São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2004

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ANJOS DO ARRABALDE

TONY KUSHNER DEFENDE QUE O TEATRO DEVE AGRADAR O PÚBLICO E FALA SOBRE A MINISSÉRIE "ANGELS IN AMERICA", QUE GANHOU NA SEMANA PASSADA O EMMY, PRINCIPAL PRÊMIO DA TV AMERICANA

da Redação

Gay, socialista e judeu, o norte-americano Tony Kushner remonta a uma linhagem de dramaturgos que trabalham a "fantasia realista". O exemplo mais famoso disso é "Angels in America" [Anjos na América], cuja versão para a TV, produzida pela HBO, ganhou no domingo passado o Emmy -principal premiação da TV dos Estados Unidos. A minissérie, que enfoca a vida dos homossexuais durante a explosão da Aids, nos anos 80, levou 11 prêmios -um recorde. Entre os troféus de "Angels in America", há quatro de atuação para seu elenco estelar (Al Pacino, Meryl Streep, Mary-Louise Parker e Jeffrey Wright), direção para Mike Nichols e roteiro para Tony Kushner, que converteu brilhantemente para a TV sua peça aclamada nos anos 90.
Grande marco de sua carreira, "Anjos na América" se apóia nos dois principais pilares que caracterizam o autor: o ativismo gay e o político. O texto é um ataque ao descaso da administração Reagan (1981-89) em relação à escalada da Aids, em meados da década de 80. Ao transpor sua crítica para o teatro, Kushner fez uso de um personagem real da era Reagan, Ray Cohn, ligado ao Departamento de Justiça. Cohn é um homossexual HIV positivo que exige uma provisão do então raro medicamento AZT em troca do silêncio sobre o escândalo Irã-Contras.
Na entrevista abaixo, Kushner responde a perguntas dos leitores do "New York Times" -de que o Mais! reproduz trechos-, sobre seu processo criativo, a relação entre criação e ativismo e sobre o binômio TV-teatro, que a minissérie "Anjos na América" colocou na ordem do dia.
 

Com o sucesso da produção de "Anjos na América" o sr. adquiriu novo interesse em escrever para a tela? Acredita que suas idéias teriam maior alcance e impacto se o fizesse?
Não acho que eu possa me preocupar com o alcance e o impacto de meu trabalho. Essas preocupações são para os produtores, na verdade.
Só consigo me preocupar com estar conseguindo ou não algo interessante, útil, verdadeiro. É bom ter escrito algo que milhões de pessoas viram -bom e um pouco estranho. Mas gosto de imaginar uma sala com pessoas, cerca de 200 a 800, dependendo da peça, e só essas pessoas, quando estou escrevendo. Sei falar para 800 pessoas ao mesmo tempo. Um milhão é demais.
Gosto de assistir filmes e televisão, e gosto do dinheiro que se pode ganhar trabalhando para eles, e estou até um pouco interessado no processo -embora um set de filmagem pareça um pouco demais com um canteiro de obras para o meu gosto: muitos homens mexendo com muitas máquinas.
Sou um autor de teatro. Gosto de ser o autor e responsável por cada palavra que o público ouve, gosto do peso disso, acho que me leva a fazer um bom trabalho. Gosto da liberdade de trabalhar de uma forma que, embora seja cara, não exige orçamentos do tamanho do PIB de pequenos países. Mas, depois de uma experiência incrível trabalhando com [o cineasta e diretor] Mike Nichols, sinto-me mais à vontade como roteirista e estou fazendo um novo roteiro de filme.

