São Paulo, domingo, 26 de março de 2000


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+ educação

Por uma defesa da universidade pública

Roberto A. Salmeron
especial para a Folha

Nos últimos anos temos visto as universidades públicas serem defendidas por docentes preocupados, que se manifestaram em grupos ou em caráter individual, abordando principalmente os problemas cruciais de verbas insuficientes e ameaça de que os estudos poderiam passar a ser pagos. Há muito o que dizer sobre esses dois assuntos; vamos nos concentrar sobre o segundo. De vez em quando surgem rumores, como se fossem "fugas" do Ministério da Educação, de que as universidades públicas passariam a cobrar pelo ensino. Não aparecem notícias oficiais, mas os boatos nunca foram desmentidos. A preocupação dos docentes é justificada porque a defesa dos estudos gratuitos é do mais elevado interesse social e reflete senso de responsabilidade e de ética. A universidade, devendo ser a consciência do país, tem de oferecer a todos os jovens a mesma oportunidade e seria socialmente imoral incorporar em sua própria estrutura elementos que conduziriam à discriminação de classes por situações econômicas.

Argumentos inaceitáveis
Cobrar mensalidades de estudantes nas universidades públicas seria oficializar um ensino de classe social, como já ocorre nas escolas do segundo grau. Há cerca de 40 anos, os ginásios públicos no Brasil eram de muito bom padrão, alguns não ficavam muito distantes das boas escolas européias. Os professores desses ginásios eram, na maioria, de alto nível, e não era raro ver alguns deles abraçarem a carreira universitária, nomeados professores titulares por concurso. É inaceitável o argumento de que escolas privadas do segundo grau oferecem aos professores salários mais elevados que os das escolas públicas, com duas consequências: podem por isso ministrar ensino de melhor qualidade, e os estudantes poderiam pagar também os estudos universitários. Esse argumento é, na realidade, uma confissão de fracasso dos governos federal e estaduais atuais e de todos os que os precederam nos últimos 40 anos. Os estudos pagos dificultariam ainda mais o acesso às escolas superiores dos jovens de famílias menos favorecidas, e constatamos que com o correr do tempo a proporção dessas famílias aumenta consideravelmente. Por exemplo: tomando como base uma mensalidade de R$ 1.000, quantos docentes universitários, com os salários atuais, poderiam custear os estudos de seus filhos?

Alto nível moral
Seria erro lamentável e dificilmente corrigível copiar soluções de países que têm condições sociais e econômicas e histórias culturais diferentes das nossas. A universidade não pode ser considerada somente em seu aspecto utilitário, a universidade é o lugar onde se planta a semente da cultura que mantém a identidade nacional. Na sociedade brasileira, são as universidades públicas que têm as melhores condições para estimular nossas aspirações culturais e, por isso, devem ser colocadas no mais alto nível moral. Os docentes deveriam tornar mais conhecidas as suas preocupações, provocando o diálogo. É estranho que os estudantes, que são os maiores interessados, não se exprimam a respeito desse assunto. A comunidade acadêmica deveria tomar a iniciativa de lançar o diálogo em grande escala, antes que seja tarde demais, porque o diálogo é indispensável para a solução dos problemas ou para esclarecer situações antes que problemas sejam criados. Já houve no passado ministros da Educação que quiseram introduzir ensino pago nas universidades públicas, inclusive durante a última ditadura militar, mas felizmente não encontraram eco nem nos próprios governos a que pertenciam para pôr em execução suas idéias. Apesar dos progressos visíveis de nossas universidades, o perigo de que isso venha a acontecer é grande, devido a algumas circunstâncias internas e a outras internacionais. Como circunstâncias internas há, de um lado, a onda de privatizações sem discriminação, apresentadas sempre como inelutáveis e salutares, induzindo ambiente psicologicamente favorável; e, de outro lado, as magras verbas atribuídas, que produzem a compressão dos salários, poderiam ser utilizadas como argumento para a procura de recursos em outras fontes. As circunstâncias internacionais são ligadas à globalização da economia, na qual grupos com interesses financeiros tendem a considerar a educação e a cultura como mercadorias. Nesse sentido há pressão crescente de certos círculos dos Estados Unidos, pressão que não pode ser ignorada, que deve ser vigiada e combatida energicamente. Vejamos alguns aspectos de como essa pressão é exercida. Como foi amplamente divulgado pela imprensa em todo o mundo, de 30 de novembro a 3 de dezembro de 1999 os ministros do Comércio de 135 países participaram da reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) que ocorreu em Seattle (EUA). A OMC substitui o antigo Gatt (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), que funcionava em Genebra, na Suíça; como seu nome indica, o Gatt tratava principalmente de problemas ligados às tarifas de importação de mercadorias por todos os países. A finalidade da reunião da OMC era definir novas regras para o comércio internacional, com propostas para incluir nas discussões outras áreas além daquelas tradicionalmente tratadas pelo Gatt. Mas ela se caracterizou por uma luta ferrenha dos países ricos entre si, principalmente Estados Unidos de um lado e União Européia do outro, para defenderem seus mercados, com absoluta falta de interesse pelos países do Terceiro Mundo. Estes encontram dificuldade em defender seus direitos, mesmo quando esses direitos foram estipulados em acordos anteriores aprovados por todos. A arrogância dos ricos foi além do que poderia ser previsto, a tal ponto que 52 países pobres, especialmente da África, decidiram não assinar um eventual texto final, para cuja discussão não foram convidados -embora estivessem presentes- e que mal teriam tempo de ler. Como também foi amplamente divulgado, a reunião da OMC em Seattle fracassou e nenhum acordo foi possível.

