São Paulo, domingo, 26 de junho de 2005

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

Aparentemente ocidentalizados, personagens de Haruki Murakami confrontam seu individualismo "nipônico" com o apogeu do capitalismo

O mundo DESDE O FIM

LÚCIA NAGIB
ESPECIAL PARA A FOLHA

A ficção de Haruki Murakami, o mais celebrado escritor japonês contemporâneo, é notoriamente em primeira pessoa. De romance a romance, o leitor se defronta com protagonistas semelhantes, senão idênticos, que dirigem a narrativa com seus sentimentos e reflexões. Ler Murakami é conviver com um certo indivíduo na casa dos 30 anos, recolhido à obscuridade de sua solidão em meio ao burburinho de Tóquio, cuja ocasional diversão é encontrar-se com mulheres difíceis e voláteis, ou entreter amigos suicidas. Nada de especial marca esse narrador recorrente, que não se destaca pelo talento, coragem, beleza, charme ou carisma. No entanto o leitor é capaz de segui-lo para onde for por centenas de páginas, mesmo que o trajeto o leve aos confins da gelada ilha de Hokkaido à procura inglória de um certo carneiro selvagem. Por quê?
"Dance, Dance, Dance" e "Norwegian Wood", os dois romances de Murakami recém-lançados em português, sugerem respostas. Em ambos o insosso protagonista retorna exibindo sua única marca: o individualismo. Dissidente silencioso de uma sociedade altamente organizada, onde se recusa a participar do sistema de ensino e trabalho, sua vida é um vagar sem rumo ao embalo da música pop americana e inglesa que não dá espaço à tradição cultural local. Esse fato, aliado a uma predileção por títulos em inglês, como nos dois livros em questão, corroboram a interpretação corriqueira entre a crítica de que tanto o autor quanto seu alter ego -o narrador em primeira pessoa- seriam inteiramente "ocidentalizados".
Trata-se de conclusão natural, diante da extraordinária erudição em jazz e música pop de Murakami, notabilizado também por suas traduções de F. Scott Fitzgerald, Truman Capote, John Irving e Raymond Carver. O próprio escritor parece se divertir com o rótulo de "ocidental", reafirmando seu gosto pela estrutura narrativa dos romances policial e de ficção científica norte-americanos, e negando qualquer vínculo histórico com a literatura japonesa, principalmente seus precursores imediatos, como Kenzaburo Oe.

Espaço vazio
Mas a suposta ocidentalização de Murakami não basta para explicar a irresistível atração de sua escrita, na qual, aliás, há sinais de sobra comprovando o pedigree nipônico. Seus narradores egocêntricos são apenas o capítulo mais recente do tradicional "shishosetsu", ou romance em primeira pessoa japonês, cujas origens remontam ao início do século 20 e ao encontro do Japão com a literatura européia e americana.
Seu tom confessional e autobiográfico, como nos romances de Naoya Shiga e Zenzo Kazai, confere autenticidade a relatos cujos precisos referenciais geográficos e temporais o identificam com seu próprio país. Tóquio e seus bairros centrais de Shinjuku e Shibuya, seus bares noturnos e a famosa livraria Kinokunya, bem como o entorno da Universidade de Waseda, onde o autor realmente estudou, compõem um pano de fundo realista que confere ao narrador consistência física.
Quanto ao rejeitado Oe, é dele e de romances como "O Grito Silencioso" o poço fundo ou buraco negro em que os protagonistas de Murakami se refugiam de uma sociedade à qual não querem pertencer.
Mas, em lugar do pesado sentimento de culpa que deprime os narradores de Oe, os de Murakami flutuam num espaço vazio, um lugar intermediário entre o eu consciente e inconsciente que abre espaço, de um lado, para a intervenção do sobrenatural, como em "Dance, Dance, Dance", e, de outro, para a ironia e o delicioso humor que permeiam "Norwegian Wood". Trata-se de um narrador sempre distanciado -daí a impressão de "estrangeiro"- que observa sua própria dor sem um mínimo de compaixão. Mais que isso, é um narrador que se inclui como objeto descartável da cultura pop que ao mesmo tempo aprecia e rejeita.
Em "Dance, Dance, Dance" (que dá continuidade à história de "Caçando Carneiros", de 1982, já lançado no Brasil pela ed. Estação Liberdade), o narrador e seu ego dividido descrevem um périplo fascinante pela ossatura do capitalismo, cujo intricado esquema Murakami conhece como a palma da mão. O jornalista free-lance escrevendo sobre gastronomia é na verdade um cronista do desperdício, sua mania de listas de música, carros e roupas revelando sua própria adesão ao esquema do acúmulo do desnecessário que tanto critica.
À procura de sua ligação com o mundo no misterioso Dolphin Hotel, ele afinal se deixa guiar por uma recepcionista intuitiva e uma adolescente sensitiva, que lhe oferecem vagas promessas afetivas no mundo através do espelho.
Já "Norwegian Wood", composto entre "Caçando Carneiros" e "Dance, Dance, Dance", renuncia a toda metafísica, retrocedendo ao final dos anos 60, quando estudantes ainda se rebelavam contra o sistema. O narrador era, porém, desde então, um descrente, encerrado no vazio de seu dormitório estudantil e confiando seu afeto apenas aos suicidas e loucos, estes, por sua vez, oferecendo os momentos mais hilariantes do livro.
A literatura "ocidentalizada" de Murakami nos oferece assim um retrato ao mesmo tempo sinistro e curioso do ápice do capitalismo, que o Japão já atingira nos anos 80, mas que para o resto do mundo funciona como inquietante clarividência.


Lúcia Nagib ocupa a centenary chair in world cinema, na Universidade de Leeds, Reino Unido. É autora de, entre outros, "Nascido das Cinzas" (Edusp).

Dance, Dance, Dance
504 págs., R$ 58 de Haruki Murakami. Tradução de Lica Hashimoto e Neide Hissae Nagae. Ed. Estação Liberdade (r. Dona Elisa, 116, CEP 01155-030, São Paulo, SP, tel. 0/xx/11/3661-2881).
Norwegian Wood
356 págs., R$49,90 de Haruki Murakami. Tradução de Jefferson José Teixeira. Ed. Objetiva (rua Cosme Velho, 103, CEP 22241-090, Rio de Janeiro, RJ, tel.0/xx/21/2556-7824).



Texto Anterior: João Palma-Ferreira
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.