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Máscaras nuas
Saem edições de obras de Luigi Pirandello e Leonardo Sciascia, dois dos principais escritores italianos do século 20
AURORA F. BERNARDINI
ESPECIAL PARA A FOLHA
É assim que Pirandello
costumava viver quando voltava a Agrigento" (sua residência
na Sicília, quando não
estava em Roma, onde lecionou de 1897 até 1922), dizia
Leonardo Sciascia, quando, em
1980, fui visitá-lo em Racalmuto-Contrada Noce, uma localidade próxima de Palermo,
cheia de casas antigas construídas com as pedras do lugar e no
meio de incríveis extensões de
videiras, todas elas cultivadas
em tabuleiros contíguos, como
imensos chuchuzeiros, por baixo dos quais as pessoas iam e
vinham, dos lugares mais disparatados.
No caso de Pirandello (1867-1936), fiquei sabendo então, todas as tardes, depois da sesta,
ele ficava sentado no pátio em
frente à casa onde os camponeses ou membros de suas famílias vinham conversar com ele
para relatar-lhe os "causos"
que corriam nos povoados e
que depois ele transformava
em contos.
De fato, no que se refere aos
contos, o projeto de Luigi Pirandello era tão extenso que,
entre 1922 e 1936, chegou a publicá-los em 15 volumes, sob o
título geral de "Novelle per un
Anno" (Novelas para um Ano);
mais de 300, portanto.
12 "causos"
O volume "O Marido de Minha Mulher", que a editora
Odisséia lança agora, numa antiga tradução de Jacob Penteado cuja tonalidade de outrora
se casa admiravelmente com a
ambiência dos 12 "causos" narrados, é uma parte daquela coletânea.
Parte privilegiada, pois contém alguns entre os contos antológicos do escritor. Um deles,
"Retorno", narra um episódio
traumatizante da infância de
Pirandello que talvez explique
-junto com a sicilianidade- a
fixação em alguns traços traumáticos de suas personagens: a
carnalidade "plácida" de certas
mulheres e a brutalidade "sanguínea" de certos homens.
Outros, como "Música Antiga", evocam sutilmente hábitos
passados, numa técnica que
lembra "Roma", de Fellini, em
que poesia e "grand-guignol" se
sucedem e se misturam.
E, finalmente, em "Casaca
Apertada", surge o imponderável, o aspecto que Sciascia
-grande estudioso e, num certo sentido, continuador de Pirandello- considera um de
seus traços distintivos mais fecundos.
No conto é exposta com
grande maestria essa intromissão na rotina de um velho e preguiçoso professor, de uma circunstância curiosa e irritante
que consegue contrariar o destino e fazer com que ele "encontre a coragem e a força para
revoltar-se e triunfar".
Outro traço característico pirandelliano, já sobejamente
consagrado desde seu primeiro
festejadíssimo romance ("O
Falecido Mattia Pascal"), é o da
mutabilidade da identidade das
pessoas.
Nada melhor que o teatro,
porém, para a expressão dessa
peculiaridade da persona e, em
particular, a peça "Vestir os
Nus", já apresentada várias vezes no Brasil (em meados dos
anos 1950, deu o Prêmio Governador do Estado de São Paulo a
Fernanda Montenegro, por sua
interpretação da personagem
Ercília), que agora volta, atualíssima, pela Civilização Brasileira, na "transubstanciação"
de Millôr Fernandes.
Muito bem escolhido o termo -os termos, na verdade,
pois o texto do tradutor é arguto e propõe inovações muito a
propósito: "istória", por exemplo, para quem titubeia entre
"estória" (muito regionalista) e
"história" (muito erudito).
Nesta "istória" é exposta subliminarmente outra teoria pirandelliana: a da relação vida/
forma.
Após várias tentativas para
que uma "nova vida" possa ser
possível, mas vendo o futuro
comprometido, Ercília não retoma a máscara da "forma quebrada", coisa que é sugerida pelos protagonistas masculinos que tendem a nela encontrar
refúgio, vítimas que são da "forma" que se fecha sobre a vida.
Ercília não aceita nenhuma
dessas falsas propostas e,
"nua", rompe a forma para afirmar a vida.
Máscaras "nuas" há muitas (é
assim que Pirandello chamou a
reunião das suas peças de teatro), e as mulheres, que conseguem mais facilmente modificar sua identidade e vesti-las -geralmente em nome do
amor ou da arte-, representam
uma outra possibilidade generosa de transcendência ainda
válida que o autor nos lega.
Matriarcas possessivas
Uma visão mais misógina é a
de Leonardo Sciascia (1921-1989). As protagonistas de seus
"gialli" -romances policiais,
quase que totalmente ambientados na Sicília- geralmente
são as matriarcas possessivas e
castradoras ou as beldades sensuais e desejadas, que não vacilam quando se trata de seu próprio proveito.
Mas seu juízo severo é mitigado pela bem-vinda ironia
com a qual sabe envolver a
ação: "Em política, era considerado por todos um comunista;
mas não era. Quanto à vida privada, era considerado uma vítima do afeto exclusivo e ciumento da mãe; e assim era".
Trata-se de Laurana, modesto professor do secundário e
herói obscuro de "A Cada Um o
Seu" (1966), um de seus romances mais famosos sobre o "inferno" da máfia, relançado na
impecável tradução de Nilson
Moulin (na década de 80 já havia sido publicado pela editora
Fontana, juntamente com "O
Dia da Coruja" e "O Conselho
do Egito").
Em português ainda constam
(entre os não esgotados): "O
Mar Cor de Vinho" (Berlendis
& Vertecchia), "1912+1" (Rocco) e "Majorana Desapareceu"
(Rocco). Há mais de dez livros
que ainda falta traduzir (inclusive um de contos), mas a escolha não é difícil: são todos bons,
diria Gore Vidal, um dos seus
leitores mais entusiasmados.
Quanto a Pirandello -ainda
um dos mais importantes dramaturgos de nosso tempo-, fora as três ou quatro peças mais
conhecidas e mais representadas, continua havendo 40 delas
à espera de suas personagens
em nosso palcos. É de esperar
que o septuagésimo aniversário
de sua morte seja o marco de
sua retomada.
AURORA F. BERNARDINI é professora de teoria
literária e literatura comparada na USP.
O MARIDO DE MINHA MULHER
Autor: Luigi Pirandello
Tradução: Jacob Penteado
Editora: Odisséia
(tel. 0/xx/21/ 3212-2600)
Quanto: R$ 15,90 (192 págs.)
VESTIR OS NUS
Autor: Luigi Pirandello
Tradução: Millôr Fernandes
Editora: Civilização Brasileira
(tel. 0/ xx/21/ 2585-2000)
Quanto: R$ 20 (140 págs.)
A CADA UM O SEU
Autor: Leonardo Sciascia
Tradução: Nilson Moulin
Editora: Objetiva/Alfaguara
(tel. 0/ xx/ 21/ 2199-7824)
Quanto: R$ 26,90 (136 págs.)
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