Falta de equilíbrio
Embora não tenham sido decisivos, dois fatores contribuíram para o fracasso das negociações, porque chamaram a atenção do mundo para a total falta de equilíbrio com que estavam sendo conduzidas: a ação vigorosa de organizações não-governamentais (ONGs) e a atitude passiva de alguns países do Terceiro Mundo. Estiveram presentes em Seattle de 800 a 1.000 ONGs de muitos lugares, com cerca de 50 mil representantes. Pela primeira vez na história, a sociedade civil se preparou em escala mundial para protestar contra a globalização, com participação de sindicatos, como o poderoso sindicato de trabalhadores norte-americano AFL-CIO, organizações ecologistas, organizações religiosas e organizações específicas antimundialização criadas nos últimos anos em várias partes, como o International Forum on Globalization e a Public Citizen, dos Estados Unidos, Friends of the Earth, da Grã-Bretanha, Third World Network, situada em Penang, na Malásia, o Observatoire de la Mondialisation da França. Por outro lado, representantes de alguns países do Terceiro Mundo mantiveram deliberadamente atitude de não-cooperação, pondo em evidência a posição passiva em que foram discriminadamente colocados. Por causa desses dois fatores, o fracasso das negociações foi considerado, na imprensa européia, uma vitória para os movimentos dos cidadãos e para os países pobres. A regularização do comércio mundial é, evidentemente, necessária. No entanto, a OMC, embora recente, já tem história preocupante. Numa reunião anterior, em 1994, foi assinado um acordo geral para o comércio de serviços (AGCS). A inclusão dos serviços no âmbito de assuntos tratados na OMC foi novidade, e a educação foi considerada serviço, no mesmo nível que os serviços prestados por empresas comerciais. O AGCS estipula a sua liberação e insiste em que novas negociações deveriam ser realizadas neste ano para eliminar o que chama de efeitos desfavoráveis de certas medidas que impedem atualmente o acesso efetivo ao mercado de serviços, entre eles a educação. A educação que interessa aos círculos financeiros é a de nível superior, visando a formação de profissionais. Em nenhum dos textos do AGCS há menção de criação de universidades como as que nós concebemos para as nossas universidades públicas -universidades como centros de ensino e de criação intelectual nos mais variados domínios, artes, letras, ciências humanas e ciências naturais e exatas, lugar de germinação da cultura e da identidade de um povo.

