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LIVROS
O francês Didier Eribon defende a igualdade sexual e a herança cultural dos anos 60
A resistência homossexual
JUREMIR MACHADO DA SILVA
especial para a Folha
Professor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, o francês Didier Eribon transita com desenvoltura pelas principais universidades dos Estados
Unidos. Autor de uma importante biografia de Michel Foucault,
publicada em 1989, traduzida em
17 línguas (inclusive no Brasil), ficou também conhecido por seus
livros de entrevistas com Georges
Dumézil, Claude Lévi-Strauss e
Ernst Gombrich.
Com "Reflexões sobre a Questão Gay", recém-lançado na França (Ed. Fayard), ele retomou o caminho da polêmica e agitou a imprensa cultural francesa. Com um
texto rico em fontes literárias como Marcel Proust e André Gide,
sem contar o imenso aparato teórico devedor de Michel Foucault
e, em termos mais recentes, de
Pierre Bourdieu, Eribon revisita
os preconceitos deste fim de século contra o homossexualismo e
mostra como o Ocidente constrói
o estigma para definir identidades
sociais inferiorizadas e excluídas.
Militante pelos direitos dos homossexuais, o autor crê na resistência e vê na arte e nas grandes
cidades os espaços privilegiados
para o exercício de uma mínima
liberdade sexual. Sem ilusões,
tampouco sem desencanto, revela
os mecanismos conservadores de
defesa dos privilégios dos homens, brancos e heterossexuais.
Nas campanhas que, pela derrisão
ou pelo desprezo, atacam o dito
"politicamente correto", vê um
recente avatar do terrível medo da
igualdade de direitos sexuais.
Mas o livro de Eribon não se impõe como um manifesto. O poder
intelectual e analítico supera qualquer simpatia, de resto assumida,
pelos movimentos homossexuais.
Nesta entrevista para a Folha, Eribon exercita o seu passatempo
predileto: dar nome aos bois.
Folha - O título de seu livro,
"Reflexões sobre a Questão
Gay", faz referência a Jean-Paul
Sartre. Trata-se de dar um estatuto filosófico ao tema da homossexualidade?
Didier Eribon - Ao escolher esse
título, que faz evidentemente referência às "Reflexões sobre a Questão Judaica", de Jean-Paul Sartre,
quis, claro, afirmar que se pode e
se deve produzir uma reflexão
teórica e filosófica sobre a homossexualidade. Que se pode colocar
a homossexualidade no registro
da análise intelectual e não ficar
nas habituais discussões polêmicas que irrompem de maneira um
tanto irracional desde o momento
em que se toca no assunto.
Mas quis também me inspirar
na tese desenvolvida por Sartre
nesse pequeno livro de 1946: é a
sociedade anti-semita, escreve ele,
que forja o ser judeu, e este não escolhe, a não ser aceitar o que é (o
que Sartre chama de "autenticidade") ou então fugir ao que é na
vergonha ou na negação de si
mesmo (o que Sartre chama de
"inautenticidade"). Parece-me
que o mesmo vale para os gays: a
ordem social determina ao homossexual um status inferiorizado, o que determina em profundidade a personalidade e mesmo a
identidade dos indivíduos assim
designados. E não há escolha.
Folha - O seu livro foi lançado
pouco antes do atentado, em
Londres contra um bar gay. O
Ocidente chega ao final do século mergulhado na homofobia?
Eribon - Creio que muitas coisas
mudaram nos últimos anos, graças ao surgimento, em escala internacional, de um movimento
gay e lésbico que adotou múltiplas formas. Mas isso não fez, evidentemente, regredir a homofobia. Talvez o contrário tenha
acontecido: vê-se bem, historicamente, que cada grande momento de afirmação homossexual e de
reivindicação do direito à homossexualidade provocou uma reação homófoba. Basta pensar em
Oscar Wilde e na repressão da
qual foi vítima. Ou pensar na recepção ao livro de Gide, "Corydon". A violência resultante da
publicação desse livrinho, que
nos parece hoje tão convencional,
é simplesmente assustadora. A
mesma violência se vê por toda a
parte quando se trata do reconhecimento jurídico dos casamentos
entre pessoas de mesmo sexo.
Folha - Em seu livro o senhor
cita várias vezes "A Dominação
Masculina", de Pierre Bourdieu,
no qual se encontra uma visão
pouco otimista do progresso da
liberação das mulheres. A revolução sexual fracassou?
