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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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ESCRITO AOS 27 ANOS, DIÁRIO DA AUTORA INGLESA TRAZ SETE ESBOÇOS DE TIPOS E SITUAÇÕES QUE PRENUNCIAM SEU ESTILO MADURO E ESCANCARAM PRECONCEITOS

Virginia Woolf secreta

Associated Press/Clive Coote/Paramount Pictures
A atriz Nicole Kidman como Virginia Woolf em cena do filme "As Horas" (2002), dirigido por Stephen Daldry


Samuel Titan Jr.
especial para a Folha

1909 não deve ter sido um ano memorável para Virginia Stephen. A jovem aspirante a escritora esfalfava-se com seu primeiro romance, que ainda lhe custaria algum trabalho -"The Voyage Out" é de 1915-, e teve um conto recusado pela "Cornhill Magazine". Aos 27 anos, saíra havia pouco de um noivado pouco promissor com Lytton Strachey e ainda não encontrara seu futuro marido, Leonard Woolf. Desde o casamento da irmã Vanessa com Quentin Bell, vira-se privada não só de sua companheira mais íntima como também do casarão de Bloomsbury onde as duas mocinhas haviam reinado desde a morte da mãe, em 1894. Morava com o irmão Adrian, com quem não tinha afinidade especial.
Data desse ano o breve diário recém-descoberto e publicado por David Bradshaw sob o título de "Carlyle's House and Other Sketches" (Hesperus Press, 52 págs., 4,99 libras), em volume que conta ainda com um prefácio da romancista Doris Lessing. Ao contrário dos diários posteriores, que transbordam de acontecimentos e idéias, impressões e impropérios registrados no calor da hora, este que agora vem a público é antes um caderno de esboços, sete no total, em que a jovem Virginia Woolf (1882-1941) tenta se adestrar na fixação de tipos e situações.

"Exercícios de dedilhado em prol de uma excelência futura", no dizer de Lessing. Vale para este o que a própria Woolf anotara num diário anterior, de 1903: assim como um artista preenche folhas inteiras com detalhes e fragmentos, "pernas, braços & narizes", ela "empunha a caneta para traçar qualquer forma que ande pela minha cabeça", num exercício para "o olho & a mão".
São peças muito curtas e, de modo geral, pouco trabalhadas. Por isso mesmo, a atmosfera de frustração daquele ano inglório transparece em quase todas. Woolf prodigaliza juízos rápidos e cortantes ("barato", "vulgar", "grosseiro"), sem se dar ao trabalho de conferir a suas personagens uma textura mais densa e complexa.
As mulheres se saem particularmente mal, da grande dama (lady Ottoline Morrell, protetora de jovens talentos como D.H. Lawrence e Bertrand Russell) à jovem intelectual "serpentina", passando pela "judia gorda" do fragmento "Judeus". Este último provavelmente renderá alguma celebridade escandalosa ao livrinho. O retrato não poderia ser mais degradante: a sra. Loeb estaria melhor "atrás de um balcão", dada que é a "lisonjear" e "adular"; além disso, pronuncia um lugar-comum atrás do outro e serve uma comida "nojenta", banhada em óleo. Não por acaso, esse é o mais ralo dos esboços. Por trás dos juízos depreciativos, adivinha-se um anti-semitismo de aristocrata, que vê no "judeu" tudo o que pode haver de mais crasso nas execráveis "classes médias". Afinal, estamos entre bloomsburianos, boêmios bem-nascidos em guerra com os "filisteus", vistam eles colarinho branco ou macacão de fábrica, e portanto estamos longe do racismo exterminador dos anos 30 (quando, aliás, Woolf escreverá um romance filo-semita, "The Years").
Mas não é o caso de procurar desculpas para Woolf, os termos que emprega são fortes demais para isso.
Os "sketches" mais interessantes e promissores são "Casa de Carlyle" e "Tribunal de Divórcios". As personagens têm mais sombras e texturas, têm algo mais daquele imponderável que Woolf se esforçaria a vida inteira por captar. A sra. Carlyle, de olhar zombeteiro, parece guardar reservas de patos, e a melancolia, sua paixão dominante, quando misturada ao humor, produz o olhar intrigante que a escritora registra. O clérigo em via de divórcio merece alguma simpatia, a despeito de toda sua santimônia; sua mulher, de índole histérica, pode ser a "menos convencional" dos dois, mas é também a mais injusta.
Ao contrário de seus vizinhos, esses textos contêm um início promissor de fabulação narrativa. Em ambos, a tarefa consiste em entrever a dinâmica de uma vida conjugal. Os Carlyle mantêm uma ligação quase exclusivamente intelectual: ele, "esguio e macilento", dedica-se o dia inteiro a seus estudos, ela cuida da casa e, no serão, fustiga as admiradoras do marido famoso. Os Whittingstal levam vida mais turbulenta, com boas doses de tirania, convencionalismo e nervos frágeis, para não falar da nota de sordidez sugerida pela srta. Lewis. Aliás, esta última arma uma triangulação que aponta, mais além do retrato, para um enredo propriamente dito. Finalmente, note-se a passagem com laivos de estilo indireto livre no final do quarto parágrafo, sugerindo algo do tom dos romances maduros.
Até há pouco, a imagem convencional de Virginia Woolf fazia pensar numa dama um tanto diáfana e frágil, a celebrar nuanças e matizes -máscara que agora é ameaçada pelo cenho franzido e o ar constipado de Nicole Kidman em "As Horas". Assim sendo, o diário de 1909, com tudo o que tem de inacabado ou meramente infeliz, vem bem a calhar. Em suas poucas páginas, vemos a jovem Virginia Woolf às voltas com sua vocação, suas limitações e seus preconceitos (mesmo os de classe), devotando-se com esforço e seriedade à literatura e, como ela mesma disse, fazendo-se uma "criada honesta" de seu ofício.

Onde encomendar
Livros em inglês podem ser encomendados, em SP, na livraria Cultura (tel. 0/xx/11/3170-4033) e, no RJ, na Leonardo da Vinci (tel. 0/ xx/21/ 2533-2237).


Samuel Titan Jr. é doutor em teoria literária e literatura comparada pela USP.


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