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+ educação
Por uma defesa da universidade pública
Roberto A. Salmeron
especial para a Folha
Nos últimos anos temos visto as universidades públicas serem defendidas por docentes preocupados, que se
manifestaram em grupos ou em caráter
individual, abordando principalmente
os problemas cruciais de verbas insuficientes e ameaça de que os estudos poderiam passar a ser pagos.
Há muito o que dizer sobre esses dois
assuntos; vamos nos concentrar sobre o
segundo. De vez em quando surgem rumores, como se fossem "fugas" do Ministério da Educação, de que as universidades públicas passariam a cobrar pelo
ensino. Não aparecem notícias oficiais,
mas os boatos nunca foram desmentidos. A preocupação dos docentes é justificada porque a defesa dos estudos gratuitos é do mais elevado interesse social e
reflete senso de responsabilidade e de
ética. A universidade, devendo ser a
consciência do país, tem de oferecer a todos os jovens a mesma oportunidade e
seria socialmente imoral incorporar em
sua própria estrutura elementos que
conduziriam à discriminação de classes
por situações econômicas.
Argumentos inaceitáveis
Cobrar
mensalidades de estudantes nas universidades públicas seria oficializar um ensino de classe social, como já ocorre nas
escolas do segundo grau. Há cerca de 40
anos, os ginásios públicos no Brasil eram
de muito bom padrão, alguns não ficavam muito distantes das boas escolas européias. Os professores desses ginásios
eram, na maioria, de alto nível, e não era
raro ver alguns deles abraçarem a carreira universitária, nomeados professores
titulares por concurso.
É inaceitável o argumento de que escolas privadas do segundo grau oferecem
aos professores salários mais elevados
que os das escolas públicas, com duas
consequências: podem por isso ministrar ensino de melhor qualidade, e os estudantes poderiam pagar também os estudos universitários. Esse argumento é,
na realidade, uma confissão de fracasso
dos governos federal e estaduais atuais e
de todos os que os precederam nos últimos 40 anos. Os estudos pagos dificultariam ainda mais o acesso às escolas superiores dos jovens de famílias menos favorecidas, e constatamos que com o correr
do tempo a proporção dessas famílias
aumenta consideravelmente. Por exemplo: tomando como base uma mensalidade de R$ 1.000, quantos docentes universitários, com os salários atuais, poderiam custear os estudos de seus filhos?
Alto nível moral
Seria erro lamentável e dificilmente corrigível copiar soluções de países que têm condições sociais e econômicas e histórias culturais
diferentes das nossas. A universidade
não pode ser considerada somente em
seu aspecto utilitário, a universidade é o
lugar onde se planta a semente da cultura
que mantém a identidade nacional. Na
sociedade brasileira, são as universidades públicas que têm as melhores condições para estimular nossas aspirações
culturais e, por isso, devem ser colocadas
no mais alto nível moral.
Os docentes deveriam tornar mais conhecidas as suas preocupações, provocando o diálogo. É estranho que os estudantes, que são os maiores interessados,
não se exprimam a respeito desse assunto. A comunidade acadêmica deveria tomar a iniciativa de lançar o diálogo em
grande escala, antes que seja tarde demais, porque o diálogo é indispensável
para a solução dos problemas ou para esclarecer situações antes que problemas
sejam criados.
Já houve no passado ministros da Educação que quiseram introduzir ensino
pago nas universidades públicas, inclusive durante a última ditadura militar, mas
felizmente não encontraram eco nem
nos próprios governos a que pertenciam
para pôr em execução suas idéias. Apesar dos progressos visíveis de nossas universidades, o perigo de que isso venha a
acontecer é grande, devido a algumas
circunstâncias internas e a outras internacionais.
Como circunstâncias internas há, de
um lado, a onda de privatizações sem
discriminação, apresentadas sempre como inelutáveis e salutares, induzindo
ambiente psicologicamente favorável; e,
de outro lado, as magras verbas atribuídas, que produzem a compressão dos salários, poderiam ser utilizadas como argumento para a procura de recursos em
outras fontes. As circunstâncias internacionais são ligadas à globalização da economia, na qual grupos com interesses financeiros tendem a considerar a educação e a cultura como mercadorias. Nesse
sentido há pressão crescente de certos
círculos dos Estados Unidos, pressão
que não pode ser ignorada, que deve ser
vigiada e combatida energicamente. Vejamos alguns aspectos de como essa
pressão é exercida.