"Anjos na América" teria sido trabalhado em workshops diversas vezes antes de ficar pronta e o sr. teria feito revisões e mudanças substanciais com base no retorno que teve em cada etapa do jogo. Como faz revisões de seu trabalho e quais os benefícios e os problemas que workshops ou aulas podem trazer?
Escrevo minhas peças primeiro à mão, depois digito o manuscrito, modificando-o conforme avanço, por isso cada primeiro rascunho é na verdade um segundo rascunho. Depois geralmente mostro a peça para alguns amigos com os quais tenho um longo relacionamento de trabalho -a familiaridade me ajuda a avaliar suas reações, já que conheço antecipadamente, por nossa convivência, o que eles provavelmente vão entender direito e o que poderiam não entender. Se houver tempo, faço um terceiro rascunho com base na reação deles e em minha própria releitura do texto.
É sempre bom quando você pode deixar de escrever por algumas semanas, esfriar e voltar ao trabalho. Mas freqüentemente estou atrasado, terminando peças momentos antes do início dos ensaios; estou tentando me aperfeiçoar para terminar o trabalho antes do prazo, para ter um período de resfriamento para reavaliar.
Adoro reescrever nos ensaios, e é nos ensaios que produzo meu melhor trabalho, especialmente quando estou trabalhando com um diretor que me permite falar e trabalhar diretamente com os atores.
É difícil para a maioria dos diretores permitir isso, e é claro que alguns autores são ansiosos e peremptórios demais e, bem, loucos e não deveriam falar com os atores. Mas se você souber se comportar, quando está trabalhando em uma nova peça, é muito útil no processo de reescritura envolver-se na conversa entre diretor e ator. Você aprende a escutar as cenas, saber quando elas funcionam -envolvem, comovem, excitam, entretêm- ou não. Você também aprende a escutar o público, o som dele escutando, ou decidindo não escutar. O público lhe dirá muito sobre quando você está entediante, quando está confuso e quando se saiu bem.
O perigo de toda reescritura é que você pode estragar o que escreveu. Pode cortar algo que era muito mais importante do que você pensava, algo que na verdade sustentava toda a estrutura. Às vezes é possível recolocar o apoio no lugar, mas nem sempre; às vezes você não consegue entender o que aconteceu e tem à sua frente apenas um colapso.


A grande obra, em certo sentido, sempre tem a ver com curar o mundo, mudá-lo e compreendê-lo


As aulas de dramaturgia são boas para superar o terror de escrever, para conhecer outros autores e outras pessoas de teatro, para se começar. Mas não acredito muito em diplomas avançados de dramaturgia -acho que o treinamento de pós-graduação para atores de palco é necessário, mas não para os dramaturgos, que podem e talvez devessem aprender sua arte lendo cada peça que já foi escrita, vendo muitos espetáculos e se envolvendo na produção teatral, nos ensaios, como ator, gerente de palco, produtor ou assistente de direção; e, é claro, os dramaturgos aprendem escrevendo muito e encontrando atores para ler seu trabalho em voz alta. Sou totalmente contrário a estudantes que se formam em dramaturgia, atuação, cenografia ou direção, ou em qualquer uma das artes, exceto talvez dança e música instrumental (ambas exigem um treinamento rigoroso e precoce).
Diplomas de bacharel deveriam ser obtidos em artes e ciências liberais, e não em educação vocacional.

Sou estudante de teatro e li recentemente "Anjos na América". Estava me perguntando o que o anjo quis dizer com: "Começa a grande obra". O que é a grande obra?
O anjo diz isso e depois explica o que quis dizer. Não vou reexplicar, eu nunca explico minhas peças -e, se você ler o que ela diz a Prior na segunda metade de "Anjos", terá a resposta. Prior repete a fala dela no fim da segunda parte -é a última fala da peça. Novamente, acho que se você ler o que ele disse antes de pronunciar essa fala, entenderá a idéia. A cada momento na vida de todas as pessoas há um trabalho a ser feito, sempre há trabalho a fazer, alguns pequenos, alguns grandes.
A grande obra, em certo sentido, sempre tem a ver com curar o mundo, mudar o mundo e, como condição necessária para tanto, compreender o mundo. Você levanta toda manhã consciente de que é chamado para essa obra. Você não vai viver para vê-la concluída. Mas, se não puder ouvir seu chamado, não está ouvindo com atenção suficiente.

Como o sr. vê o papel do artista em um país -e em um mundo- cada vez mais dominado pela luta entre o fundamentalismo religioso e o racionalismo secular?
Não acho que os fundamentalistas sejam representantes especialmente bons da fé religiosa. Certamente os fundamentalistas não têm o monopólio da fé religiosa que eles parecem achar que têm. Sou um grande fã do secular e do racional, e acho que ambos são desesperadamente raros hoje em dia -o terrível espírito hegemônico desta era está encarnado em nosso presidente não-eleito, confuso, sanguinário, mesquinho, plutocrata, desalmado, teocrata-, mas não sei se somente o racionalismo secular se opõe ao fundamentalismo religioso. A fé viva e inteligente, a crença em um Deus genuinamente bondoso, compassivo e justo, se opõe às verdades assassinas e sem imaginação dos fundamentalistas de todas as denominações e credos.
E também devemos lembrar que os verdadeiros arquitetos do desastre no Iraque, os gênios mais ruidosos do pensamento de direita pelo menos publicamente se consideram racionalistas seculares -[a secretária de Segurança Nacional dos EUA Condoleeza] Rice não chamaria a si mesma de racionalista secular?
Neste mundo, o racionalismo secular pode ser usado como disfarce para todo tipo de trapaça, assim como o fundamentalismo é muitas vezes uma expressão de desespero, que emana da pobreza, do analfabetismo e de antigas histórias de opressão, exploração e terror -e isso é verdadeiro nos EUA assim como em outras partes do mundo. Portanto, talvez o papel do artista, ou um de seus papéis, seja misturar e confundir todas essas antinomias. O papel do artista em qualquer tempo e em qualquer condição é fazer arte. O papel do cidadão, artista ou não, é engajar-se no processo político.

