São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 2006

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ cultura

Em "Contra-História da Filosofia", Michel Onfray faz um tratado raivoso e provocativo desde os pré-socráticos

Demagogia do pensamento

ROGER-POL DROIT


O projeto era bom: tirar da sombra um exército de pensadores esquecidos, marginais e excluídos da academia; mas o resultado foi desastroso

Ser ateu. Recusar a se deixar enganar pelos clérigos, sejam quais forem. Viver em seu corpo, pelo desenvolvimento da própria vida, por sua verdadeira intensidade. Dissipar a ilusão de uma alma separada da carne, afastar a fábula de uma sobrevida eterna. Buscar os prazeres, multiplicá-los, combiná-los, refiná-los. Afirmar que, apesar de tudo, uma moral é possível. Combater a renúncia sob todas as formas. Agir e pensar sempre como libertino, mais que devoto, como rebelde mais que escravo.
Em torno dessas opções se organizam, de geração em geração, as trajetórias de alguns pensadores e artistas. Essas opções fundamentais comprometem a vida cotidiana assim como as preferências teóricas. É uma maneira essencial de ser filósofo, embora segundo as evidências existam outras. Há cerca de 15 anos Michel Onfray a reivindica. Ele não é o único, mas nem todos aprovam, nem de longe, as conseqüências que ele extrai delas, a violência militante que ele mobiliza para defendê-las.
Pois nada obriga, quando se é ateu, a considerar débeis os que crêem em Deus. Nada obriga, quando se é materialista, a considerar que todos os outros são imbecis e, além disso, necessariamente reacionários. Mas é o que faz, cada vez mais grosseiramente, esse escritor que conhecemos, outrora, bem mais elegante.
Os primeiros volumes de sua "Contre-Histoire de la Philosophie 1 e 2" (Contra-História da Filosofia, vols. 1 e 2, Ed. Grasset et Fasquelle, 330 págs. e 340 págs., 20,90 euros/R$ 53 cada um) testemunham abundantemente essa crispação.
O projeto era bom: tirar da sombra um exército de pensadores esquecidos, excluídos do panteão acadêmico, desenhar com sua coorte reunida uma face oculta do Ocidente, a história de uma filosofia diferente, geralmente desprezada. O resultado é desastroso. Em vez do que poderia ser um panfleto curto, incisivo e estimulante, foram anunciados seis volumes (!). Os dois primeiros são um mau prenúncio dos demais: muitos dados arquiconhecidos, alguns erros terríveis e, principalmente, uma superdose de provocação simplista e de perspectivas falseadas.

Repetição
Passemos ao arquiconhecido. Afinal, é bom repetir, mesmo de segunda ou terceira mão, que os sofistas gregos não são tão estúpidos e cúpidos quanto Platão quer dar a entender ou que Demócrito, convencionalmente classificado entre os "pré-socráticos", é um filósofo contemporâneo de Sócrates, autor de uma obra bem mais importante e acessível do que se diz.
Alguns erros assustadores são muito mais desagradáveis, sobretudo quando se joga a tal ponto com um reparador de erros e provedor de lições. "Desde o século 5º da era comum, o grego não é mais falado por ninguém", diz. No entanto é publicamente notório que naquela época, e até boa parte do século 6º, obras consideráveis foram escritas em grego por filósofos renomados, notadamente Proclo, Hierócles, Damáscio, Simplício.
Sejamos generosos. Admitamos que todos têm o direito de errar. Invoquemos ainda a liberdade de expressão diante de certas caricaturas: as "águas viscosas" do pensamento de Pascal, as "nocividades" de Platão. É mais difícil ficar calmo diante da vontade demonstrada de "purificar desses miasmas o ensino da filosofia na última série do secundário".
Decididamente, para travar sua guerra ideológica, Onfray inventa do nada uma filosofia supostamente dominante, a ser combatida por todos os meios.
Toda a história, nessa fábula, se resume à luta de dois campos: materialistas contra idealistas, amigos do corpo contra inimigos do corpo. Os primeiros são gentis, progressistas, lúcidos e insubmissos, e perderam a batalha do ensino oficial.
Os idealistas, mistificados e mistificadores, amigos da ordem estabelecida, apóiam as potências dominadoras e controlam a universidade.
Diante dessa fantasmagoria, várias possibilidades: como essas paleobobagens foram melhor formuladas por Lênin e Stálin, é melhor preferir o original à cópia; lembrar que o materialismo é estudado há décadas, na Sorbonne e em outros lugares, e foi até amplamente dominante; arranjar tudo numa gaveta rotulada com esse velho termo grego que todo mundo compreende: demagogia.

Onde encomendar
Livros em francês podem ser encomendados na livraria Francesa (0/ xx/11/ 3231-4555) ou no site www.alapage.com


Este texto foi publicado no "Le Monde".
Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves.

Contre-Histoire de la Philosophie 1 e 2
330 págs. e 340 págs., 20,90 euros, R$ 53 (cada um) de Michel Onfray. Ed. Grasset et Fasquelle (França)

Onde encomendar Livros em francês podem ser encomendados na livraria Francesa (0/ xx/11/ 3231-4555) ou no site www.alapage.com.


Texto Anterior: + autores: Erudição em chamas
Próximo Texto: + sociedade: O historiador cidadão
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.