Como foi amplamente divulgado pela
imprensa em todo o mundo, de 30 de novembro a 3 de dezembro de 1999 os ministros do Comércio de 135 países participaram da reunião da Organização
Mundial do Comércio (OMC) que ocorreu em Seattle (EUA). A OMC substitui o
antigo Gatt (Acordo Geral de Tarifas e
Comércio), que funcionava em Genebra,
na Suíça; como seu nome indica, o Gatt
tratava principalmente de problemas ligados às tarifas de importação de mercadorias por todos os países. A finalidade
da reunião da OMC era definir novas regras para o comércio internacional, com
propostas para incluir nas discussões outras áreas além daquelas tradicionalmente tratadas pelo Gatt. Mas ela se caracterizou por uma luta ferrenha dos
países ricos entre si, principalmente Estados Unidos de um lado e União Européia do outro, para defenderem seus
mercados, com absoluta falta de interesse pelos países do Terceiro Mundo.
Estes encontram dificuldade em defender seus direitos, mesmo quando esses
direitos foram estipulados em acordos
anteriores aprovados por todos. A arrogância dos ricos foi além do que poderia
ser previsto, a tal ponto que 52 países pobres, especialmente da África, decidiram
não assinar um eventual texto final, para
cuja discussão não foram convidados
-embora estivessem presentes- e que
mal teriam tempo de ler. Como também
foi amplamente divulgado, a reunião da
OMC em Seattle fracassou e nenhum
acordo foi possível.
Falta de equilíbrio
Embora não tenham sido decisivos, dois fatores contribuíram para o fracasso das negociações,
porque chamaram a atenção do mundo
para a total falta de equilíbrio com que
estavam sendo conduzidas: a ação vigorosa de organizações não-governamentais (ONGs) e a atitude passiva de alguns
países do Terceiro Mundo. Estiveram
presentes em Seattle de 800 a 1.000 ONGs
de muitos lugares, com cerca de 50 mil
representantes.
Pela primeira vez na história, a sociedade civil se preparou em escala mundial
para protestar contra a globalização,
com participação de sindicatos, como o
poderoso sindicato de trabalhadores
norte-americano AFL-CIO, organizações ecologistas, organizações religiosas
e organizações específicas antimundialização criadas nos últimos anos em várias
partes, como o International Forum on
Globalization e a Public Citizen, dos Estados Unidos, Friends of the Earth, da
Grã-Bretanha, Third World Network, situada em Penang, na Malásia, o Observatoire de la Mondialisation da França.
Por outro lado, representantes de alguns
países do Terceiro Mundo mantiveram
deliberadamente atitude de não-cooperação, pondo em evidência a posição
passiva em que foram discriminadamente colocados.
Por causa desses dois fatores, o fracasso das negociações foi considerado, na
imprensa européia, uma vitória para os
movimentos dos cidadãos e para os países pobres.
A regularização do comércio mundial
é, evidentemente, necessária. No entanto, a OMC, embora recente, já tem história preocupante. Numa reunião anterior,
em 1994, foi assinado um acordo geral
para o comércio de serviços (AGCS).
A inclusão dos serviços no âmbito de
assuntos tratados na OMC foi novidade,
e a educação foi considerada serviço, no
mesmo nível que os serviços prestados
por empresas comerciais. O AGCS estipula a sua liberação e insiste em que novas negociações deveriam ser realizadas
neste ano para eliminar o que chama de
efeitos desfavoráveis de certas medidas
que impedem atualmente o acesso efetivo ao mercado de serviços, entre eles a
educação.
A educação que interessa aos círculos
financeiros é a de nível superior, visando
a formação de profissionais. Em nenhum dos textos do AGCS há menção de
criação de universidades como as que
nós concebemos para as nossas universidades públicas -universidades como
centros de ensino e de criação intelectual
nos mais variados domínios, artes, letras,
ciências humanas e ciências naturais e
exatas, lugar de germinação da cultura e
da identidade de um povo.