Em que medida o sr. acredita que o teatro pode agir como força de mudança social?
Acho que uma obra de arte em qualquer meio pode ser útil para um movimento político, quer sua organização seja rígida, quer frouxa, que pretenda modificar algum aspecto da sociedade. Não existe o caso de uma obra de arte ser diretamente responsável por mudar o mundo. Somente o ativismo, a ação política direta, faz isso. Mas a arte pode ajudar a mudar as pessoas, que então decidem mudar suas próprias vidas, mudar seu bairro, sua comunidade, sua sociedade, o mundo.
Não acho que a arte por si só mude as pessoas, mas a consciência, a vida da mente, é uma força crítica de mudança, e a arte ajuda a moldar a consciência. Por exemplo, sempre senti, e tiro isso em parte de minha experiência fazendo peças e produções, e também de William Shakespeare e Bertolt Brecht, que assistir teatro ensina às pessoas uma maneira de ver o mundo com uma duplicidade de visão que é imensamente útil e até transformadora.
O público no teatro tem de lutar com a natureza dialética de ilusão e realidade -todas as peças, todos os eventos encenados exigem do público uma capacidade de acreditar e desacreditar ao mesmo tempo, de assistir com sofisticação e tolerância, e até mesmo apetite, pelo paradoxo. O teatro, que lida com uma ilusão atraente, mas não totalmente convincente, que não pode deixar de mostrar a atividade humana por trás da ilusão, é um grande modelo para a consciência crítica, para olhar o mundo ao mesmo tempo com paixão e com análise cética e fria. E, embora a arte eduque, ela nunca é suficiente como meio de instrução; a certa altura deve-se buscar uma narrativa mais confiável. A arte deveria visar um nível de complexidade e profundidade que espelhasse a complexidade e a profundidade da vida e, assim, que espelhasse a complexidade e a profundidade da política.
Quem vai ao teatro sério? Pessoas que têm curiosidade sobre a vida, sobre a ilusão e a realidade, pessoas com perguntas penetrantes em vez de convicções insossas, pessoas que buscam consolo para a perda e a injustiça, mas um consolo não na negação ou na amnésia, e sim em visões e sonhos ricos, às vezes dolorosos, possivelmente esclarecedores -na arte séria.

Suas peças são cheias de eventos aparentemente impossíveis e irrealizáveis. Por exemplo, em "Caroline, or Change" há uma cena em que um ônibus canta para a lua. Quando o sr. está escrevendo, tem certeza de que essas cenas vão funcionar ou precisa vê-las encenadas?
Ora, não acho que elas pareçam estranhas no papel. Acho que parecem divertidas, excitantes, interessantes, mágicas ou que o serão quando forem encenadas. Posso citar a direção de cena de uma de minhas peças: "Um som, como de um meteoro caindo, vem rasgando de muito acima da terra, projetando-se a uma velocidade incrível em direção ao quarto; a luz parece ser sugada para fora do quarto conforme o projétil se aproxima; quando o quarto atinge a escuridão, ouvimos um ruído de choque aterrorizante, como se alguma coisa imensa atingisse a terra; todo o prédio sacode e uma parte do teto do quarto, um monte de gesso, arame e fios, cai ao chão. Então, numa chuva de luz branca sobrenatural, estendendo grandes asas prateadas translúcidas, o anjo desce no quarto e flutua sobre a cama".
Espero que isso não soe ridículo. Espero que, quando um leitor ler isso, ele ou ela sintam, primeiramente, tremores e excitação; então eles poderiam perguntar, como um cenógrafo ou diretor deveria: "Uau! Como vamos fazer isso!?", "como vai ficar no palco?". Sei que esses eventos são meio impossíveis, mas sua impossibilidade é o que me faz saber que eles serão eficazes no palco. Eu adoro grandes ilusões no palco e acho terrível que nosso teatro tenha se intimidado em tentá-las.

