São Paulo, Domingo, 26 de Setembro de 1999
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O filósofo tesudo de Frankfurt

GILBERTO VASCONCELLOS
especial para a Folha

Marcuse, o filósofo preferido da geração que agora está cinquentona. Textos inéditos, achados e publicados depois de sua morte em 1979, ano emblemático porque a década de 80 inaugurará o reacionarismo de corpo e alma no mundo, culminando com a voga picareta do pós-modernismo dos anos 90.
Diante dessa regressão ideológica, quiçá orquestrada pela CIA, Marcuse sai de moda. A perfídia do "niuliberalysmuz" popizou-lhe em excesso a imagem de filósofo do fumo, do "riponga", da "porralouquice" anárquica com "piti" contestatório. O fato irrefutável é que, de todos os notáveis pensadores de Frankfurt, Marcuse tocou fundo na sensibilidade da juventude, embora não tivesse sido desses autores malandros que escrevem com o objetivo de agradar aos jovens. Curiosamente, Marcuse denunciou a padronização do pensamento e do estilo, que é hoje a praga reificada da miçanga "lepitópi": todos escrevendo igual, e não só nos veículos manjados da indústria cultural.
Seu conceito de "dessublimação repressiva" é um verdadeiro achado para designar o engodo mercantil da permissividade sexual, mesmo depois do aparecimento da Aids, ou seja: a manipulação da gratificação passional que libera os instintos brutais da massa para ligá-los ao mecanismo boçal e repressivo da ordem dominante, à maneira do que ocorre entre nós com o videofascismo dos atuais programas de auditório. Por filósofo tesudo, quero aludir à importância que ele atribui à dimensão erótica e estética. Marcuse adora citar o poeta Baudelaire: a arte é sempre "negação da iniquidade".
Curiosamente, enquanto escrevia na década de 50 "Eros e Civilização", sua mulher, Sofhie, definhava de câncer. A arguta formulação de que o fascismo na Alemanha não é uma planta exótica da democracia liberal capitalista, mas sim alguma coisa latente e necessária ao "individualismo competitivo", deve ser levada a sério quando a divindade que se alevanta é o "price system": o preço do mercado auferido por um dinheiro cada vez mais falso.
Segundo Marcuse, o fascismo combina tecnocracia com ideologia irracionalista. O princípio da eficiência competitiva está tanto no discurso do Terceiro Reich quanto no léxico de um coronel "pefelê" que usa e abusa da palavra "competência". Eis esta pérola do velho Marcuse: "O homem médio dificilmente se importa com outro ser vivo com a mesma intensidade e persistência que ele mostra por seu automóvel".
O filho do Marcuse, Peter Marcuse, apresenta os textos inéditos do pai -agora editados no livro "Tecnologia, Guerra e Fascismo"- e põe fogo no rompimento definitivo de Marcuse com Adorno e Horkheimer, quando estes apoiaram os Estados Unidos na guerra contra o Vietnã. Marcuse ficou a favor do movimento estudantil, enquanto os professores do mundo fizeram o paparico acadêmico em cima do "rigor teórico" de Theodor Adorno.
A acusação de seu filho é barra-pesada, no sentido de tentar uma explicação sobre o atual menosprezo em relação ao pensamento revolucionário de Marcuse, sobretudo em sua correspondência mantida e, depois, rompida com Heidegger -que lhe deu aulas de filosofia. De resto, esse livro traça de Horkheimer um perfil de soba ou de patrão da Escola de Frankfurt, como se Horkheimer fosse o FHC do Cebrap, ainda que este não tenha parido de suas entranhas epistemológicas nenhum intelectual crítico como Marcuse.
Confesso aos caros leitores que, ao terminar a leitura desse livro estupendo, baixou em mim o receio de que o fascismo seja o espectro cultural e político do cotidiano, por meio de vários indícios na linguagem que indiferenciam governo de oposição. A começar do conceito de "bourgeois" emergir como "citoyen", hipostasiando a cidadania como motor da história, ou senão a idéia de que tudo o que não provém dos fatos não vale nada, resumida na atitude da "factualidade cínica", na qual tudo é medido em termos de eficiência, sucesso e eficácia, ou seja, a ideologia pérfida do neodarwinismo social.
O crítico de cinema Paulo Emílio Salles Gomes foi marcusiano quando denunciou o genocídio em curso hoje no Brasil -70% da população brasileira deveria sumir do mapa, não obstante a patota sociológica do "seminário de Marx" ter chegado ao Palácio do Planalto em 1994.



A OBRA

Tecnologia, Guerra e Fascismo - Coletânea de Artigos de Herbert Marcuse - Org. Douglas Kellner. Trad. Maria Cristina Vidal Borba. Ed. da Unesp (Praça da Sé, 108, CEP 01001-900, SP, tel. 0/xx/11/232-7171). 371 págs. R$ 35,00.



Gilberto Vasconcellos é professor de ciências sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG) e autor de "O Príncipe da Moeda" (Ed. Espaço e Tempo), entre outros.


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