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São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

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A MÁQUINA E O FETO

Reprodução
Cena de "Cremaster 1", que integra a série de cinco filmes do artista norte-americano Matthew Barney


Jacques Rancière

Quando os intelectuais não sabem mais muito bem onde estão, é bastante frequente que os artistas lhes mostrem. Não porque tenham um dom superior de adivinhação. É simplesmente porque percebemos melhor o relógio do tempo quando não temos a tarefa de prevê-lo ou de tirar suas lições. Hoje em dia os intelectuais parisienses estão perdidos em uma obscura disputa na qual, na primeira página dos grandes jornais, se acusam reciprocamente de ter abraçado a causa da reação, traindo os ideais de liberdade ou de igualdade, ou ambos ao mesmo tempo, sem que saibamos muito bem de que falam os beligerantes. Por outro lado, o visitante que cruzasse a porta do Museu de Arte Moderna da Cidade de Paris, onde se realizavam simultaneamente a retrospectiva das obras de Francis Picabia (1879-1953) e a apresentação do ciclo "Cremaster", de Matthew Barney, teria a sensação muito desconcertante de compreender totalmente em duas horas o que foram os ideais de um século e suas transformações.

Enciclopédia imaginária
Poderíamos inicialmente apresentar a coisa em termos de enciclopédia. O primeiro quadro de Picabia presente na exposição é um Pissaro mais verdadeiro que o real, e os últimos, pintados nos anos 1950-1960, situam-se na corrente da pintura informal. Nesse intervalo o artista teria pintado os quadros mais decididamente cubistas, as obras emblemáticas do dadaísmo e os depoimentos mais marcantes do retorno ao realismo mais acadêmico. Por motivos de idade, ele teria evitado apenas a mais antiga das escolas que marcaram os três quartos de século que atravessou. Falta somente o simbolismo na coleção de estilos que ele adotou. Podemos dizer que é esse elo ausente que o ciclo "Cremaster" apresenta, sob sua forma mais radical. Por meio das analogias que ele compõe entre seus filmes musicais, esculturas plásticas e "cibacromos", este reencena o sonho wagneriano da obra de arte total. Ele também carrega todo o imaginário e os processos favoritos de uma época: cenários de geleiras ou de colunatas rococó, formas lisas e linhas sinuosas, estética art déco que transforma uma carroceria de automóvel ou um aparelho de jantar em poemas absolutos, modulações de ópera pós-romântica sobre um fundo de dourado fim-de-século, divindades aquáticas, ninfas, sátiros e balés de meninas-flores ou evocações de lendas celtas. A relação entre um andar e outro do Museu de Arte Moderna compõe então uma singular dramaturgia da arte moderna. Podemos ver na obra de Matthew Barney o último episódio da lenda de um século, simplesmente colocando entre parênteses a era pop e a era conceitual e sublimando o bricabraque neogótico das músicas ou dos filmes contemporâneos para levar um ciclo da arte a seu ponto de partida. Podemos, ao contrário, dizer que o ciclo "Cremaster" resume toda a confusão simbolista, espiritualista, wagneriana e estetizante contra a qual, na década de 1910, se ergueram as provocações futuristas ou dadaístas de jovens como Picabia, pensando que, se aquilo era arte, mais valia condená-la à morte e celebrar o feliz reinado da máquina.

Modernismo e pós
O que vamos guardar, então, mais que a travessia das formas de um século, é a oposição de dois momentos característicos: os anos 1910-1920 contra os anos 1990-2000. Mas essa oposição não se deixa reduzir à oposição entre uma idade modernista das rupturas radicais e uma pós-moderna da recuperação e da reciclagem generalizadas. É de uma maneira mais complexa que se opõem os paradigmas estéticos que são mais geralmente paradigmas da relação entre os homens e a materialidade, portadores de visões antagônicas da história e do mundo comuns.
O que opõe o artista radical dos anos 1920 ao artista festejado no ano 2000 são, poderíamos dizer, duas idéias da antinatureza: nos anos 1915-1920, Picabia fez suas pinturas "mecanomorfas". Isso quer dizer que, para rejeitar a semelhança pictórica tradicional, ele se inspira muito fielmente nos desenhos de máquinas apresentados nas revistas científicas, chegando a lhes dar nomes de fantasia: "O Santo dos Santos" ou "Retrato de uma Jovem Americana em Estado de Nudez". Um pouco mais tarde ele escolheria para suas pinturas o esmalte dos pintores industriais. O que o opõe à ordem natural exigida pela tradição da pintura é a dureza do metal e a geometria da máquina. Essa opção estética está de acordo com o tempo das grandes esperanças depositadas na máquina destruidora do velho homem e promotora de um novo mundo. Picabia não parece ter-se ocupado muito de política, menos ainda de revolução. Mas o que liga as invenções dos artistas às lutas e às esperanças de um tempo passa justamente menos por seus compromissos pessoais que por uma atitude comum em relação aos potenciais da matéria sensível.