Exceção cultural
Na OMC, os Estados Unidos chegaram ao extremo de querer impor a privatização de todas as atividades culturais, com regulamentos que proibiriam os governos de todos os países de subvencionar atividades como, por exemplo, cinema, teatro e publicação de livros. A fim de impor seu peso nas negociações, enviou para a Europa, como propagandistas dessas idéias, alguns cineastas de prestígio, conhecidos do grande público, como Steven Spielberg e Martin Scorsese. A França conseguiu salvar a situação, propondo a cláusula de exceção cultural, pela qual as atividades de natureza cultural não ficam sujeitas às normas da OMC, o que foi aprovado pela maioria dos países.
A campanha na OMC pela privatização do ensino em nível mundial é intensa. No número de fevereiro de 2000 da revista "Correio da Unesco" há um artigo cujo título é "A educação se tornará uma mercadoria?" e o subtítulo é "A Organização Mundial do Comércio começou um processo de liberação da educação, um dos últimos mercados tão lucrativos quanto protegidos; até aonde irá ela?". O artigo chama a atenção para o fato de que, para investidores financeiros, a educação totalmente privatizada representa um dos maiores mercados mundiais, de centenas de bilhões de dólares por ano.
Outro fato alarmante: em novembro passado houve uma reunião em Upsala, na Suécia, para estudar a implantação de universidades privadas norte-americanas na Europa. A reunião não foi aberta a todos, houve seleção de participantes. O ministro da Educação Nacional, da Ciência e da Tecnologia da França, Claude Allègre, que não pode ser considerado suspeito porque é conhecido como grande admirador das boas universidades americanas, em entrevista ao jornal "Le Monde" a respeito de questões do ensino francês, não perdeu a oportunidade de fazer crítica severa ao que foi discutido em Upsala. O jornalista lhe perguntou: "Foi sugerido que a educação faça parte dos domínios de discussão da Organização Mundial do Comércio que se realizará em Seattle a partir de 30 de novembro. Esta hipótese lhe causa inquietação?".
Resposta do ministro: "Estamos em uma época de virada histórica. Duas notícias me preocuparam. Houve recentemente em Upsala uma reunião para implantação de universidades (privadas) americanas na Europa, para a qual, como por acaso, nós (franceses) não fomos convidados. Em seguida, a tentativa de incluir educação nos campos de negociação discutidos pela OMC, o que foi recusado, principalmente pela Europa".
O ministro continuou: "Vemos então, atualmente, vontade de privatizar o ensino. No que me concerne, sou adepto de maneira indefectível do serviço público de ensino, direi até de um serviço público com especificidades nacionais, mesmo se conseguimos fazer uma harmonização européia. Por quê? Porque esse é o fundamento da República. A igualdade de chances para todos é essencial. São nossas referências culturais e históricas. O ensino uniformizado conduziria a um mundo uniforme, "one teaching, one thinking". Que nossos estudantes vão estudar nos Estados Unidos, na Inglaterra é absolutamente desejável, mas que os americanos instalem suas universidades no mundo inteiro, todas com um mesmo modelo, um mesmo currículo, seria uma catástrofe. Nós estamos preparando um contra-ataque, inclusive no domínio do ensino à distância".
O ministro resumiu bem a situação. Certos círculos dos Estados Unidos estão fazendo pressão em nível mundial para a privatização do ensino.
Devemos realçar o fato extremamente grave que é a atuação desses círculos em instituições que são accessíveis somente a representantes dos governos, como a OMC, onde americanos, assim como representantes de outros países, não podem propor nada sem o conhecimento e o apoio do seu governo.
E o Brasil nisso tudo? O governo brasileiro se oporia às teses norte-americanas? Como os EUA são tomados no Brasil como modelo, praticamente sem discriminação em tudo o que têm de bom e de ruim, como se o resto do mundo não existisse, devemos ter pouca dúvida sobre a adoção aqui das teses americanas, que poderiam ser apresentadas como a solução de nossos problemas.
Devido às condições internas e às pressões internacionais, o perigo de que o ensino em universidades públicas venha a ser pago é grande, nunca foi tão grande quanto agora. Os docentes e os estudantes deveriam lançar o diálogo sobre esse assunto, com debates em grande escala, entre si e com as autoridades responsáveis, que têm a obrigação de definir claramente, sem ambiguidade, sua posição em relação a esse problema social e moral, como fez o ministro francês.


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