São Paulo, domingo, 26 de julho de 1998

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NOVOS AUTORES
O mundo incerto

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação

Há uma interessante evolução entre o primeiro livro de João Anzanello Carrascoza, lançado em 94, e o segundo, publicado agora.
Nos contos de "Hotel Solidão", o autor criava personagens imprecisos, quase etéreos, para jogá-los em situações estagnadas. O enredo praticamente inexistia ou tinha função apenas decorativa.
Tudo isso a serviço de uma valorização declarada da linguagem, da construção de um fraseado por um lado poético, "literário", e por outro lado exaustivamente digressivo.
A sensação, para o leitor, era em geral a de estar diante de um autor preocupado acima de tudo com o escrever bem, com o estilo, o qual acabava por brotar, por isso mesmo, sem naturalidade. Ali, a curiosa adoção de histórias quase fotográficas não encontrava contrapartida no linguajar - pesado, lento. Forma e conteúdo não se fundiam na leitura.
Agora, em "O Vaso Azul", os personagens são mais vivos, consistentes. Evoluem. Entram em conflito. Há desfechos a se aguardar. A linguagem, mais enxuta, menos dada ao floreio -mas nem por isso menos elaborada-, coloca-se a serviço de uma composição e não de seu próprio espelho.


A OBRA
O Vazo Azul - João Anzanello Carrascoza. Ed. Ática (r. Barão de Iguape, 110, CEP 01507-900, SP, tel. 011/278-9322). 96 págs. R$ 19,90.



Exceto em "Night Bikers" e "Mulheres", todos os contos desta nova coletânea tratam de relacionamentos familiares: marido-mulher, pai-filho, filha-mãe etc. Os confrontos, porém, não ocorrem de modo declarado. Em vez disso, refletem-se em incertezas, em interpretações diversas dos personagens para os mesmos fatos.
No conto que dá título ao volume, um jovem visita a mãe já idosa e em situação precária. O texto conta:
"Após lavar as mãos, ele volta à sala, apanha o livro na mesinha e se estira no sofá. Na página que se abre, de letras miúdas, é capaz de encontrar sujeiras mínimas, salpico invisível de tinta, cílio de sua pálpebra engolido pelas palavras. Não notou, contudo, que duas voltas de durex envolvem uma das pernas dos óculos da mãe, prendendo-a, solução a princípio improvisada, agora definitiva".
Em "Ana", uma menina menstrua pela primeira vez, às escondidas, durante uma viagem de trem que a família empreende às pressas para visitar a avó agonizante. Carrascoza consegue, aqui, reunir dramaticidade e movimento. Sentimo-nos dentro daquele trem, junto com a menina que se tranca no toalete sujo.
Um blecaute, no conto "Iluminados", obriga um casal a se relacionar diretamente por algumas horas sem o subterfúgio da televisão e da luz: é paradoxalmente o escuro que os ilumina.
São histórias que emocionam.
Como a do namorado de "Dupla Fuga", que, cheio de dúvidas e conflitos internos, depois de fugir com a namorada das respectivas famílias, a abandona durante uma parada do ônibus em que viajavam.
A exceção negativa dentre as narrativas de Carrascoza -36 anos, paulista de Cravinhos, residente na capital- fica por conta de "Mulheres". Trata-se do relato de uma briga feito de modo não só machista, mas também superficial, abaixo das demais narrativas em qualidade. Aí o autor exagerou em prol do enredo, sem que este o justifique, minimamente que seja.



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