Exceção cultural
Na OMC, os Estados Unidos chegaram ao extremo de
querer impor a privatização de todas as
atividades culturais, com regulamentos
que proibiriam os governos de todos os
países de subvencionar atividades como,
por exemplo, cinema, teatro e publicação de livros. A fim de impor seu peso
nas negociações, enviou para a Europa,
como propagandistas dessas idéias, alguns cineastas de prestígio, conhecidos
do grande público, como Steven Spielberg e Martin Scorsese. A França conseguiu salvar a situação, propondo a cláusula de exceção cultural, pela qual as atividades de natureza cultural não ficam
sujeitas às normas da OMC, o que foi
aprovado pela maioria dos países.
A campanha na OMC pela privatização
do ensino em nível mundial é intensa.
No número de fevereiro de 2000 da revista "Correio da Unesco" há um artigo cujo título é "A educação se tornará uma
mercadoria?" e o subtítulo é "A Organização Mundial do Comércio começou
um processo de liberação da educação,
um dos últimos mercados tão lucrativos
quanto protegidos; até aonde irá ela?". O
artigo chama a atenção para o fato de
que, para investidores financeiros, a educação totalmente privatizada representa
um dos maiores mercados mundiais, de
centenas de bilhões de dólares por ano.
Outro fato alarmante: em novembro
passado houve uma reunião em Upsala,
na Suécia, para estudar a implantação de
universidades privadas norte-americanas na Europa. A reunião não foi aberta a
todos, houve seleção de participantes. O
ministro da Educação Nacional, da Ciência e da Tecnologia da França, Claude
Allègre, que não pode ser considerado
suspeito porque é conhecido como grande admirador das boas universidades
americanas, em entrevista ao jornal "Le
Monde" a respeito de questões do ensino
francês, não perdeu a oportunidade de
fazer crítica severa ao que foi discutido
em Upsala. O jornalista lhe perguntou:
"Foi sugerido que a educação faça parte
dos domínios de discussão da Organização Mundial do Comércio que se realizará em Seattle a partir de 30 de novembro.
Esta hipótese lhe causa inquietação?".
Resposta do ministro: "Estamos em
uma época de virada histórica. Duas notícias me preocuparam. Houve recentemente em Upsala uma reunião para implantação de universidades (privadas)
americanas na Europa, para a qual, como por acaso, nós (franceses) não fomos
convidados. Em seguida, a tentativa de
incluir educação nos campos de negociação discutidos pela OMC, o que foi recusado, principalmente pela Europa".
O ministro continuou: "Vemos então,
atualmente, vontade de privatizar o ensino. No que me concerne, sou adepto de
maneira indefectível do serviço público
de ensino, direi até de um serviço público com especificidades nacionais, mesmo se conseguimos fazer uma harmonização européia. Por quê? Porque esse é o
fundamento da República. A igualdade
de chances para todos é essencial. São
nossas referências culturais e históricas.
O ensino uniformizado conduziria a um
mundo uniforme, "one teaching, one
thinking". Que nossos estudantes vão estudar nos Estados Unidos, na Inglaterra
é absolutamente desejável, mas que os
americanos instalem suas universidades
no mundo inteiro, todas com um mesmo modelo, um mesmo currículo, seria
uma catástrofe. Nós estamos preparando um contra-ataque, inclusive no domínio do ensino à distância".
O ministro resumiu bem a situação.
Certos círculos dos Estados Unidos estão
fazendo pressão em nível mundial para a
privatização do ensino.
Devemos realçar o fato extremamente
grave que é a atuação desses círculos em
instituições que são accessíveis somente
a representantes dos governos, como a
OMC, onde americanos, assim como representantes de outros países, não podem propor nada sem o conhecimento e
o apoio do seu governo.
E o Brasil nisso tudo? O governo brasileiro se oporia às teses norte-americanas? Como os EUA são tomados no Brasil como modelo, praticamente sem discriminação em tudo o que têm de bom e
de ruim, como se o resto do mundo não
existisse, devemos ter pouca dúvida sobre a adoção aqui das teses americanas,
que poderiam ser apresentadas como a
solução de nossos problemas.
Devido às condições internas e às pressões internacionais, o perigo de que o ensino em universidades públicas venha a
ser pago é grande, nunca foi tão grande
quanto agora. Os docentes e os estudantes deveriam lançar o diálogo sobre esse
assunto, com debates em grande escala,
entre si e com as autoridades responsáveis, que têm a obrigação de definir claramente, sem ambiguidade, sua posição
em relação a esse problema social e moral, como fez o ministro francês.
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