São Paulo, domingo, 26 de maio de 2002

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82 a seleção recalcada

Manoel Motta/Folha Imagem
O goleiro Dino Zoff tenta defender chute de Sócrates em jogo que a Itállia venceu por 3 a 2 e eliminou o Brasil da Copa de 82



Dificuldade em aceitar a derrota da equipe brasileira que encantou o mundo do futebol e tentativa sistemática de apagá-la da memória coletiva acusam o nosso horror diante da imensa negação de nós mesmos


Tales A.M. Ab'Sáber
especial para a Folha

Quem viu a seleção brasileira de futebol de 1982 jogar jamais esquecerá. Essa afirmação é certamente um desejo. Para quem realmente viu tal objeto mágico de nosso desejo perdido de uma civilização local, tal visão do paraíso traz também em si a sua específica dor: de termos que lidar com a obscura tendência em nossa cultura para o recalcamento daquilo que deveria ser preservado como verdade e potência. Tal defesa, "que costuma arrastar consigo todo um plano da realidade e do pensamento", recai não apenas sobre a tragédia do Sarriá [referência ao estádio de Barcelona, hoje demolido, em que o Brasil foi derrotado pela Itália por 3 a 2, sendo eliminado da Copa" mas também sobre uma infinidade de outros objetos que um dia participaram do horizonte mais amplo das possibilidades de nossa vida coletiva. A própria idéia de nação e a esperança de um espaço civilizado, positivo e rico, chamado Brasil, herdeira de ideais democráticos e burgueses ocidentais (e também noutra via, por que não dizer?, de ideais socialistas), vem esmaecendo sua presença em nós, de forma violenta, sem dúvida, mas em um andamento suficientemente nítido e eficaz para que possamos considerar tal morte um produto da ordenação material da vida. Também o esquecimento do nosso futebol, que teve um dos seus pontos mais altos no ano de 1982, me parece ter mesmo a ver com essa crise mais geral. Ainda recentemente Emir Kusturica, cineasta "iugoslavo" inquietante, que soube fazer um cinema em que o próprio vezo local e singular, também uma tragédia periférica, arranha a ordem geral de nosso tempo, declarou, ao vir ao Brasil com sua banda de "folk rock": "Uma das maiores experiências estéticas que eu já vivi foi a seleção brasileira de 1982". Muitos de nós sentimo-nos aliviados com essa justiça necessária a uma de nossas mais belas jornadas humanas, na ausência absoluta de coisa melhor em nossa vida coletiva. Em geral temos visto, no mesmo período histórico, que nosso futebol decaiu em criatividade e beleza, um aberto trabalho ideológico de resignação ao possível, bastante amplo em nossa cultura, escandaloso em todos os seus níveis de conservação do mal que nos envolve. Nossa relação com o futebol também tem sido objeto dessa violência. Temos sido nós mesmos quem confrontamos, de forma a consagrar um masoquista elogio ao rebaixamento civilizatório, a percepção que um outro europeu culto chegou a ter um dia de nosso futebol. Contra a nossa regressão, Eric Hobsbawm escreveu: "E quem, tendo visto a seleção brasileira em seus dias de glória, negará sua pretensão à condição de arte?".

