São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 2006

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Ponto de fuga

Céu cor de chumbo

JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

No final do ano passado, filas enormes se formavam diante do Grand Palais, em Paris. A multidão aguardava para ver uma exposição consagrada ao tema da melancolia. Esperanças, forças em direção a um belo futuro, experiências que exaltam a alma, erros enérgicos, cabeçadas, tudo isso talvez tenha permanecido para trás, em outros tempos, que a lembrança torna tão ensolarados. Hoje, é a vez da melancolia, de seu sucesso; quem se abalaria para mostras, livros, ciclos de conferência, por exemplo, sobre a esperança? Não tantos, certamente, não tantos. As épocas possuem seus estados de alma.
A Antigüidade e o Renascimento atribuíram à melancolia poderes criadores: ela seria o temperamento próprio aos gênios, aos filósofos, aos políticos, aos poetas e artistas mais altos. Teólogos cristãos descobriram nela um bloqueio demoníaco, que impediria o contato com Deus. Esse diabolismo da melancolia não foi definitivo, como comprova a iconografia do Cristo melancólico, freqüente no século 15. A medicina moderna rebatizou-a com nomes técnicos. Variou segundo os momentos e os enfoques, mas nunca se interrompeu. Ela vibra mais agora, nestes climas de disforia.
A representação canônica do melancólico foi fixada pelos gregos: o rosto apoiado na mão, e o cotovelo sobre o joelho; arquitetura corpórea que busca sustentar o corpo inerte.
Nos olhos fixos, o mundo se dissolve.

Fastio
O sucesso de uma exposição não basta como critério de sua qualidade. A mostra sobre a melancolia tinha um subtítulo: "Gênio e Loucura no Ocidente". Mas o vínculo, assinalado pelos pensadores clássicos, entre criação e estados macambúzios não foi explorado. A palavra loucura causa impacto, mas é imprecisa e geral.
As mostras do Grand Palais são destinadas ao "grande público", e sua qualidade é medida pelo número de entradas. Nessa "Melancolia", o que se fez foi juntar, sem rigor e aprofundamento; no pior espírito "pós-moderno", o que se fez foi ajuntar obras soberbas, embora muitas só tivessem uma relação remota com o tema, e faltassem vertentes inteiras de reflexão. Pontos como a especificidade do tédio romântico ou o aporte do existencialismo foram sobrevoadas mal e mal.

Decadismo
Há um poema de Kaváfis [1863-1933] intitulado "À Espera dos Bárbaros". Imagina fastos bizantinos em um império portentoso e esgotado. Na ágora, todos esperam. Os senadores não legislam mais. O imperador sentou-se no trono, diante da grande porta, com sua coroa solene. Os pretores estão ricamente vestidos, carregados de jóias e de insígnias. Todos esperam a chegada dos bárbaros invasores para submeterem-se a eles. Mas a noite cai e os bárbaros não chegam; é bem possível nem mesmo existam mais bárbaros. "Sem bárbaros, o que será de nós?", pergunta, inquieto, o poema.
O último verso responde: "Ah! eles eram uma solução".

Home
As perspectivas se embaçaram. É difícil perceber os longes. As ações não vão além de um sentido curto. Como máquinas que encontrassem sua razão de ser nos próprios movimentos, não naquilo que produzem. Enquanto isso, à volta, desastres, calamidades, violências coletivas e enormes. A melancolia de hoje brota, talvez, dessa junção entre o esgotamento dos sinais e o cataclismo que ronda, temido e, quem sabe, desejado também.
Essa tristeza perpassa um filme como "Munique", em que as razões políticas se mudam em vendeta, atropelam os sentimentos humanos, levam àquilo que, para Steven Spielberg, traz a experiência mais constante da angústia e da melancolia: a perda do lar, da casa, do refúgio.
É o início dos anos de 1970 e o ponto inicial de uma escalada feroz entre israelenses e palestinos. Cada um, cada lado, tem suas razões, suas convicções, seus argumentos. Eles são gerais, porém, e sofrem à prova concreta dos laços afetivos que chegam a se formar mesmo entre inimigos. Com a alma arruinada, o agente, encarnado pelo frágil e admirável Eric Bana, termina por desistir. O último plano se fixa na paisagem de Nova York, cheia de arranha-céus. No meio deles, as torres gêmeas.


Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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