São Paulo, domingo, 26 de julho de 1998

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HISTÓRIAS
A conspiração baiana de 1798


Os mulatos da Bahia propunham a subversão de todas as estruturas existentes e buscavam uma sociedade igualitária e democrática


KENNETH MAXWELL
especial para a Folha

Os historiadores norte-americanos costumam menosprezar as conspirações do fim da era colonial brasileira -a Inconfidência Mineira, de 1789, e a Baiana, de 1798. Não foi essa, porém, a reação de Lisboa na época. Ambas as conjurações foram vistas como contendas de peso, e cada uma provocou uma reação temível das autoridades coloniais. Ironicamente, sabemos tanto sobre esses levantes precisamente porque eles foram sufocados em estado embrionário.
As investigações e os interrogatórios que se seguiram à descoberta dos conluios, resultando na prisão dos participantes, produziram um extenso registro documental que propicia um enfoque privilegiado da mudança de mentalidade dos brasileiros naquele momento crítico da história.
A Inconfidência Baiana de 1798 é particularmente interessante não só pelo fato de pôr em cena os pensamentos da elite colonial, mas também porque nos permite perceber as vozes de artesãos, soldados e indivíduos que representam um diverso perfil racial de brasileiros, nos anos imediatamente posteriores à Revolução Francesa e à grande insurreição de escravos no Haiti.
A capitania da Bahia recuperou, em fins do século 18, uma preeminência econômica que perdera durante os primeiros anos do século. A abertura dos mercados para o açúcar brasileiro na Europa, especialmente depois do virtual colapso produtivo na colônia francesa de Santo Domingo em 1791, em decorrência do levante de escravos, possibilitou à Bahia o renascimento econômico. Robert Walpole, o enviado inglês a Lisboa, atribuiu como principal causa dos "preços vultosos" de toda produção sul-americana a "quebra na safra das ilhas da Índia Ocidental francesa, em parte graças a convulsões políticas e, consequentemente, ao abandono do cultivo, e em parte a furacões que ocorreram nos últimos tempos". Para ele, a euforia era "provavelmente temporária".
O bispo Azeredo Coutinho, um antigo proprietário de engenho dos Campos de Goitacases que se converteu ao sacerdócio, instava, num ensaio apresentado em 1791 na Academia de Ciências de Lisboa, que se tirasse toda vantagem das condições favoráveis do mercado, propiciadas pelo repentino levante ("a revolução inesperada, acontecida nas colônias francesas"). Exprimindo uma opinião comum à maioria dos produtores de açúcar no Brasil, ele recomendava que se suprimissem todas as restrições à produção e que os preços não fossem fixados. "Quanto mais êle subir, mais aumentão as nossas fábricas e o nosso comércio" ("Memória Sôbre o Preço do Açucar", 1791, em "Obras Econômicas de J. J. da Cunha de Azeredo Coutinho", ed. Sérgio Buarque de Holanda, São Paulo, 1966, págs. 175-85).
O preço elevado do açúcar, porém, levou os produtores a explorar toda a terra disponível e a transgredir em cheio a obrigação, imposta por lei, do plantio de culturas de subsistência. Luis dos Santos Vilhena, um dos professores designados para a Bahia graças às reformas educacionais de Pombal, condenou o descaso dos grandes proprietários em cultivar mandioca suficiente, notando que em Pernambuco circunstâncias similares haviam recentemente levado à fome, pois não havia mais nenhuma outra fonte disponível de abastecimento.
D. Rodrigo José de Menezes, governador da Bahia durante a década de 1780, buscara remediar o problema da carestia e do preço elevado dos alimentos criando um "celeiro público", onde toda farinha de mandioca, milho, feijão e arroz fossem vendidos por atacado e a varejo, além de fundar um matadouro e currais públicos. Por tais ações ele ganhou a gratidão do povo da cidade da Bahia e a eterna inimizade dos fazendeiros.