Auto-engano
Nós mesmos o temos negado. Um bom exemplo é o trabalho de distorção do sentido das coisas e de auto-engano, que já vai avançado quando se trata da seleção brasileira de 1982. Um diagnóstico sensato do que aconteceu no jogo com a Itália se torna quase impossível, ainda mais se pensarmos que as imagens daquele jogo nos têm sido sonegadas, como de resto de todos os jogos do Brasil naquela Copa.
Esse desaparecimento injustificado e artificial das imagens de um acontecimento totalmente acompanhado pelas televisões de todo o mundo -lembrado, quando necessário, em duas ou três imagens fixas, repetidas e descontextualizadas- é signo do recalque e revela a tentativa forçada e obsessiva de ver o 3 a 2 contra a Itália com a mesma textura na cultura do 2 a 1 contra o Uruguai de 1950. De fato, nos acostumamos a lidar com a iconografia das duas histórias, muito diferentes no tempo e no espaço, do mesmo modo.
Um segundo dado do trabalho de recalque que se abateu sobre a seleção de 1982 é a crítica constante, reclamona e infantil que Telê Santana e os jogadores sofreram a respeito daquela jornada. Foi necessário um título mundial de clubes [em 92; depois ganharia outro em 93, ambos pelo São Paulo", com um ótimo futebol, para cada uma de suas Copas perdidas, para que o mestre Telê tivesse o respeito resgatado na cultura.
Se alguém assistir ao programa "Roda Viva" com Telê Santana da época das conquistas do São Paulo, verá os jornalistas insistindo num equívoco, cujo único sentido é culpabilizar o técnico -e se livrar da angústia trágica da vida-, que se tornou um dos mitos para dar conta da experiência de 1982. Verá então alguns jornalistas insistirem que o Brasil ofereceu o contra-ataque à Itália, sugerindo subliminarmente que uma posição mais cautelosa, menos destemida e ofensiva do time, poderia ter evitado a derrota.
Quem se lembra do jogo sabe claramente que um dos gols da Itália se deu numa falha de saída de bola do Brasil. O lance era tranquilo, o Brasil dominava as ações e, ao tentar sair jogando, de forma bem-posta em campo, a catástrofe... Uma bola mal cruzada na intermediária defensiva do Brasil cai no pé dos italianos, que rapidamente matam a jogada e fazem o gol. Dificilmente uma jogada como essa pode ser considerada um contra-ataque: tratou-se, simplesmente, como todos sabemos, de um erro trágico, uma jogada pura do acaso.
A respeito do grande jogador sobre quem se abateu tal tragédia, que é também a nossa, Toninho Cerezo, a impressão verdadeira que todos que o vimos jogar no Atlético Mineiro de meados dos anos 70 tínhamos é que ele jamais errou um passe...
Já o terceiro gol, o definitivo, aconteceu de um escanteio para a Itália, em que o time todo do Brasil estava dentro da área, defendendo a sua meta.
Um escanteio em que a bola é velozmente afastada, mas, por desventura, cai no pé de um italiano que a chuta rapidamente de volta para a área, encontrando Paolo Rossi, livre, no meio do caminho... Onde estão os contra-ataques da Itália e a falha de disposição tática do Brasil? Eles simplesmente não existiram, são projeções defensivas e desejantes dos novos tempos futebolísticos que vieram após aquela nossa última grande jornada, em que o desejo de vitória e de eficácia, mesmo contra as potências de nosso futebol, apontaram para os times europeus que se tentaram fazer por aqui, baseados em forte marcação e em um posicionamento de matiz defensivo. Exatamente como jogou aquela Itália contra nós, e temos aí um belo exemplo de identificação com o que traumatiza. Podemos ver claramente, em tal fenômeno de imprecisão de leitura da história, como um momento de desejo posterior distorce a história original, fenômeno psicanalítico conhecido como "aprés coup", desde sua recuperação em Freud pelos franceses. No ano passado o artista plástico e escritor Nuno Ramos escreveu um ensaio chamado "Considerações sobre o Divino" ["Jornal de Resenhas" de 13/10/2001", em que fazia uma espécie de crítica estética -e, a meu ver, psicanalítica- do sentido da forma de jogar do grande craque palmeirense dos anos 60 e 70, Ademir da Guia. Em um certo momento ele escreveu: "O auge do futebol brasileiro (e talvez do próprio esporte) parece ter-se dado entre o final de década de 50 e meados da de 70. Sua principal característica foi provavelmente o fantástico volume de jogo, que caracterizava o comportamento tanto de nossa seleção quanto de nossos times (além, é claro, de nossa extrema facilidade para marcar gols). Raramente jogávamos no contra-ataque; visávamos sempre a posse de bola, que fazíamos durar; impúnhamos com naturalidade nosso ritmo ao adversário. Ademir, durante todo esse período (começou no início dos anos 60), partilhou a ambígua condição de ser um dos frutos mais refinados dessa característica genérica (afinal era o mandatário do ritmo do jogo, cujo compasso, um pouco como o canto de João Gilberto, alongava ou comprimia) e seu filho renegado". Aí está um momento analítico rico, do tipo que também se verifica na clínica psicanalítica contemporânea, em que a forma do todo, do sentido mais amplo que uma vida pode chegar a ter, coincide com o momento particular da experiência, produzindo um efeito significativo de integração. Todavia essa verdade estética do texto conhece também, internamente, o seu contrário. Pois nem todos os pontos dessa síntese de nosso futebol -que vai de sua forma clássica geral à forma de um de seus melhores jogadores- correspondem à história das coisas. Exatamente o que falta ali, bem à vista de todos nós, é o problema angustioso, de dimensão trágica, da seleção brasileira de futebol de 1982.

