São Paulo, domingo, 26 de maio de 2002

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Massacres em escolas dos EUA e Europa fazem parte de um fenômeno social pós-moderno de escala planetária que encena a autoperdição do indivíduo

A pulsão de morte da concorrência

Robert Kurz

Há alguns anos se tornou corrente no mundo ocidental a expressão "massacre em escolas". As escolas, outrora locais da educação mais ou menos autoritária, do erotismo púbere e das travessuras juvenis inofensivas, entram mais e mais no campo de visão da esfera pública como palco de tragédias sangrentas. Certamente, relatos sobre alguns amoucos já são conhecidos também do passado. Mas cabe aos excessos sanguinolentos atuais uma qualidade própria e nova. Eles não se deixam encobrir por uma névoa cinza de generalidade antropológica. Ao contrário, trata-se inequivocamente de produtos específicos de nossa sociedade contemporânea. A nova qualidade desses atos amoucos pode ser constatada em vários aspectos. Por exemplo, não são acontecimentos muito distanciados no tempo, como em épocas anteriores, senão que os massacres têm lugar, desde os anos 90, em uma sequência cada vez mais compacta. São novos também dois outros aspectos. Uma porcentagem grande e desproporcional dos autores é de jovens, uma parte até mesmo de crianças. E um número muito pequeno desses amoucos é mentalmente perturbado no sentido clínico; ao contrário, a maioria é considerada, antes de seu ato, "normal" e bem ajustada. Quando as mídias constatam esse fato, sempre com aparente surpresa, admitem indireta e involuntariamente que a "normalidade" da sociedade atual traz em si o potencial para atos amoucos. Chama a atenção também o caráter global e universal desse fenômeno. Começou nos EUA. Em 1997, na cidade de West Paducah (Kentucky), um adolescente de 14 anos matou a tiros, após a oração matinal, três colegas de escola, e cinco outros foram feridos. Em 1998, em Jonesboro (Arkansas), um menino de 11 e um de 13 anos abriram fogo contra sua escola, matando quatro meninas e uma professora. No mesmo ano, em Springfield (Oregon), um jovem de 17 anos matou a tiros em uma "high school" dois colegas e feriu 20 outros. Um ano mais tarde, dois jovens de 17 e 18 anos provocaram o célebre banho de sangue de Littleton (Colorado): com armas de fogo e explosivos, eles mataram em sua escola 12 colegas, um professor e, em seguida, a si próprios. Na Europa, esses massacres em escolas foram de início interpretados, ainda no contexto do tradicional antiamericanismo, como consequência do culto às armas, do darwinismo social e da escassa educação social nos EUA. Mas são justamente os EUA, em todos os aspectos, o modelo para todo o mundo capitalista da globalização, como logo se iria mostrar. Na pequena cidade canadense de Taber, apenas uma semana após o caso de Littleton, um adolescente de 14 anos disparou ao seu redor, matando um colega de escola. Outros massacres em escolas foram notificados nos anos 90 na Escócia, no Japão e em vários países africanos. Na Alemanha, em novembro de 1999, um ginasiano de 15 anos matou sua professora, munido de duas facas; em março de 2000, um garoto de 16 anos matou a bala o diretor da escola e depois tentou se suicidar; em fevereiro de 2001, um jovem de 22 anos matou com um revólver o chefe de sua firma e depois o diretor de sua ex-escola para finalmente ele mesmo voar pelos ares detonando um tubo de explosivos. O recente ato amouco de um jovem de 19 anos em Erfurt, que, no fim de abril de 2002, durante o exame de conclusão do secundário, chacinou com uma "pump gun" 16 pessoas (entre elas quase o corpo docente inteiro de sua escola) e que em seguida atirou contra a própria cabeça, foi somente o ápice até agora de toda uma série.

