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Quanto vale um filme
Quatro lançamentos apontam o futuro do cinema no diálogo com as cinematografias nacionais e com as novas mídias
IRENE MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Lá pelos anos 20 do século passado, o cineasta russo Serguei Eisenstein foi desafiado a
escrever sobre algo que
não existia: a cinematografia
do cinema japonês.
O Japão, segundo ele, desenvolvera uma indústria de produção e distribuição de filmes,
mas os filmes não realizavam a
linguagem da montagem, marca indelével da cinematografia
do construtivismo russo.
A única saída era procurar no
teatro, nos grafismos das artes
visuais e nos ideogramas princípios da montagem inexistente no cinema. Aqueles foram
tempos de experimentação
com a linguagem das imagens
em movimento.
Daí nasceram conceitos e
aproximações com a ciência, a
literatura e as artes.
As cinematografias nacionais continuam na pauta das
discussões nestes tempos de
contatos interculturais diversificados. Contudo, a montagem
não é mais medida.
Em contato com meios de
comunicação, os cinemas dos
quatro continentes se aproximaram e aprenderam a falar
linguagens distintas: as do jornalismo, da televisão, da publicidade, das mídias digitais, da
música, das canções.
Num tempo de encontros e
desencontros entre formas culturais e contatos transnacionais, o desafio é a representação de temporalidades descontínuas e de experiências sensoriais para além do movimento.
O cinema se define, cada vez
mais, como produção audiovisual, e as cinematografias nacionais, como realizações multiculturais.
Muito se tem dito sobre as
transformações dos processos
audiovisuais e as experiências
transnacionais. Nunca se tornou tão urgente retomar e reavaliar conceitos.
Programas de TV, blogs, encontros comunitários e acadêmicos, livros, artigos jornalísticos, cada um a seu modo, se
tornaram territórios desse realinhamento conceitual. É possível traçar algumas linhas desse debate a partir de quatro livros recém-publicados.
Reinvenções
"Cinema Mundial Contemporâneo", de Mauro Baptista e
Fernando Mascarello, reúne
artigos que desenham um mapa da produção e circulação de
filmes na América Latina, na
Europa, na África e na Ásia.
Se, por um lado, há a resistência às diferentes mortes do
cinema, mediante a "audiovisualidade" e a transnacionalização da produção, por outro
há a necessidade de "reinventar" o conceito de cinema nacional: cinema como formador
de cultura.
Esse é o passaporte para o
contato com filmografias diversificadas, mas comprometidas
com a criação de traços de identidade, ainda que seja à custa de
parcerias transnacionais.
Assim são construídas narrativas que mais parecem crônicas da atualidade em diferentes
escalas das vidas pública e privada. Não basta, porém, a linguagem do jornalismo. Sem recursos audiovisuais de tecnologias digitais portáteis, não seriam possíveis os flagrantes sobre feridas temáticas do contexto cada vez mais desigual.
O próprio modo de fazer cinema passa a ser interrogado,
como se pode ler nos comentários a uma farta variedade de
filmes. O robusto volume de
Fernão Pessoa Ramos, "Mas
Afinal... O Que É Mesmo Documentário?", arrisca uma revisão mais funda sobre as narrativas contemporâneas, que colocaram em pânico os limites
entre gêneros.
Sua resposta ao embate entre
documentário e ficção é ensaiada ao longo de 448 páginas. Ao
definir seu livro como um ensaio sobre um gênero ensaístico, Ramos não só elabora hipóteses como interroga premissas
de modo a fixar bases de uma
teoria do documentário.
Munido de conhecimentos
sobre a história e teorias do cinema, percorre a filmografia de
todos os tempos, dedicando um
espaço bem iluminado aos filmes brasileiros e ao diálogo
com o jornalismo, a TV, a publicidade, a música e a videoarte,
sem dispensar o exame de controvérsias conceituais.
Postura, aliás, bem diferenciada de outro título que merece ser lido em paralelo: "Nem
Tudo É Verdade!", de Luiz Carlos Lucena, que vê documentários brasileiros e bolivianos a
partir de uma "verdade documental", orientando-se pelas
rotas dadas pelo jornalismo impresso em suas manchetes e
críticas.
Vale observar que a necessidade de revisão de conceitos
como pressuposto da construção de uma teoria crítica, no caso de um gênero, não é uma
prática comum entre analistas.
O contato com os meios de
comunicação, com a música,
com as mídias digitais colocou
na berlinda categorias consolidadas. Nisso parece residir o
aspecto mais inquietante e desafiador do argumento central
de Ramos: o conceito de documentário não circunscrito à
clássica noção de gênero, mas
conjugado com a idéia de formato, fundamental para explorar a noção de imagem-câmera
e seus derivados.
É pela imagem-câmera que
questiona: documentário ou
ficção? Mentira ou verdade?
Ética ou manipulação? Notícia
ou reportagem? Televisão ou
cinema?
Em vez de resposta, explora a
noção de documentário como
ensaio a construir asserções sobre o mundo. Evocação direta a
Dziga Vertov e Jean-Luc Godard, que ocupam, assim, lugar
de honra na formulação do
conceito.
Contexto cultural
Enquanto o documentário
configura um território de
fronteiras, a documentação segue direção contrária.
O volume "Estado e Cinema
no Brasil", de Anita Simis, agora em reedição, mostra quanto
os contatos interculturais,
transnacionais e transgêneros
estão presentes na pesquisa
historiográfica.
A história da produção de filmes em circulação no mercado
segundo as leis de distribuição,
de exibição e mediante o gosto
do público apresenta a economia do cinema no contexto de
sua ecologia (lembrando Paulo
Emílio Salles Gomes).
Quer dizer, o cinema é focalizado em seu ambiente cultural,
em suas instituições políticas,
associações de produtores, entidades corporativas, empenhados com a invenção, a educação, a criação na linguagem.
Uma história do cinema contada na ambiência das invenções técnicas: do cinerama ao
cinemascope, da matéria-prima fotoquímica e da projeção
elétrica às videocâmeras, das fitas virgens óptico-sonoras à recodificação digital, dos projetos
nacionais às ambiciosas parcerias transnacionais.
IRENE MACHADO é professora na Escola de Comunicações e Artes da USP e autora de "O Filme
Que Saussure Não Viu" (ed. Horizonte).
CINEMA MUNDIAL CONTEMPORÂNEO
Organização: Mauro Baptista e
Fernando Mascarello
Editora: Papirus (tel. 0/xx/19/3272-4500)
Quanto: R$ 54,90 (352 págs.)
MAS AFINAL... O QUE É MESMO
DOCUMENTÁRIO?
Autor: Fernão Pessoa Ramos
Editora: Senac (tel. 0/xx/11/2187-4450)
Quanto: R$ 65 (448 págs.)
NEM TUDO É VERDADE!
Autor: Luiz Carlos Lucena
Editora: Ativa (tel. 0/xx/11/3259-0809)
Quanto: R$ 28 (172 págs.)
ESTADO E CINEMA NO BRASIL
Autora: Anita Simis
Editora: Annablume (tel. 0/xx/11/
3031-1754)
Quanto: R$ 40 (312 págs.)
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