O problema não era peculiar à Bahia de finais do século 18. Numa economia de plantação voltada para mercados externos, reagindo a insistentes demandas de além-mar, a coexistência de súbita prosperidade, alta crônica dos preços e escassez de alimentos era um fenômeno recorrente. A própria cidade de Salvador abrigava cerca de 50 mil habitantes ao final do século 18, dos quais mais de 40% eram escravos (João José Reis, "Slave Rebellion in Brazil", Baltimore, 1993, págs. 4-5). Algo em torno de um quarto da população era branca. Metade era negra e o restante compunha-se de gente miscigenada, em geral classificada, ao fim da era colonial, como "pardos". A população africana e afro-baiana, tanto escravos quanto livres, compreendia portanto cerca de 70% do total da população, formando uma significante maioria.
O consumo de farinha de mandioca na cidade, em 1781, ultrapassou 1 milhão de alqueires. D. Fernando José de Portugal, o sucessor de d. Rodrigo José de Menezes, permitira suprimir o controle dos preços sobre a carne e a farinha de mandioca. Vilhena responsabilizava as "idéias européias". Tais noções, lamentava-se ele, só deviam ser postas em prática, num lugar como a Bahia, depois de meticulosa análise dos fatores locais. Na Europa, ele salientou, uma nação em tempos de carestia poderia recorrer a seus vizinhos para recompor os seus suprimentos. Essa dependência mútua era impossível na América do Sul, onde a provisão de alimentos era pouco elástica.
No nordeste do Brasil a seca já forçara Bahia e Pernambuco a procurar novas fontes de abastecimento no sul. Mas, mesmo no Rio Grande do Sul, a expansão fora tolhida por leis restritivas e pela ação dos monopólios estatais. O preço da farinha de mandioca na Bahia, o alimento básico de subsistência, subira de 640 réis para 1.200 a 1.600 réis por alqueire durante os quatro anos anteriores a 1798 (Kátia M. de Queirós Mattoso, "Conjuncture et Société au Brésil à la Fin du 18ème. Siècle: Prix et Salaires à la Veille de la Révolution des Alfaiates à Bahia, 1798", "Cahiers de l'Amérique Latine", nº 5, jan/jun, 1970, págs. 33-5).
Segundo Vilhena, a carne severamente taxada, a inflação dos preços e a monopolização do mercado resultara para os pobres "na vexação de comprar a carne mais vil que pudesse haver, por preços de que não vale a metade". Havia para ele uma correlação direta entre a supressão do controle de preços e "a insubsistente sublevação e cruel massacre" dos mulatos artesãos baianos em 1798 (Luis dos Santos Vilhena, "Recopilação de Notícias Soteropolitanas e Brasílicas Contidas em 20 Cartas", 1802, 3 vols., Bahia, 1922-35, tomo 2, pág. 426).
A planejada sublevação baiana ocorreu num momento crítico, pois serviu para confirmar um temor que crescia desde 1791. Em 1789 os magnatas mineiros diziam-se capazes de controlar e manipular a vontade do povo em seu próprio interesse. Eles estavam longe de temer que alguma ação tomada contra Portugal pudesse, por sua vez, provocar ou desculpar ações contra si próprios. Ingenuamente, eles cogitaram a emancipação dos escravos nativos. Planejando abolir seus débitos com a coroa, eles não tinham intenção de que os débitos dos quais eram credores também fossem repudiados.
Depois de 1789, uma tal inocência entre opulentos senhores de escravos na América seria impensável. As colossais repercussões da Revolução Francesa em Santo Domingo deixaram todos de sobreaviso. John Barrow, um inglês que visitou o Rio de Janeiro em 1792, notou a mudança trazida pelo triunfo do "poder negro". "A magia secreta que fazia o negro tremer na presença do homem branco está em boa parte dissolvida", ele escreveu. "A suposta superioridade pela qual um branco infundia reverência e submissão a uma centena de negros não é mais reconhecida" (John Barrow, "A Voyage to Cochinchina in the Years 1792 and 1793", Londres, 1806, págs. 117-18).
A descoberta de planos para uma insurreição armada pelos artesãos pardos da Bahia demonstrou o que muitos brancos por toda a América já haviam começado a notar: que idéias de igualdade social propaladas numa sociedade em que somente um terço da população era branca, e na qual a riqueza e o poder concentravam-se inteiramente em mãos brancas, seriam inevitavelmente interpretadas em termos raciais.
