São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999
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LIVROS
O francês Didier Eribon defende a igualdade sexual e a herança cultural dos anos 60
A resistência homossexual

JUREMIR MACHADO DA SILVA
especial para a Folha

Professor na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris, o francês Didier Eribon transita com desenvoltura pelas principais universidades dos Estados Unidos. Autor de uma importante biografia de Michel Foucault, publicada em 1989, traduzida em 17 línguas (inclusive no Brasil), ficou também conhecido por seus livros de entrevistas com Georges Dumézil, Claude Lévi-Strauss e Ernst Gombrich.
Com "Reflexões sobre a Questão Gay", recém-lançado na França (Ed. Fayard), ele retomou o caminho da polêmica e agitou a imprensa cultural francesa. Com um texto rico em fontes literárias como Marcel Proust e André Gide, sem contar o imenso aparato teórico devedor de Michel Foucault e, em termos mais recentes, de Pierre Bourdieu, Eribon revisita os preconceitos deste fim de século contra o homossexualismo e mostra como o Ocidente constrói o estigma para definir identidades sociais inferiorizadas e excluídas.
Militante pelos direitos dos homossexuais, o autor crê na resistência e vê na arte e nas grandes cidades os espaços privilegiados para o exercício de uma mínima liberdade sexual. Sem ilusões, tampouco sem desencanto, revela os mecanismos conservadores de defesa dos privilégios dos homens, brancos e heterossexuais. Nas campanhas que, pela derrisão ou pelo desprezo, atacam o dito "politicamente correto", vê um recente avatar do terrível medo da igualdade de direitos sexuais.
Mas o livro de Eribon não se impõe como um manifesto. O poder intelectual e analítico supera qualquer simpatia, de resto assumida, pelos movimentos homossexuais. Nesta entrevista para a Folha, Eribon exercita o seu passatempo predileto: dar nome aos bois.

Folha - O título de seu livro, "Reflexões sobre a Questão Gay", faz referência a Jean-Paul Sartre. Trata-se de dar um estatuto filosófico ao tema da homossexualidade?
Didier Eribon -
Ao escolher esse título, que faz evidentemente referência às "Reflexões sobre a Questão Judaica", de Jean-Paul Sartre, quis, claro, afirmar que se pode e se deve produzir uma reflexão teórica e filosófica sobre a homossexualidade. Que se pode colocar a homossexualidade no registro da análise intelectual e não ficar nas habituais discussões polêmicas que irrompem de maneira um tanto irracional desde o momento em que se toca no assunto.
Mas quis também me inspirar na tese desenvolvida por Sartre nesse pequeno livro de 1946: é a sociedade anti-semita, escreve ele, que forja o ser judeu, e este não escolhe, a não ser aceitar o que é (o que Sartre chama de "autenticidade") ou então fugir ao que é na vergonha ou na negação de si mesmo (o que Sartre chama de "inautenticidade"). Parece-me que o mesmo vale para os gays: a ordem social determina ao homossexual um status inferiorizado, o que determina em profundidade a personalidade e mesmo a identidade dos indivíduos assim designados. E não há escolha.

Folha - O seu livro foi lançado pouco antes do atentado, em Londres contra um bar gay. O Ocidente chega ao final do século mergulhado na homofobia?
Eribon -
Creio que muitas coisas mudaram nos últimos anos, graças ao surgimento, em escala internacional, de um movimento gay e lésbico que adotou múltiplas formas. Mas isso não fez, evidentemente, regredir a homofobia. Talvez o contrário tenha acontecido: vê-se bem, historicamente, que cada grande momento de afirmação homossexual e de reivindicação do direito à homossexualidade provocou uma reação homófoba. Basta pensar em Oscar Wilde e na repressão da qual foi vítima. Ou pensar na recepção ao livro de Gide, "Corydon". A violência resultante da publicação desse livrinho, que nos parece hoje tão convencional, é simplesmente assustadora. A mesma violência se vê por toda a parte quando se trata do reconhecimento jurídico dos casamentos entre pessoas de mesmo sexo.