Vertigem
Assim, a passagem "o auge do futebol brasileiro (e talvez do próprio esporte) parece ter-se dado entre o final de década de 50 e meados da de 70" é exatamente o trabalho bem-feito, quase imperceptível, do recalque, tirando da consciência coletiva de nossa história futebolística um de seus auges.
Vista à luz da seleção de 1982, a passagem se revela contraditória em si, remetendo o seu claro equilíbrio a uma vertigem que muitas vezes sentimos na clínica psicanalítica ao vislumbrarmos os jogos do sintoma humano: "Sua principal característica [do período áureo de nosso futebol" foi provavelmente o fantástico volume de jogo, que caracterizava o comportamento tanto de nossa seleção quanto de nossos times (além, é claro, de nossa extrema facilidade para marcar gols). Raramente jogávamos no contra-ataque; visávamos sempre a posse de bola, que fazíamos durar; impúnhamos com naturalidade nosso ritmo ao adversário".
Essas são as características gerais do espírito de nosso futebol clássico, do jogo de Ademir da Guia e, essencialmente, da célebre seleção de 1982. Então por que "o auge do futebol brasileiro parece ter-se dado entre o final da década de 50 e meados da de 70"; como explicar a ausência aí, nessa síntese brilhante de uma de nossas mais amadas histórias, de uma de suas mais profundas passagens? Por que a derrota é mais violenta e teve mais impacto sobre nós do que a verdade estética e futebolística daquela seleção -e tendemos, sempre com alguma reverência dolorosa, a retirar tal episódio do coração de nossa história futebolística, embora saibamos que pouquíssimas vezes tenhamos visto tão espantoso volume de jogo, tanta facilidade para marcar gols, tamanha habilidade para manter a bola em nossos pés e impor ao adversário o nosso ritmo singular (bailarino, como foi dito a respeito na época)? Muito poucas vezes vimos tão nitidamente a idéia de nosso futebol. Dessa forma eu prefiro imaginar que a melhor frase, para concebermos mais precisamente a história, seria a seguinte: "O auge do futebol brasileiro parece ter-se dado entre o final de década de 50 e o ano de 1982". Trazendo de volta esse fragmento necessário da história, o fato de que a seleção de 1982 faz parte do auge histórico do futebol brasileiro, o modelo de sua derrocada rumo à mediocridade das Copas seguintes (incluindo aí a que ganhamos) é de outra natureza e adquire outra forma: trata-se -imaginariamente, é claro- de uma derrocada súbita, de uma pane simbólica instantânea, do modelo da batalha perdida que é a própria guerra. O modelo de nossa derrocada futebolística, em seu sentido psíquico, é claro, é o de Alcácer Quibir [batalha perdida pelo rei português dom Sebastião, em 1578, que levaria dois anos depois à perda da soberania nacional para a Espanha e daria origem a um milenarismo conhecido como "sebastianismo"" e aponta para as dissoluções trágicas de mundos, que certas realidades da vida humana, familiar, emocional ou cultural podem mesmo sofrer. Parte da imensa dor que sentimos aí é que a ilusão bem fundamentada no real foi subitamente desfeita. Tais processos podem abrir reações e sentidos tanáticos, criando um operador psíquico destrutivo, que está sempre a destruir e que jamais pode reparar. Os psicanalistas sabem quanto costuma ser terrível quando isso ocorre com crianças. Nosso futebol desapareceu subitamente, diante das reações adversas à sua natureza mais essencial, perante a angústia daquela derrota. Desde então cansamos de ouvir que o bom futebol seria o competitivo e eficaz, o que apenas ganha, e não o belo, ofensivo, mas derrotado, como se essas características estivessem para sempre fundidas. Um momento importante na psicanálise de algumas crianças se dá quando a tirania de só poder jogar para vencer -ou de só poder vencer- se abre para a possibilidade, bem mais rica, de poder também perder. É só nesse momento que a criança adquire o prazer de verdadeiramente jogar, e as texturas imaginativas próprias ao jogo e ao seu mundo passam a enriquecê-la. Nesse nível, o jogo é mais importante que a vitória, pois ele é a experiência. É ele que cria as formas entre nós para que possamos suspender e operar nossas angústias no encontro, enquanto a vitória, considerada em si mesma, é fantasia primitiva e narcísica de eliminação de todo outro que possa ter os mesmos direitos que nós. É claro que o horizonte fantasístico do esporte re-encena o desejo de supremacia infantil, de forma estética e sublimada em regras simbólicas, mas que guardam a figuração de um desejo essencialmente violento. No entanto há bem mais em jogo. O amor que o mundo dedicou, por exemplo, à seleção brasileira de 1982 aponta quanto o esporte é um campo complexo de sentidos, felizmente também para além da lógica mais pura do ganhar ou perder; e, particularmente no mundo do esporte, o futebol é a grande ópera total, onde os elementos expressivos, plásticos e dramáticos têm características muito nítidas. Apenas no futebol um gol ilegal, como o de mão de Maradona em 1986 contra a Inglaterra, pode ser sentido como legítimo por sua pura expressão poética, que, no caso, ainda articulava amplos elementos políticos. Daí podermos entender por que é verdade para os argentinos, verdade de caráter íntimo e estético, que Maradona seja o maior jogador do mundo, embora todos os índices reais do esporte e a percepção geral do próprio mundo aponte para Pelé a coroa, o cetro e o manto. O componente estético é tão eficaz no futebol que a mestria absoluta de Pelé fez com que muito antes de qualquer conquista significativa ele já fosse identificado por Nelson Rodrigues como o rei, numa visão profética das coisas do corpo do menino de 17 anos das mais impressionantes. Por outro lado Pelé interessa não só pela eficácia exclusiva da vitória, embora também por ela, mas interessa um tanto pelo absurdo tornado cristalino de suas jogadas, pelo fantástico do impensável apaziguado em lei da natureza do futebol, pelo limite agonístico pacificado em forma atlética, que apenas se confirma no gol. É dessa forma que os seus gols imaginados e esboçados tornaram-se tão verdadeiros e reais quanto os gols feitos, por sua verdade conceitual a um tempo estética e atlética. Esses famosos gols não-acontecidos de 1970 significam a superação do esporte de seus níveis concretos mais baixos, num registro em que o gesto do gênio definitivamente deslocou-se da lógica binária do ganhar ou perder. O futebol, experiência sublimatória do ato e da violência humana, sublimou-se novamente nesses momentos, tornando-se sublime. Para mim, e para os jornalistas de todo o mundo que aplaudiram de pé Telê Santana na coletiva do Sarriá, a experiência da seleção brasileira de 1982 é exatamente a do sublime futebolístico, o exato equivalente em termos de um jogo e de uma Copa aos maravilhosos gols de Pelé em que a bola não quis entrar... Desta forma, a reação violenta contra a derrota do time encantado de 1982 pode significar exatamente a regressão do sentido das coisas do futebol ao seu nível mais baixo. Dissociando a dimensão ética e estética do acontecimento, o episódio passou a ser sentido exclusivamente como derrota, uma derrota que é uma derrota que é uma derrota, num paradoxo regressivo dos mais impressionantes.

