São Paulo, domingo, 26 de outubro de 1997. |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice LIVROS Uma vida trepidante
CRISTOVÃO TEZZA
Essa tensa e louca relação que vai definindo a alma do personagem ao longo de uma narrativa vertiginosa, realiza-se com uma linguagem de uma simplicidade irresistível. A partir da situação inicial, o homem falando a um médico que não interfere, mas cuja presença é outra tensão que pontua o livro, Moacyr Scliar simula tecnicamente uma perfeita oralidade, o único registro da linguagem que seria capaz de despojar ainda mais o personagem, tirando-lhe qualquer ranço retórico, qualquer projeto de pose literária, qualquer sombra de "estilo". O que também será outra revelação: neste livro de Moacyr Scliar, a simplicidade é menos um estilo e muito mais a realização de uma ética, uma ética possível, aliás a grande sombra que parece atormentar o narrador ao longo de sua vida. Uma vida que corre, pela oralidade, como a paisagem vista pela janela de um trem veloz -princípio e fim que se completam numa estrutura narrativa de rara unidade. Uma vida insignificante -a chegada ao Brasil, a morte do pai que vendia gravatas com o toco do braço que perdeu, um pai saudoso do conde Alexei, cujas botas ele consertava, em seguida o trabalho numa loja, da qual se torna proprietário, depois um casamento insosso, um filho, dois ou três conhecidos, afinal a solidão de sempre e a UTI -e, no entanto, para o leitor, que vida trepidante! Atrás do balcão de sua nulidade, nosso herói imagina desvarios de alegria que se desdobram em castelos delirantes de uma outra vida, pontilhada tanto de aeromoças que o amam em bolhas plásticas em pleno céu quanto de um reencontro caloroso com um Noel Nutels que, nos sonhos, o reconheceria imediatamente mesmo anos depois. E o homem que conta vai promovendo também o sonho da comunhão universal, mental e geográfica, o sublime com o torpe, a confluência do índio com a civilização, o Xingu entendido como o umbigo do mundo, onde ele colocaria sua loja "A Majestade", realizando a seu modo o ideário do ídolo Noel. Uma trajetória puramente mental de picos hilariantes, como o major Azevedo, militar da repressão, silenciado por uma inscrição de banheiro sobre sua mulher, ou a militante Sarita, na cidade, conclamando os índios contra o imperialismo do homem branco, de acordo com a orientação ideológica da célula stalinista. Se, de um lado, o livro é brasileiríssimo pelas suas referências imediatas, de outro ele se inscreve, nas próprias palavras do narrador, no "ininterrupto fluxo da torrente espiritual que arrasta, como troncos ou como gravetos, todos os escritores, todos os leitores, todos aqueles que se atiram de ponta-cabeça no caudaloso rio do texto". Num afluente importante desse grande rio encontraremos a família literária de Scliar, agora num de seus mais inspirados momentos: "A imemorial culpa judaica, a culpa que nos acompanhava de país em país, de região em região, em nossa peregrinação milenar". Em seu romance, Scliar realiza com sutileza tanto o tema do "duplo" (que o escritor americano Philip Roth levou ao extremo em "Operação Shylock") quanto o da "culpa imemorial"; nesse território, o torturado personagem de Scliar fará, com os heróis de outro romancista americano, Bernard Malamud ("O Assistente"), uma companhia à altura. Numa palavra: "A Majestade do Xingu" é um belo romance. Cristovão Tezza é escritor, autor de "Trapo", "Uma Noite em Curitiba" (Rocco) e "A Suavidade do Vento" (Record), entre outros. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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