade, abandonando a militância e as
veleidades libertárias. Enquanto isso, podemos acompanhar suas peraltices pelo
site www.michaelmoore.com.
Walnice Nogueira Galvão é professora titular de
literatura na USP e autora de, entre outros, "Guimarães Rosa" (Publifolha) e "No Calor da Hora"
(ed. Ática).
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