Objeto dos sonhos
Talvez exatamente por aquela seleção estar no auge do momento técnico e estético do esporte ela foi sentida por todos nós como objeto subjetivo e de sonhos, objeto mais profundo de nosso próprio narcisismo, de forma que a derrota nos apareceu como o horror de uma imensa negação de nós mesmos, que passamos então a atacar o objeto que fugiu de nosso controle onipotente. O pior e mais cruel de todos os ataques, a nós mesmos, foi a partir daí a mediocridade violenta da busca exclusiva de resultados, em que elementos estruturais importantes do futebol, como o gol, passaram a ser "um detalhe".
Atacar a seleção de 1982 foi uma forma de preservar nosso baixo narcisismo, de sonharmos que éramos melhor do que ela, de vencê-la sempre. Algumas poucas imagens de verdade e beleza que nossa história catastrófica nos legou vão assim se perdendo. É impressionante a correspondência da demanda de eficácia sem espírito que passou a tomar conta de nosso futebol com a mesma eficácia sem valores humanos ou sociais que tomou de assalto a nossa política e a nossa cultura nos últimos dez anos.
Talvez o horror maior para essa posição psíquica medíocre que tem sido a nossa, no momento atual do capitalismo novamente globalizado, seja exatamente o que a história da seleção brasileira de 1982 denuncia: que mesmo que façamos tudo certo não atingiremos a vitória, reservada aos detentores da ordem econômica deste mundo. Talvez seja essa recusa em aceitar a derrota que tenha liquidado as potências vivas de nosso futebol em nome mesmo daquilo que jamais atingiremos, a vitória plena e vazia de toda verdade.


Nota Este artigo é dedicado a um dos meu times prediletos: os gremistas Xandão e Beto, os são-paulinos Walter e Rubens, os palmeirenses Pedro e Clovis, os santistas Hermelino e Nuno, os corintianos Álvaro e Anderson. E ao brasileiro dr. Sócrates.

Tales A.M. Ab'Sáber é psicanalista, professor da Escola da Cidade e membro do departamento de psicanálise do instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo.


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