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A hora da verdade pobre
Turbulência financeira deveria levar Estados a tomar decisões
e oferecer oportunidade
de mudanças políticas
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Estamos acostumados à
ideia de que a crise do
sistema capitalista de
produção é ensejo para que a sociedade capitalista se passe a limpo.
Na crise, o capital mostra o
que ele é: um sistema quase automático de produção de riqueza que, em seu processo de reposição, expande o crédito, incha o capital financeiro, que,
chegando às alturas, estoura
para que as transações econômicas voltem a tomar pé na
realidade, reajustando oferta e
demanda dos bens produzidos
e consumidos.
Não há responsabilidade
pessoal no excesso. À medida
que cada um trata de seus interesses, nada mais natural que
procure as brechas do sistema
visando a aumentar seus lucros, seu salário, os juros de
seus investimentos, os benefícios sociais.
Mas a famosa equação segundo a qual a trama dos interesses privados resulta no reforço dos interesses públicos se
desfaz durante a crise, quando
se torna do interesse público
salvar o que puder dos interesses privados. Mas quais deles?
A redução da economia a seu
tamanho real, inclusive com
queima de ativos que se mostram inadequados à retomada
do círculo econômico, prejudica toda a população, mas de
forma tremendamente desigual, tanto do ponto de vista
econômico como do social.
Um banqueiro, um investidor, um industrial podem perder milhões, mas os assalariados perdem seus empregos. A
crise econômica se transforma
em crise social.
Até o início do século passado, a crise social ameaçava o
sistema político como um todo.
O espectro do socialismo
rondava a Europa, mas, no final
das contas, o resultado foi sempre um reforço violento do Estado, quer sob forma mais democrática, implementando políticas keynesianas, quer simplesmente sob forma ditatorial: nazismo ou socialismo
real.
Hoje em dia o panorama é diferente. Os assalariados prejudicados não se organizam como classe antagônica ao capital, mas pressionam pela manutenção dos direitos sociais
adquiridos, de sorte que reforçam o Estado sem reivindicar
sua transformação.
Na Europa, mesmo que isso
venha a prejudicar o processo
de integração europeia, consolidam-se o foguetório do presidente francês Nicolas Sarkozy
ou a caricatura do premiê italiano Silvio Berlusconi.
Na Ásia, com algumas exceções que nada têm a ver diretamente com a crise, firmam-se a
ditadura comunista ou o jogo
brutal do sistema político japonês. Na América do Sul, se reforça o novo populismo, que, já
antes da crise, crescia para dar
conta das demandas dos menos
favorecidos.
Sociedade de consumo
Para todos importa salvar a
sociedade de consumo. Vale o
Estado que se tem, desde que
consiga colocar a economia nos
eixos.
Uma diferença ocorre nos
Estados Unidos.
Obviamente, não há demandas por transformação do Estado, mas a política de Barack
Obama rompe com a política de
George W. Bush, promove maciça intervenção estatal no sistema financeiro -que, se não
estatiza os bancos, é porque talvez possa ter controle sobre
eles sem que haja completa
transferência da propriedade
para as mãos do Estado.
Uma das alterações básicas
na dinâmica do jogo político
ocorre justamente porque a
questão da propriedade deixa
de ter a importância de antigamente. Os meios de produção
se socializaram não porque
passaram para o controle democrático da população, mas
simplesmente porque caíram
nas mãos das burocracias impessoais.
Os bilionários do momento
são apenas pontas do iceberg
tecnoburocrático que conseguiram montar. Bill Gates desapareceria em pouco tempo se
a Microsoft não conseguisse
produzir a renovação de seus
produtos no ritmo imposto por
seus adversários.
O núcleo da propriedade está
nos meios da renovação tecnológica que tende a se repor por
si mesma.
No entanto, ao menos uma
mentira foi desmascarada: a
pretensão neoliberal de que os
mercados possam crescer sem
cair no abismo. Parece-me,
contudo, no sentido inverso do
que se tem pretendido. Por si só
o capital tende a se globalizar.
Com o desenvolvimento da
tecnociência, em particular
com a extraordinária expansão
dos meios de comunicação eletrônicos, era inevitável que o
sistema produtivo globalizasse
suas bases e o sistema financeiro passasse a operar continuadamente.
As regulações anteriores, inclusive o acordo de Basileia
[acordo de 1988 que regulamenta a atividade bancária,
substituído em 2004 pelo Basileia 2; atualmente se discute a
criação de um acordo de Basileia 3], se tornaram obsoletas; a
inventividade dos operadores
financeiros levou ao limite a expansão imaginária da riqueza
social.
Esse fenômeno de autoalimentação fantasiosa do capital
financeiro, que Marx admiravelmente descreveu como a
forma mais perfeita da alienação do capital, caminhou por si
só até que ele próprio encontrasse seus limites.
As hipotecas sobre hipotecas
sobre hipotecas avançaram até
pôr em xeque o sistema de crédito. Quando esse faliu, a economia como um todo se travou.
Discurso e ideologia
A ideologia neoliberal, o
Consenso de Washington e
suas outras manifestações apenas legitimavam o que se dava
per se. As políticas de contenção do crédito e de ajuste das
cadeias produtivas só tiveram
efeito na margem.
Fosse qual fosse a ideologia
dos governantes, todos eram
levados pelo mesmo roldão.
Exemplo significativo é o caso brasileiro, pois desde Collor
[1990-92], passando por Fernando Henrique até Lula, a
mesma política econômica foi
mantida nas suas bases. As diferenças se deram no gogó.
Agora a ideologia evaporou
porque a travação imaginária
do capital se colocou em xeque.
Não tenho ilusões. A crise demanda intervenções políticas,
que tendem a se fazer, contudo,
nos quadros de um Estado
preexistente. Ela passará conforme o capital for reforçado e
renovado.
Mas, nesse movimento de reflexão, se cria a oportunidade
de reformar o sistema e o jogo
políticos, à medida que eles revelam suas dimensões imaginárias e opressoras.
O reforço da política, mesmo
passageiro, permite que se
aprofunde ou se mistifique a
democracia, o controle popular
dos mecanismos econômicos e
da trama das instituições burocráticas.
A hora é agora. Mas não vejo
no horizonte, quer na verborragia do governo Lula, quer no vazio abissal das oposições, uma
brecha que de fato aumente o
controle popular sobre nossos
processos de governar.
Pelo contrário, a política entre nós se torna uma deslavada
mentira.
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professor emérito
da USP e coordenador da área de filosofia do
Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores", do Mais!.
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