Folha - Em seu livro o senhor cita várias vezes "A Dominação Masculina", de Pierre Bourdieu, no qual se encontra uma visão pouco otimista do progresso da liberação das mulheres. A revolução sexual fracassou?
Eribon -
Não. A herança dos anos 60 e 70 é bastante considerável e deve-se defendê-la a qualquer preço. Mas o que surpreende, e Bourdieu tem razão em salientar isso, é o fato de que todas essas transformações, que afetaram a situação das mulheres, dos gays e das lésbicas, ao menos nas sociedades ocidentais, não alteraram, ao fim e ao cabo, a estrutura mesma da dominação e da opressão. Devemos, portanto, refletir não somente sobre o que mudou, mas também analisar as permanências, as invariantes, e tentar ver, como faz Bourdieu a respeito das mulheres, quais são as instituições que operam para perpetuar a ordem social e a ordem sexual: Igreja, escola, mundo do trabalho, ideologias políticas etc.

Folha - O que é ser homossexual numa época em que todos os interditos, em princípio, teriam desabado?
Eribon -
Não é possível apresentar uma definição de homossexual, pois existem mil maneiras de ser homossexual hoje. Certo, porém, é que a sociedade define um lugar estigmatizado para os homossexuais e, por causa disso, eles são assim definidos coletivamente, seja qual for a maneira como cada indivíduo pensa -aceita ou recusa- a sua relação com tal coletivo. Essa definição coletiva parece-me, com efeito, estar simbolizada pela injúria que atinge as "bichas" ou os "sapatões". Cada gay ou lésbica pode ser vítima da injúria, na rua, no local de trabalho, em cada momento da vida. Mas essa injúria aparece também sob a forma de caricatura nos jornais, na televisão, no cinema. Tudo isso forma o que chamei de um "modo de injúrias", responsável pela estruturação da relação do homossexual com os outros e consigo mesmo. É essa subjetividade insultada que se deve superar pela afirmação de si, num gesto pessoal e coletivo de afastamento das normas de submissão.

Folha - Na França, em 1998, muito se discutiu um projeto de lei para regularizar a situação dos casais de homossexuais. Como o sr. analisa essa questão?
Eribon -
A direita opôs-se aos projetos de reconhecimento legal de casais de mesmo sexo. A esquerda tentou limitar esse reconhecimento a alguns direitos simples, que não acarretam o reconhecimento simbólico e social do casal de mesmo sexo. São duas versões diferentes, claro, mas ainda assim duas versões da ideologia da homofobia: nos dois casos, trata-se de manter os homossexuais numa situação de inferioridade jurídica e social. Mas, obviamente, lutar pela igualdade de direitos não significa pregar para os homossexuais o casamento como modo de vida obrigatório. Gays e lésbicas inventaram outros modos de vida, outras formas de relação, e não se trata de querer "normalizá-los" reivindicando o direito ao casamento. Não tenho vontade de casar, mas muitos casais gostariam de fazê-lo. Acho insuportável que sejam impedidos.

Folha - A literatura (de Gide, Wilde, Proust, Isherwood etc.) desempenhou papel importante na mudança do imaginário sexual contemporâneo?
Eribon -
Fala-se da importância da invenção cultural em dois sentidos: há, de um lado, a cultura literária e intelectual e, de outro, a cultura popular. Por isso, tento estudar como escritores e acadêmicos, entre outros, buscaram dar existência a uma palavra homossexual por meio de livros, apesar das interdições, dos tabus, da repressão exercida contra eles. Com frequência, tiveram de dissimular o discurso, utilizando "máscaras", "códigos". Cada autor tentou beber nas fontes precedentes. Oscar Wilde buscou apoio nos seus mestres, os helenistas de Oxford; Gide apoiou-se em Wilde; Genet, Barthes e Foucault foram bastante marcados por Gide. E nós somos um pouco os herdeiros de toda essa história.

Folha - Como ultrapassar a situação atual de exclusão do homossexual. Pode-se sonhar com uma "utopia sexual"?
Eribon -
Não, não creio de jeito nenhum que estejamos nos dirigindo para uma sociedade melhor na qual a opressão exercida contra os homossexuais desapareça. Mas acredito que é possível construir espaços políticos, culturais e sociais de resistência a essa opressão. Não creio em utopia, mas sim em resistência.


Juremir Machado da Silva é sociólogo, escritor e professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul; é autor, entre outros, de "Fronteiras" (Editora Sulina)

Onde encomendar:
"Reflexões sobre a Questão Gay" pode ser encomendado à Livraria Francesa (r. Barão de Itapetininga, 275, SP, tel. 011/ 231-4555) ou, pela Internet, pela Alapage (www.alapage.com).




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