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São Paulo, domingo, 26 de janeiro de 2003

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"Para Entender Hitler", de Ron Rosenbaum, analisa os paradoxos implicados nas interpretações sobre o "Führer"

A vertigem do Holocausto

Marcelo Coelho
Colunista da Folha

O senhor considera Hitler intrinsecamente mau? Ele sabia que o que estava fazendo era errado?". O jornalista Ron Rosenbaum fez essa pergunta a sir Hugh Trevor-Roper, um dos mais importantes biógrafos do "Führer". "Oh, não!", declarou Trevor-Roper com grande firmeza e asperidade. "Hitler estava convencido de sua própria retidão." Trevor-Roper não é o único, diz Rosenbaum. Efraim Zuroff, principal caçador de nazistas de Israel, concorda com essa tese. "Hitler achava que era um médico! Matando germes! Para ele, os judeus não passavam disso! Ele acreditava que estava fazendo o bem, e não o mal!". Estamos apenas na página 27 deste livro extraordinário, e as mais diversas interpretações e contra-interpretações a respeito de Hitler vão surgindo de maneira vertiginosa. Alan Bullock, outro biógrafo ilustre, opõe-se frontalmente a Trevor-Roper. Considera que Hitler era um farsante, um charlatão astucioso; e acrescenta: "Vamos enfrentar a verdade nua e crua, o fato de que, em muitos aspectos, ele era uma pessoa como você e eu".

Além dos parâmetros
Colocada desta forma, a questão deixa de pertencer apenas ao âmbito da história ou da psicopatologia para exigir a intervenção de filósofos, teólogos, pensadores morais. Hitler seria "apenas" um caso extremo da maldade humana? Ou estaria situado além de qualquer parâmetro inteligível, não sendo possível (nem lícito) compará-lo a outros tiranos, como Nero, Stálin ou Pol Pot? Entender Hitler, explicar seu comportamento, seria uma maneira disfarçada de perdoá-lo? O cineasta Claude Lanzmann, diretor de "Shoah", praticamente expulsa Ron Rosenbaum de sua casa, considerando obscena qualquer investigação sobre Hitler. "Você pode pegar todas as razões, todos os campos de explicação, quer seja a explicação psicanalítica ou uma oposição entre o espírito alemão e o espírito judeu, a infância de Hitler, o desemprego na Alemanha...", diz Lanzmann, "mas há um hiato entre todos os campos de explicação e os 6 milhões de mortes efetivas". Nada pode justificar o genocídio; procurar explicações seria aceitá-lo. Não se deve perguntar sobre o porquê, afirma Lanzmann, repetindo o título de um ensaio que escreveu sobre os campos de extermínio.


Hitler seria "apenas" um caso extremo da maldade humana ou estaria além de todo parâmetro inteligível?


Rosenbaum observa, entretanto, que a frase utilizada por Lanzmann nesse ensaio -"aqui não existe por quê"- foi tirada das memórias de Primo Levi, um sobrevivente de Auschwitz. Levi conta que, no dia de sua chegada ao campo, sofre uma violência do guarda alemão e pergunta-lhe: "Warum?" ("por quê?"). Ao que o guarda responde: "Hier ist kein warum", "aqui não há por quê". O estranho, diz Rosenbaum, é que Lanzmann adote a frase daquele nazista como mandamento a ser seguido. Obedecer a isso não seria dar a Hitler uma vitória póstuma? Mas entendê-lo "em seu contexto histórico" ou em sua "motivação psicológica" não seria também minimizar sua responsabilidade pelo que aconteceu? O teólogo Emil Fackenheim sugere que se faça um duplo movimento: é preciso entender os processos que produzem o mal em Hitler e, ao mesmo tempo, resistir à explicação, resistir à idéia de que se possa tirar a responsabilidade pessoal de Hitler pelo genocídio.

O anti-semitismo alemão
Mas aqui surge outro debate. De um lado, os historiadores que atribuem a Hitler o papel decisivo no planejamento do Holocausto. De outro, os que consideram que o anti-semitismo alemão era tão intenso que, se não tivesse havido Hitler, outro assassino teria de qualquer modo ocupado o seu lugar. E quando, em que momento, teria surgido o plano do assassinato em massa? Teria Hitler hesitado antes de determinar a "solução final"? Ou teria apenas fingido hesitação, disfarçado seus propósitos, com requintes de cinismo? De George Steiner a Daniel Goldhagen, de Milton Himmelfarb a Yehuda Bauer, os mais eminentes pesquisadores e intérpretes são entrevistados por Rosenbaum. Cada capítulo do livro é um primor de sutileza crítica, de equilíbrio moral e de clareza expositiva. Desde as teorias mais bizarras sobre a psique do "Führer" -por exemplo, a de que Hitler não tinha um testículo- até as angustiadas e quase auto-recriminatórias especulações de um George Steiner sobre as raízes do anti-semitismo europeu, tudo é examinado com impressionante sensibilidade para o pormenor, a ironia, o paradoxo.

Labirinto de interpretações
Muito cético com relação às explicações psicanalíticas para o "caso Hitler", Ron Rosenbaum é entretanto especialmente atento para os deslizes e os atos falhos cometidos pelos seus entrevistados. O autor revela-se aqui um sutil e quase borgiano "intérprete das interpretações" sobre Hitler. Em cada tentativa de explicar Hitler, argumenta Rosenbaum, há uma concepção a respeito do mal, da história, da natureza humana. É nesse labirinto de investigações em que o livro penetra, sem jamais perder a transparência e o rigor intelectual. "Para Entender Hitler" é um livro luminoso -mesmo para quem ache preferível desistir de qualquer explicação.

Para Entender Hitler
644 págs., R$ 55,00
de Ron Rosenbaum. Trad. Eduardo Francisco Alves. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2585-2000).


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