Quem visse as obras de Picabia e a apresentação do ciclo "Cremaster", de Matthew Barney, teria a sensação muito desconcertante de compreender totalmente em duas horas o que foram os ideais de um século e suas transformações


A antinatureza de Matthew Barney chama-se artifício. Sua matéria não é o metal das máquinas de sonho dadaístas ou da epopéia soviética, mas a matéria mole dos derivados do petróleo. Náilon, plástico, vinil e resina são, ao lado da tapioca, a matéria-prima essencial das esculturas mais ou menos monumentais que servem ora como réplicas, ora como pedestais para as imagens de seus filmes. Seus carros não têm bielas nem cilindros, somente carrocerias em plástico moldado. Contra a dureza das engrenagens maquínicas que os inventores dos anos 20 opunham às molezas dos velhos mundos e aos floreios do "modern style", ele escolheu a matéria residual e maleável, essa matéria tão dócil aos sonhos quanto às mãos, privilegiada por uma era que pensa menos em mudar a vida do que em abolir as fronteiras que separam o vivo do não-vivo. Uma "matéria" é sempre também uma certa idéia do que a matéria pode fazer pelo homem e do que o homem pode fazer com a matéria. Sem dúvida a ironia das pinturas "mecanomorfas" de Picabia está muito distante dos embriagamentos futuristas e dos sonhos construtivistas. Mas ela apenas mostra melhor seu desafio mais essencial. Revejamos os títulos dessas pinturas de engrenagens, pistões e polias: "Exibição Amorosa", "O Noivo" e, principalmente, várias vezes repetido, "Esta É a Menina Que Nasceu sem Mãe". O sonho maquínico é exatamente isso: o sonho da filiação materna abolida. É por isso que ele se ajustou tão naturalmente ao sonho da auto-emancipação operária. O sonho de autonomia é o de uma humanidade masculina engendrando-se a si mesma de novo. Máquinas celibatárias dos artistas maliciosos e aço temperado dos construtores soviéticos guardam juntos esse sonho de um potencial absoluto de auto-engendramento. Existem, certamente, várias maneiras de tirar proveito dele. Em Picabia, essa capacidade se realiza finalmente, longe de qualquer programa construtivista coletivo, no simples virtuosismo do técnico capaz de fazer qualquer coisa com o mesmo êxito: quadros ou antiquadros, figuração ou antifiguração. Opomos sem problemas o individualismo da invenção artística ao rigor do empreendimento coletivo. Mas é de um mesmo fundo comum que ambos se sustentam. O individualismo é sempre a outra face de um coletivismo.

Jamais ter nascido
Existem várias maneiras de liquidar esse sonho prometéico do homem que quer ser seu próprio genitor. Existe a velha sabedoria trágica que diz que o maior bem para o homem seria nunca ter nascido, e o segundo bem, morrer o mais cedo possível. Esta se transformou, na época romântica, em nostalgia do pré-nascimento. Nietzsche resumiu a sabedoria trágica wagneriana no desejo de Isolda agonizante, o de se perder novamente no grande mar original do Indiferenciado. A psicanálise, por sua vez, opôs de bom grado à utopia comunista do homem criador de si mesmo a miséria irredutível do animal humano como animal inacabado, marcado pela prematuração de seu nascimento.

Vida sem dor
Sob seus aspectos de retorno à razão simples, o capitalismo contemporâneo talvez alimente sua própria utopia: a utopia de uma vida que escapa a essa "miséria", uma vida consumidora sem dor, inteiramente passada na tranquilidade do ventre materno. O ciclo "Cremaster" se propõe a refazer analogamente a história do feto entre a indiferenciação e a diferenciação sexual. Mas não se trata somente de analogia ou de símbolo. Os interiores de automóveis que Matthew Barney encerra nos blocos de plástico, evocando ao mesmo tempo a graxa protetora e a pureza das geleiras, bem ilustram a reversão da ideologia metálica e mecânica. A matéria mole dos artifícios é a matéria sempre pronta a se fundir em um oceano primitivo ou em líquido amniótico para celebrar uma vida fetal elevada à dimensão da eternidade.
Aqui mais uma vez o individual e o coletivo não se separam, assim como a arte e a política. Graves pensadores comovem-se regularmente com os perigos que representaria o narcisismo exacerbado do "indivíduo democrático" para a gestão dos interesses coletivos. Esses pretensos opostos, no entanto, bem poderiam ser apenas as duas faces de uma mesma moeda. O sonho de proteção materna ininterrupta que traduz o universo líquido do artista da moda é sincrônico com essa promessa de segurança em que os países ricos resumem hoje o todo da política.

Jacques Rancière é professor na Universidade de Paris 8 e autor de "O Dissenso" (ed. 34). Escreve regularmente na seção "Autores".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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