Acontecimento midiático
Naturalmente o fenômeno dos massacres em escolas não pode ser visto de modo isolado. A bárbara "cultura do ato amouco" tornou-se há tempos, em muitos países, um acontecimento midiático periódico; os atiradores amoucos jovens em escolas formam apenas um segmento dessa microexplosão social. Os relatos das agências sobre atos amoucos em todos os continentes mal podem ser contados ainda; por causa de sua frequência relativa, só são aceitos pelas mídias quando têm um efeito propriamente espetacular. Desse modo, aquele suíço de índole correta, que no fim de 2001 crivou de balas com uma pistola automática meio parlamento cantonal e depois se matou, chegou à triste celebridade mundial tanto quanto aquele universitário francês, graduado e desempregado, que poucos meses depois abriu fogo com duas pistolas contra a Câmara Municipal da cidade-satélite parisiense de Nanterre, matando oito políticos locais. Se o ato de amoucos armados é mais comum que os massacres especiais em escolas, então ambos os fenômenos estão por sua vez integrados no contexto maior de uma cultura da violência interna à sociedade, que passa a inundar o mundo todo no curso da globalização. Fazem parte disso as numerosas guerras civis, virtuais e manifestas, a economia da pilhagem em todos os continentes, a criminalidade de massas armadas, reunidas em bandos nos bairros pobres, nos guetos e nas favelas; de modo geral, o universal "prosseguimento da concorrência com outros meios". Por um lado, é uma cultura do roubo e do assassinato, cuja violência se dirige contra os outros; no entanto os autores assumem o "risco" de eles próprios serem mortos. Mas, simultaneamente, aumenta também, por outro lado, a auto-agressão imediata, como comprovam as taxas crescentes de suicídio entre os jovens em muitos países. Pelo menos para a história moderna, é uma novidade que o suicídio não seja praticado apenas por desespero individual mas também de forma organizada e em massa. Em países e culturas tão distantes entre si quanto os EUA, a Suíça, a Alemanha e Uganda, as assim chamadas "seitas suicidas" despertaram a atenção várias vezes nos anos 90, de maneira macabra, por conta dos atos de suicídio coletivo e ritualizado. Ao que parece, o ato amouco forma na recente cultura global da violência o vínculo lógico de agressão aos outros e auto-agressão, uma espécie de síntese de assassinato e suicídio encenados. A maioria dos amoucos não só mata indiscriminadamente como também executa a si própria em seguida. E as distintas formas de violência pós-moderna começam a se fundir. O autor potencial do latrocínio é também um suicida potencial; e o suicida potencial é também um amouco potencial. Diferentemente dos atos amoucos em sociedades pré-modernas (a palavra "amok" provém da língua malaia), não se trata de acessos espontâneos de fúria ensandecida, mas sempre de ações longa e cuidadosamente planejadas. O sujeito burguês está determinado ainda pelo "autocontrole" estratégico e pela disciplina funcional até mesmo quando decai na loucura homicida. Os amoucos são robôs da concorrência capitalista que ficaram fora de controle: sujeitos da crise, eles desvelam o conceito de sujeito moderno, esclarecido, em todas as suas características.

Terrorismo suicida
Mesmo um cego em termos de teoria social deve atentar para os paralelos com os terroristas do 11 de setembro de 2001 e com os terroristas suicidas da Intifada palestina. Muitos ideólogos ocidentais pretenderam atribuir esses atos incondicionalmente, com visível apologia, ao "âmbito cultural alheio" do islã. Nas mídias, foi dito de bom grado a respeito dos terroristas de Nova York, formados anos a fio na Alemanha e nos EUA, que, apesar da integração exterior, eles "não chegaram ao Ocidente" do ponto de vista psíquico e espiritual. O fenômeno do islamismo terrorista, com seus atentados suicidas, seria devido ao problema histórico de que não houve no islã nenhuma época de iluminismo. A afinidade interna manifesta entre os jovens amoucos ocidentais e os jovens terroristas suicidas islâmicos comprova exatamente o contrário.
Ambos os fenômenos pertencem ao contexto da globalização capitalista; são o resultado "pós-moderno" último do próprio iluminismo burguês. Justamente porque eles "chegaram" ao Ocidente em todos os aspectos, os jovens estudantes árabes se desenvolveram, tornando-se terroristas. Na verdade, no início do século 21, o Ocidente (diga-se: o caráter imediato do mercado mundial e de sua subjetividade totalitária centrada na concorrência) está em toda volta, mesmo que sob condições distintas. Mas a diferença das condições tem a ver mais com a distinta força do capital do que com a diversidade das culturas. A socialização capitalista não é hoje secundária em todos os continentes, mas sim primária; e o que foi hipostasiado como "diferença cultural" pelos ideólogos pós-modernos faz parte antes de uma superfície tênue. O diário de um dos dois atiradores amoucos de Littleton foi guardado a sete chaves pelas autoridades norte-americanas, não sem razão. Por indiscrição de um funcionário, soube-se que o jovem criminoso havia anotado o seguinte, entre outras fantasias de violência: "Por que não roubar em algum momento um avião e fazê-lo cair sobre Nova York?". Que embaraçoso! O que foi apresentado como atrocidade particularmente pérfida da cultura alheia já havia antes tomado forma na cabeça de um rebento inteiramente da lavra da "freedom and democracy". Há muito tempo a esfera pública oficial recalcou também a informação de que, poucas semanas após o 11 de setembro nos EUA, um adolescente de 15 anos havia se lançado num pequeno avião sobre um edifício. Com toda a seriedade, as mídias norte-americanas afirmaram que o rapaz havia ingerido uma dose excessiva de preparados contra acnes e que, por isso, teve um distúrbio mental momentâneo. Essa "explicação" é um produto digno da filosofia do iluminismo em seu estágio último positivista. Na realidade, a "sede de morte" representa um fenômeno social mundial pós-moderno que não está ligado a nenhum lugar social ou cultural particular. Esse impulso não pode ser disfarçado, tomando-se como a soma de meros fenômenos isolados e fortuitos. Pois lembram aquele que realmente age os milhões que circulam com os mesmos padrões intelectuais e emocionais insolúveis e brincam com as mesmas idéias mórbidas. Só em aparência os terroristas islâmicos se diferenciam dos amoucos ocidentais individuais ao reivindicar motivos políticos e religiosos organizados. Ambos estão igualmente longe de um "idealismo" clássico que poderia justificar o sacrifício de si mesmos com objetivos sociais reais. A respeito das novas e numerosas guerras civis e do vandalismo nos centros ocidentais, o escritor alemão Hans Magnus Enzensberger constatou que aí "não se trata de mais nada". Para entender, é preciso inverter a frase: o que é esse nada de que se trata? É o completo vazio do dinheiro elevado a fim em si mesmo, que agora domina definitivamente a existência como deus secularizado da modernidade. Esse deus reificado não tem em si nenhum conteúdo sensível ou social. Todas as coisas e carências não são reconhecidas em sua qualidade própria, mas antes esta lhes é tirada para "economicizá-las", ou seja, para transformá-las em mera "gelatina" (Marx) da valorização e, desse modo, em material indiferente ("gleich-gültig").