Eribon - Não. A herança dos
anos 60 e 70 é bastante considerável e deve-se defendê-la a qualquer preço. Mas o que surpreende, e Bourdieu tem razão em salientar isso, é o fato de que todas
essas transformações, que afetaram a situação das mulheres, dos
gays e das lésbicas, ao menos nas
sociedades ocidentais, não alteraram, ao fim e ao cabo, a estrutura
mesma da dominação e da opressão. Devemos, portanto, refletir
não somente sobre o que mudou,
mas também analisar as permanências, as invariantes, e tentar
ver, como faz Bourdieu a respeito
das mulheres, quais são as instituições que operam para perpetuar a ordem social e a ordem sexual: Igreja, escola, mundo do trabalho, ideologias políticas etc.
Folha - O que é ser homossexual numa época em que todos
os interditos, em princípio, teriam desabado?
Eribon - Não é possível apresentar uma definição de homossexual, pois existem mil maneiras
de ser homossexual hoje. Certo,
porém, é que a sociedade define
um lugar estigmatizado para os
homossexuais e, por causa disso,
eles são assim definidos coletivamente, seja qual for a maneira como cada indivíduo pensa -aceita ou recusa- a sua relação com
tal coletivo. Essa definição coletiva parece-me, com efeito, estar
simbolizada pela injúria que atinge as "bichas" ou os "sapatões".
Cada gay ou lésbica pode ser vítima da injúria, na rua, no local de
trabalho, em cada momento da
vida. Mas essa injúria aparece
também sob a forma de caricatura nos jornais, na televisão, no cinema. Tudo isso forma o que chamei de um "modo de injúrias",
responsável pela estruturação da
relação do homossexual com os
outros e consigo mesmo. É essa
subjetividade insultada que se deve superar pela afirmação de si,
num gesto pessoal e coletivo de
afastamento das normas de submissão.
Folha - Na França, em 1998,
muito se discutiu um projeto de
lei para regularizar a situação
dos casais de homossexuais. Como o sr. analisa essa questão?
Eribon - A direita opôs-se aos
projetos de reconhecimento legal
de casais de mesmo sexo. A esquerda tentou limitar esse reconhecimento a alguns direitos simples, que não acarretam o reconhecimento simbólico e social do
casal de mesmo sexo. São duas
versões diferentes, claro, mas ainda assim duas versões da ideologia da homofobia: nos dois casos,
trata-se de manter os homossexuais numa situação de inferioridade jurídica e social. Mas, obviamente, lutar pela igualdade de direitos não significa pregar para os
homossexuais o casamento como
modo de vida obrigatório. Gays e
lésbicas inventaram outros modos de vida, outras formas de relação, e não se trata de querer "normalizá-los" reivindicando o direito ao casamento. Não tenho vontade de casar, mas muitos casais
gostariam de fazê-lo. Acho insuportável que sejam impedidos.
Folha - A literatura (de Gide,
Wilde, Proust, Isherwood etc.)
desempenhou papel importante na mudança do imaginário
sexual contemporâneo?
Eribon - Fala-se da importância
da invenção cultural em dois sentidos: há, de um lado, a cultura literária e intelectual e, de outro, a
cultura popular. Por isso, tento
estudar como escritores e acadêmicos, entre outros, buscaram
dar existência a uma palavra homossexual por meio de livros,
apesar das interdições, dos tabus,
da repressão exercida contra eles.
Com frequência, tiveram de dissimular o discurso, utilizando
"máscaras", "códigos". Cada autor tentou beber nas fontes precedentes. Oscar Wilde buscou apoio
nos seus mestres, os helenistas de
Oxford; Gide apoiou-se em Wilde; Genet, Barthes e Foucault foram bastante marcados por Gide.
E nós somos um pouco os herdeiros de toda essa história.
Folha - Como ultrapassar a situação atual de exclusão do homossexual. Pode-se sonhar com
uma "utopia sexual"?
Eribon - Não, não creio de jeito
nenhum que estejamos nos dirigindo para uma sociedade melhor na qual a opressão exercida
contra os homossexuais desapareça. Mas acredito que é possível
construir espaços políticos, culturais e sociais de resistência a essa
opressão. Não creio em utopia,
mas sim em resistência.
Juremir Machado da Silva é sociólogo, escritor e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; é autor, entre
outros, de "Fronteiras" (Editora Sulina)
Onde encomendar:
"Reflexões sobre a Questão Gay" pode
ser encomendado à Livraria Francesa (r.
Barão de Itapetininga, 275, SP, tel. 011/
231-4555) ou, pela Internet, pela Alapage (www.alapage.com).
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