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Aparentemente ocidentalizados, personagens de Haruki Murakami
confrontam seu individualismo "nipônico" com o apogeu do capitalismo
O mundo DESDE O FIM
LÚCIA NAGIB
ESPECIAL PARA A FOLHA
A ficção de Haruki Murakami, o mais celebrado escritor japonês contemporâneo,
é notoriamente em primeira
pessoa. De romance a romance, o
leitor se defronta com protagonistas
semelhantes, senão idênticos, que
dirigem a narrativa com seus sentimentos e reflexões. Ler Murakami é
conviver com um certo indivíduo na
casa dos 30 anos, recolhido à obscuridade de sua solidão em meio ao
burburinho de Tóquio, cuja ocasional diversão é encontrar-se com mulheres difíceis e voláteis, ou entreter
amigos suicidas. Nada de especial
marca esse narrador recorrente, que
não se destaca pelo talento, coragem, beleza, charme ou carisma. No
entanto o leitor é capaz de segui-lo
para onde for por centenas de páginas, mesmo que o trajeto o leve aos
confins da gelada ilha de Hokkaido à
procura inglória de um certo carneiro selvagem. Por quê?
"Dance, Dance, Dance" e "Norwegian Wood", os dois romances de
Murakami recém-lançados em português, sugerem respostas. Em ambos o insosso protagonista retorna
exibindo sua única marca: o individualismo. Dissidente silencioso de
uma sociedade altamente organizada, onde se recusa a participar do
sistema de ensino e trabalho, sua vida é um vagar sem rumo ao embalo
da música pop americana e inglesa
que não dá espaço à tradição cultural local. Esse fato, aliado a uma predileção por títulos em inglês, como
nos dois livros em questão, corroboram a interpretação corriqueira entre a crítica de que tanto o autor
quanto seu alter ego -o narrador
em primeira pessoa- seriam inteiramente "ocidentalizados".
Trata-se de conclusão natural,
diante da extraordinária erudição
em jazz e música pop de Murakami,
notabilizado também por suas traduções de F. Scott Fitzgerald, Truman Capote, John Irving e Raymond Carver. O próprio escritor parece se divertir com o rótulo de "ocidental", reafirmando seu gosto pela
estrutura narrativa dos romances
policial e de ficção científica norte-americanos, e negando qualquer
vínculo histórico com a literatura japonesa, principalmente seus precursores imediatos, como Kenzaburo
Oe.
Espaço vazio
Mas a suposta ocidentalização de
Murakami não basta para explicar a
irresistível atração de sua escrita, na
qual, aliás, há sinais de sobra comprovando o pedigree nipônico. Seus
narradores egocêntricos são apenas
o capítulo mais recente do tradicional "shishosetsu", ou romance em
primeira pessoa japonês, cujas origens remontam ao início do século
20 e ao encontro do Japão com a literatura européia e americana.
Seu tom confessional e autobiográfico, como nos romances de Naoya Shiga e Zenzo Kazai, confere autenticidade a relatos cujos precisos
referenciais geográficos e temporais
o identificam com seu próprio país.
Tóquio e seus bairros centrais de
Shinjuku e Shibuya, seus bares noturnos e a famosa livraria Kinokunya, bem como o entorno da Universidade de Waseda, onde o autor realmente estudou, compõem um pano
de fundo realista que confere ao narrador consistência física.
Quanto ao rejeitado Oe, é dele e de
romances como "O Grito Silencioso" o poço fundo ou buraco negro
em que os protagonistas de Murakami se refugiam de uma sociedade à
qual não querem pertencer.
Mas, em lugar do pesado sentimento de culpa que deprime os narradores de Oe, os de Murakami flutuam num espaço vazio, um lugar
intermediário entre o eu consciente
e inconsciente que abre espaço, de
um lado, para a intervenção do sobrenatural, como em "Dance, Dance, Dance", e, de outro, para a ironia
e o delicioso humor que permeiam
"Norwegian Wood". Trata-se de um
narrador sempre distanciado -daí
a impressão de "estrangeiro"- que
observa sua própria dor sem um mínimo de compaixão. Mais que isso, é
um narrador que se inclui como objeto descartável da cultura pop que
ao mesmo tempo aprecia e rejeita.
Em "Dance, Dance, Dance" (que
dá continuidade à história de "Caçando Carneiros", de 1982, já lançado no Brasil pela ed. Estação Liberdade), o narrador e seu ego dividido
descrevem um périplo fascinante
pela ossatura do capitalismo, cujo
intricado esquema Murakami conhece como a palma da mão. O jornalista free-lance escrevendo sobre
gastronomia é na verdade um cronista do desperdício, sua mania de
listas de música, carros e roupas revelando sua própria adesão ao esquema do acúmulo do desnecessário que tanto critica.
À procura de sua ligação com o
mundo no misterioso Dolphin Hotel, ele afinal se deixa guiar por uma
recepcionista intuitiva e uma adolescente sensitiva, que lhe oferecem vagas promessas afetivas no mundo
através do espelho.
Já "Norwegian Wood", composto
entre "Caçando Carneiros" e "Dance, Dance, Dance", renuncia a toda
metafísica, retrocedendo ao final
dos anos 60, quando estudantes ainda se rebelavam contra o sistema. O
narrador era, porém, desde então,
um descrente, encerrado no vazio de
seu dormitório estudantil e confiando seu afeto apenas aos suicidas e
loucos, estes, por sua vez, oferecendo os momentos mais hilariantes do
livro.
A literatura "ocidentalizada" de
Murakami nos oferece assim um retrato ao mesmo tempo sinistro e curioso do ápice do capitalismo, que o
Japão já atingira nos anos 80, mas
que para o resto do mundo funciona
como inquietante clarividência.
Lúcia Nagib ocupa a centenary chair in
world cinema, na Universidade de Leeds,
Reino Unido. É autora de, entre outros,
"Nascido das Cinzas" (Edusp).
Dance, Dance, Dance
504 págs., R$ 58
de Haruki Murakami. Tradução de Lica Hashimoto e Neide Hissae Nagae. Ed. Estação
Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP 01155-030, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3661-2881).
Norwegian Wood
356 págs., R$49,90
de Haruki Murakami. Tradução de Jefferson
José Teixeira. Ed. Objetiva (rua Cosme Velho, 103, CEP 22241-090, Rio de Janeiro, RJ,
tel.0/xx/21/2556-7824).
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