O episódio baiano revelou a politização de níveis da sociedade parcamente envolvidos na Inconfidência Mineira. As únicas insinuações raciais de caráter abertamente antibranco registradas nos inquéritos de Minas provinham de comentários vagos, atribuídos a Manoel Costa Capanema, e a evidência que o ligava aos inconfidentes era tão tênue que ele foi absolvido. Os magistrados, advogados e clérigos de meia-idade em Minas Gerais, os opulentos empreiteiros e seus sequazes, a maioria deles membro de congregações racialmente exclusivistas e proprietários de escravos, contrastavam marcadamente com os jovens mulatos artesãos, soldados, meeiros sem propriedade e professores assalariados implicados no conluio baiano.
Amargurados e anticlericais, os mulatos da Bahia eram tão avessos aos brasileiros ricos quanto à dominação portuguesa. Eles saudavam a agitação social, propunham a subversão de todas as estruturas existentes e buscavam uma sociedade igualitária e democrática, na qual as diferenças de raça não fossem um obstáculo ao emprego e à mobilidade social.
O alfaiate pardo João de Deus, que ao ser preso não possuía mais que 80 réis e cinco filhos, exigia que "todos (os brasileiros) se fizessem Francezes, para viverem em igualdade e abundancia (...) destruir ao mesmo tempo todas as pessoas publicas, atacar os Mosteiros, franquear as portas aos que quisessem sahir (...) redusindo tudo a huma inteira revolução, que todos ficarão ricos, (...) tirados da miseria em que se achavão, extincta a differença de cor branca, preta e parda, porque uns e outros serião sem differença chamados e admitidos a todos os ministerios e cargos" ("Denuncia Pública, Jurada Que Da Joaquim José da Vega, Homem Pardo, Forro (...), 27 de Agosto de 1798", "A Inconfidência da Bahia. Devassas e Sequestros", Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, 2 vols., 1931, tomo 1, pág. 8).
Em 12 de agosto, manifestos manuscritos apareceram nos muros, nas igrejas e nas praças públicas de Salvador. Endereçados ao "Poderoso e Magnífico Povo Bahinense Republicano", em nome do "Supremo Tribunal da Democracia Baiana", eles reivindicavam a eliminação do "pessimo jugo reinavel da Europa". Os padres que pregavam contra a liberdade popular recebiam ameaças. "Cada hum soldado he cidadão, mormente os homens pardos e pretos que vivem escornados e abandonados, todos serão iguaes, não haverá differença, só haverá liberdade, igualdade e fraternidade."
Ao solicitar o apoio geral, os manifestos prometiam aos soldados 200 réis por dia e afirmavam que o porto estaria aberto ao comércio com todas as nações, particularmente a França. A "câmara inútil" era censurada por não lograr o controle dos preços da carne. "Está para chegar o tempo feliz de nossa liberdade, o tempo em que todos seremos irmãos, o tempo em que todos seremos iguaes." O governo seria "democratico, livre e independente e todos cautivos pardos e pretos ficarião libertos sem que houvesse mais escravo algum" (F. Borges de Barros, "Cópia de Varios Papeis Sediciosos Que com Algum Lugares Públicos Desta Cidade Se Fixarão na Manhã do Dia 12 de Agosto de 1798", "Anais do Arquivo do Estado da Bahia", 1917, págs. 143-46"; "Autos da Devassa do Levantamento e Sedição Intentados na Bahia em 1798", "Anais do Arquivo Público da Bahia", vol. 36, 1961, págs. 373-78).
Antes mesmo de terem assentado um plano de ação, os artesãos baianos foram apanhados em flagrante. Os conspiradores haviam sido identificados e mantidos em observação tão logo fora concluído o primeiro inquérito.

O governador d. Fernando José de Portugal ordenou, de imediato, o exame da papelada no secretariado, a fim de comparar-lhes a caligrafia com a dos manifestos. A suspeita cedo caiu sobre o mulato Domingos de Silva Lisboa, um copista profissional. Sua prisão ocorreu a 16 de agosto de 1798. Quatro dias mais tarde, no entanto, surgiram outros manifestos. Exames mais minuciosos dos papéis e petições do secretariado revelaram que o verdadeiro autor era Luiz Gonzaga das Virgens, um soldado do Primeiro Regimento de Linha. Seu interrogatório ocorreu extrajudicialmente.