Há regras rígidas a seguir na dramaturgia? Uma coisa pode voar, desde que faça dinheiro ou satisfaça um público?
Não há regras rígidas nem mesmo regras frouxas. A dramaturgia é como qualquer outra forma de arte do século 21. As regras foram esboçadas um século atrás. Mas há os antecedentes, há uma forma anterior. Há a tragédia, como foi definida pelo exemplo dos gregos. Há o drama épico, como definido pelo exemplo de Shakespeare, Schiller e Brecht.


Cada peça é ao mesmo tempo a coisa em si e uma proposta sobre a natureza do teatro


Existe a peça bem feita, o drama em verso, a farsa, o teatro musical e assim por diante. Mesmo os grandes experimentalistas, Artaud, Beckett, Foreman, Müller, LeCompte, Breuer, Akalaitis e Wilson, tornaram-se veneráveis, constituem uma tradição, oferecem antecedentes formais que podem ser imitados, usados como inspiração. E existem algumas teorias que valem a pena ser lidas, as de Aristóteles, Artaud, Meyerhold, Brecht. Mas, então, faça disso o que quiser -tudo é gosto, temperamento e época. E sempre foi o trabalho de qualquer artista pegar os elementos que encontra e fazer algumas alterações, tentar algumas melhorias. Cada peça é ao mesmo tempo a coisa em si e uma proposta sobre a natureza do teatro.
Satisfazer uma platéia é sempre importante. Nem todos os públicos são para todas as peças, e a relação entre o tamanho da platéia satisfeita e a qualidade de uma peça não é proporcional. Às vezes as coisas que voam realmente fazem dinheiro. Às vezes as coisas que voam não fazem dinheiro nenhum. E às vezes, com muita freqüência, os grandes fazedores de dinheiro têm meios de locomoção diferentes de asas -pernas, às vezes muitas pernas, e às vezes rastejam. Alguns dos maiores fazedores de dinheiro são totalmente inertes.

Como o sr. impede que a frustração e a raiva que sente de seus alvos políticos obscureçam seu processo criativo?
A verdade é dialética -quero dizer, contraditória. A verdade é fluida, e não simples. A verdade não é imutável, eterna ou histórica. Ela muda com o tempo. A capacidade de encontrar a verdade tem certa relação proporcional com a luta para encontrá-la e com o vigor e o rigor com que ela é interrogada, quando encontrada. Acho salutar perguntar a si mesmo repetidamente se aquilo em que você acredita é verdadeiro ou apenas prático, verdadeiro ou apenas confortável ou, pior, apenas lucrativo. Afinal, a verdade nunca pode ser totalmente assimilada, mas também não é totalmente impossível de compreender; vislumbres dela chegam aos corajosos, curiosos, diligentes, bondosos, generosos.
Tenho certeza de que a frustração e a raiva que sinto de meus "alvos" políticos toldam meu processo como escritor o tempo todo -e minha escrita. Meu trabalho como dramaturgo é, em parte, tentar entender os outros como eles mesmos se enxergam. Esse trabalho é igual, esteja eu escrevendo um personagem com o qual eu concorde ou discorde politicamente. Gosto de escrever personagens cujas vidas políticas me agridem, me perturbam -é um desafio entender essas pessoas. Alguns acham que eu fiz isso bem, de vez em quando, e alguns acham que fracassei. Algumas pessoas parecem achar que conseguirei compreender os personagens conservadores ou reacionários somente se eu mostrar algum sinal de finalmente concordar com eles ou pelo menos sugerir uma paridade entre seu conservadorismo e minha própria política progressista.
Mas não acho que compreender por que alguém apóia a guerra de George W. Bush no Iraque deveria me levar a concordar com a opinião dessa pessoa, ou mesmo respeitá-la. Quero dizer, não é um apelo para ser rude, mas às vezes as pessoas estão erradas, catastroficamente erradas, e poderiam ter evitado seus erros se tivessem se esforçado mais.
As pessoas raramente acreditam no absurdo; talvez apenas pessoas psicóticas acreditem em coisas absurdas. Mesmo em uma ideologia profundamente errada há verdades -ou pelo menos perspectivas- dignas de examinar. Se minhas opiniões políticas forem sólidas, elas sobreviverão aos choques com esses personagens e até serão reforçadas por eles.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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