Autoperdição
É um engano crer que o cerne dessa concorrência universal seria a auto-afirmação dos indivíduos. Bem ao contrário, é a pulsão de morte da subjetividade capitalista que vem à luz como última consequência. Quanto mais a concorrência abandona os indivíduos ao vácuo metafísico real do capital, tanto mais facilmente a consciência resvala em uma situação que aponta para além do mero "risco" ou "interesse": a indiferença para com todos os outros se reverte na indiferença ao próprio eu.
Abordagens sobre essa nova qualidade da frieza social como "frieza em relação a si próprio" já se apresentavam nos grandes surtos de crise da primeira metade do século 20. A filósofa Hannah Arendt falou nesse sentido de uma cultura da "autoperdição", de uma "perda de si mesmo" dos indivíduos desarraigados e de uma "debilitação do instinto de autoconservação" por causa do "sentimento de que não depende de si mesmo que o próprio eu possa ser substituído por um outro a qualquer momento e em qualquer parte".
Aquela cultura da autoperdição e do auto-esquecimento que Hannah Arendt ainda referia exclusivamente aos regimes políticos totalitários da época se reencontra hoje, de forma muito mais pura, no totalitarismo econômico do capital globalizado.
O que no passado era estado de sítio torna-se estado normal e permanente: o próprio cotidiano "civil" converte-se na autoperdição total dos homens. Esse estado não concerne somente aos pobres e decaídos mas a todos, porque veio a ser o estado predominante da sociedade mundial. Isso vale particularmente para as crianças e adolescentes, que não têm mais nenhum critério de comparação e nenhum critério de crítica possível. É uma perda de si idêntica e uma perda da capacidade de julgar em vista do imperativo econômico avassalador que caracteriza os bandos de espancadores, os saqueadores e os violentadores tanto quanto os auto-exploradores da "new economy" ou os trabalhadores de tela do "investment banking".
O que Hannah Arendt disse sobre os pressupostos do totalitarismo político é hoje a principal tarefa oficial da escola, a saber: "Arrancar das mãos o interesse em si próprio", para transformar as crianças em máquinas produtivas abstratas; mais precisamente, "empresários de si mesmos", portanto sem nenhuma garantia. Essas crianças aprendem que elas precisam se sacrificar sobre o altar da valorização e ter ainda "prazer" nisso.
Os alunos do primário já são entupidos com psicofármacos para que possam competir no "vai ou racha". O resultado é uma psique perturbada de pura insociabilidade, para a qual a auto-afirmação e a autodestruição se tornaram idênticas. É o amouco que necessariamente vem à luz atrás do "automanager" da pós-modernidade. E a democracia da economia de mercado chora lágrimas de crocodilo por suas crianças perdidas, que ela própria educa sistematicamente para serem monstros autistas.


Robert Kurz é sociólogo e ensaísta alemão, autor de "Os Últimos Combates" (ed. Vozes) e "O Colapso da Modernização" (ed. Paz e Terra). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.
Tradução de Luiz Repa.


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