Enquanto isso, várias denúncias eram registradas. O comandante do Segundo Regimento foi instruído para armar uma emboscada no local de reunião dos conjurados, nas cercanias da cidade, porém foi reconhecido por um soldado de seu regimento, e os sediciosos, inclusive João de Deus, foram advertidos e escaparam ilesos. A 26 de agosto, 47 dos futuros revolucionários, ou suspeitos de o serem, foram detidos. A maioria dos prisioneiros, entre eles João de Deus, compunha-se de mulatos, dos quais nove eram escravos.
D. Fernando cientificou Lisboa sobre a descoberta da conjuração em outubro. Ele relatou a d. Rodrigo de Souza Coutinho, responsável pelos domínios de além-mar, que o "contexto dos Papeis sediciosos tão mal organizados, posto que summamente atrevidos e descarados, o caráter e qualidade de seu actor e dos principaes cabeças que tratavão da rebelião, taes como Luiz Gonzaga das Virgens, João de Deus, alfaiate Lucas Dantas e Luiz Pires, lavrante, todos quatro homens pardos, de pessima conduta e faltos de Religião, me fez capacitar que nestes attenditados nem entravão pessoas de consideração nem de entendimento ou que tivessem conhecimento e luzes".
Nenhum plano formal para a revolução fora encontrado entre os papéis confiscados e nem sequer cartas ou correspondência sobre o assunto. Ele achou prudente, porém, tomar precauções e enviar patrulhas militares e policiais para a ronda noturna da cidade. A conspiração fora descoberta em boa hora, disso ele estava certo, mesmo porque ele não subestimava os sérios danos que poderiam resultar das ações sediciosas, "muito mais de receiar num Paiz de conquista, de tanta excravatura e em tal epocha". Em sua opinião, era imprescindível instituir uma devassa, "a vista do exemplo praticado em semelhantes casos e ultimamente pelo Vice-Rey do Estado do Brasil e pelo capitão General e Governador de Minas Gerais no levantamento daquella Capitania". A decisão ficava a cargo de Lisboa, a quem ele requisitava uma resposta ("D. Fernando José de Portugal a d. Rodrigo de Souza Coutinho", Bahia, 20 de outubro de 1798, Inácio Acioli de Cerqueira e Silva, "Memórias Históricas e Políticas", 6 vols., tomo 3, pág. 123).
Em 4 de outubro de 1798, porém, d. Rodrigo enviara uma dura reprimenda ao governador. A última flotilha da Bahia trouxera rumores de "que as pessoas principaes dessa cidade, por numa loucura incomprehensível e por não entenderem os seus interesses, se achão infectos dos abominaveis principios francezes e com grande afeição á absurda pretendida constituição Franceza que varia cada seis mezes". A causa desse estado de coisas, segundo os rumores, era a "frouxidão do Governo e a corrupção da Relação, que permite a todos os que são poderosos de fazerem todas as violencias e assoadas que convem a seus interesses".
O estado do Exército era tão precário que, se surgissem tropas francesas, elas não seriam rechaçadas, e "as pessoas principaes se uniriam aos Francezes (se eles lá fossem), do que bem depressa se arrependeriam". O abastado empreendedor e padre Francisco Agostinho Gomes era nomeadamente indigitado. O governador recebeu ordens para instituir uma investigação imediata sobre tais alegações e, se verdadeiras, punir os culpados com os rigores da lei. E arrematava d. Rodrigo: "premio e castigo são os dois pólos sobre que se estriba toda a maquina política e que no momento presenta toda a vigilancia (...) indispensavel e absolutamente necessaria" ("D. Rodrigo de Souza Coutinho a d. Fernando José de Portugal", 4 de outubro de 1798, "Memórias Históricas e Políticas", tomo 3, pág. 9).
A carta do secretário de Estado fora rascunhada antes que as notícias sobre a conspiração aportassem em Lisboa. Quando a advertência de d. Rodrigo chegou à Bahia, o governador tomou a censura como injusta, e apressou-se a observar a Lisboa que sentia-se despeitado. Ele agira com rapidez e êxito após a disseminação dos manifestos, e os seus esforços foram recompensados pela pronta detenção dos pseudo-revolucionários. Escassa era a evidência, relatava ele a d. Rodrigo, de que os envolvidos não fossem membros da "baixa esfera". A investigação sobre as atividades do padre Agostinho Gomes, imediatamente incitadas pelo governador, nada revelou além do fato de que ele era um homem erudito e bem informado, que lia jornais ingleses e franceses.
D. Fernando ressentiu-se por ser acusado de complacência, como "se eu devesse proceder inconsideradamente, sem denuncias, sem provas, sem indicios, em materia de tanto melindre e gravidade contra o sobredito Padre ou contra outro qualquer, só porque lê correios da Europa, Gazetas inglezas ou outros papeis desta natureza, quando elles correm sem prohibição e são remetidos dessa Côrte a differentes pessoas". E notava ainda a d. Rodrigo que a leitura de jornais ingleses não convertia o leitor num jacobino. "Quasi todos os Governadores da America", ele continua, "são increpados -ou de despoticos, ou de frouxos: se castigão de modo extraordinario, sem processos, sem figura de juizo, preteridas as formalidades prescriptas nas leys e os meyos que ellas tem estabelecidos de devaça, querela, summario e denuncias, merecem o nome de despôticos; se, pelo contrario, procedem em conformidade com as mesmas Leys, ouvindo-se as partes, perante aquelles magistrados proprios e destinados para conhecerem em geral dos delictos como sejão os Ministros criminaes merecem na opinião de algumas pessoas indiscretas, de espirito malefico, o nome de frouxos, sem se lembrarem que ha um meio termo entre estes dois extremos".
E uma vez mais repetia não estar convencido do envolvimento dos homens de prol da capitania, e tampouco dos negociantes, dos funcionários públicos ou da classe proprietária ("homens de bem"), que reagiram com todo o vigor aos panfletos sediciosos. Os envolvidos na conspiração pertenciam à "classe ordinária". "O que sempre se receiou nas colonias he a Escravatura, em razão de sua condição e porque he o maior numero de habitantes dellas, não sendo tão natural que os homens empregados e estabelecidos em bens e propriedades queirão concorrer para uma conspiração ou attentado de que resultariam em pessimas consequencias, vendo-se até expostos a serem assassinados pelos seus proprios escravos." Como não quisesse pedir perdão pelos baianos, ele dizia ao secretário de Estado querer apenas "expressar seus sentimentos".
As causas do caso baiano foram um amálgama de ressentimentos sociais, preços elevados de víveres e o impacto dos lemas revolucionários franceses. A peculiar alienação dos mulatos das cidades provinha de uma série de incidentes, em que eles se viam como insultados. Um sargento-mor branco fora designado comandante do regimento auxiliar dos pardos livres, o que não apenas transpunha fronteiras raciais, mas situava o regimento mulato numa relação desfavorável com o regimento dos negros livres, os famosos "Henriques", com o seu coronel e comandante negro. Os artesãos e soldados mulatos, boa parte deles alfabetizada, eram receptivos à ideologia revolucionária.
O surgimento de manifestos, com sua exigência de "liberdade, igualdade e fraternidade", e a composição racial do conclave conspiratório causaram uma reação em completo descompasso com os próprios incidentes. A mensagem do planejado "cruel massacre", como afirmava Vilhena, era bem clara. Desde 1791, os senhores de escravos nas Américas mal podiam ocultar o seu temor de que a revolução de Santo Domingo fosse contagiosa. Os artesãos mulatos baianos forneceram a resposta. Após 1798, a elite branca na América portuguesa defrontou-se com a pergunta lançada pelo Almirante Campbell, então comandante da esquadra portuguesa na costa do Brasil: teriam os "episódios de Santo Domingo evidenciado que não havia estabilidade na soberania branca em um país necessariamente trabalhado por negros?".
O cerco aos conspiradores suspeitos, iniciado em 25 de agosto, continuou até fevereiro de 1799, à medida que avançavam os interrogatórios, com a prisão de mais de 50 pessoas. Cinco dos conspiradores baianos foram condenados à morte, porém um deles, Luis Pires, escapou à captura.
Ao contrário dos inconfidentes mineiros de 1789 -cujas penas capitais foram comutadas por ordens de banimento, exceto a de Tiradentes-, os revolucionários baianos, com suas "abomináveis idéias jacobinas", não receberam nenhum tipo de clemência de Lisboa. Quatro dos líderes foram enforcados no centro da cidade, a 8 de novembro de 1799; três deles, Lucas Dantas, João de Deus e Manoel Faustas, todos mulatos livres, foram decapitados e esquartejados, sendo algumas partes de seus corpos exibidas em locais públicos. O superintendente de saúde da cidade tentou remover a carne putrefata dois dias depois, sob alegação de que ela era uma ameaça à saúde pública, mas descobriu ser impossível fazê-lo sem o específico despacho real. Dezesseis dos prisioneiros foram soltos. Sete homens, cinco mulatos livres e dois mulatos escravos, foram chicoteados em público e forçados a presenciar as execuções. Como instruíra d. Rodrigo, eles e o restante dos prisioneiros foram "completamente afastados do meio dos leais vassalos" da rainha de Portugal. Negada até a possibilidade de residir nos territórios da África, eles foram literalmente abandonados ao longo da costa africana. Os desertores, estes, foram recompensados com promoções e pensões.
D. Fernando, porém, traçara uma distinção fundamental ao defender as suas ações para d. Rodrigo, e seus comentários sublinhavam a mudança de atitude diante da reforma e da revolução no Brasil na década de 1790. Os produtores de açúcar e seus apologistas desejavam "liberdade", é claro, e os mais letrados entre eles eram ávidos discípulos de pensadores europeus, mas as teorias que os atraíam eram aquelas que articulavam e forneciam uma justificativa para os seus próprios interesses, e esses interesses, como discerniu d. Fernando, não eram necessariamente conflitantes com a relação colonial. A liberdade que os fazendeiros mais queriam era a liberdade que o bispo Azeredo Coutinho propôs em seu memorial sobre o preço do açúcar. Era a liberdade de "cada um lucrar o máximo com seu trabalho". A liberdade para a empresa capitalista não era o que João de Deus tinha em mente. Como dizia d. Fernando, os adversários mais renhidos das exigências dos mulatos baianos seriam os fazendeiros baianos, pois eram eles, e não Lisboa, que teriam a perder se aquelas reivindicações fossem cumpridas.
Ao fim da década de 1790, de fato, a elite branca brasileira descobriu que republicanismo e democracia eram conceitos perigosos demais para que fossem experimentados numa sociedade escravocrata, na qual os africanos e afro-brasileiros excediam os brancos numa proporção de dois para um. Como consequência, aqueles brasileiros que, antes de 1790, seguiam com entusiasmo os acontecimentos na América do Norte e esperavam que a revolução norte-americana fosse capaz de lhes fornecer um modelo para a própria emancipação colonial, agora abraçavam a monarquia, a conciliação e a continuidade, no interesse de preservar o status quo contra a sublevação racial e social.



Nota:
Esse artigo é baseado em passagens de Kenneth Maxwell, "A Devassa da Devassa", 3ª edição, São Paulo, 1985, págs. 242-59; Kátia M. de Queirós Mattoso, "Presença Francesa no Movimento Democrático Baiano de 1798", Bahia, 1969; Luís Henrique Dias Tavares, "História da Sedição Intentada na Bahia em 1798", São Paulo, 1975; Alfonso Ruy, "A Primeira Revolução Social Brasileira - 1798", Bahia, 1951; João José Reis, "Slave Rebellion in Brazil", Baltimore, 1993; Andrés Mansuy, "L'Imperialisme Britannique et les Relations Coloniales Entre le Portugal et le Brésil: Un Rapport de l'Admiral Campbell au Foreign Office (14 août, 1804)", "Cahiers de l'Amérique Latine", 9-10, 1974; "Autos da Devassa do Levantamento e Sedição Intentadas na Bahia em 1798", Anais do Arquivo Público da Bahia, vols. 35 e 36 (Bahia, 1959, 1961).

Kenneth Maxwell é historiador inglês, especialista na história do Brasil e Portugal; autor, entre outros, de "A Devassa da Devassa" e "The Making of Portuguese Democracy" (A Formação da Democracia Portuguesa).
Tradução de José Marcos Macedo.





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