São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+Livros

Quanto vale um filme

Quatro lançamentos apontam o futuro do cinema no diálogo com as cinematografias nacionais e com as novas mídias

IRENE MACHADO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Lá pelos anos 20 do século passado, o cineasta russo Serguei Eisenstein foi desafiado a escrever sobre algo que não existia: a cinematografia do cinema japonês.
O Japão, segundo ele, desenvolvera uma indústria de produção e distribuição de filmes, mas os filmes não realizavam a linguagem da montagem, marca indelével da cinematografia do construtivismo russo.
A única saída era procurar no teatro, nos grafismos das artes visuais e nos ideogramas princípios da montagem inexistente no cinema. Aqueles foram tempos de experimentação com a linguagem das imagens em movimento.
Daí nasceram conceitos e aproximações com a ciência, a literatura e as artes.
As cinematografias nacionais continuam na pauta das discussões nestes tempos de contatos interculturais diversificados. Contudo, a montagem não é mais medida.
Em contato com meios de comunicação, os cinemas dos quatro continentes se aproximaram e aprenderam a falar linguagens distintas: as do jornalismo, da televisão, da publicidade, das mídias digitais, da música, das canções.
Num tempo de encontros e desencontros entre formas culturais e contatos transnacionais, o desafio é a representação de temporalidades descontínuas e de experiências sensoriais para além do movimento.
O cinema se define, cada vez mais, como produção audiovisual, e as cinematografias nacionais, como realizações multiculturais.
Muito se tem dito sobre as transformações dos processos audiovisuais e as experiências transnacionais. Nunca se tornou tão urgente retomar e reavaliar conceitos.
Programas de TV, blogs, encontros comunitários e acadêmicos, livros, artigos jornalísticos, cada um a seu modo, se tornaram territórios desse realinhamento conceitual. É possível traçar algumas linhas desse debate a partir de quatro livros recém-publicados.

Reinvenções
"Cinema Mundial Contemporâneo", de Mauro Baptista e Fernando Mascarello, reúne artigos que desenham um mapa da produção e circulação de filmes na América Latina, na Europa, na África e na Ásia.
Se, por um lado, há a resistência às diferentes mortes do cinema, mediante a "audiovisualidade" e a transnacionalização da produção, por outro há a necessidade de "reinventar" o conceito de cinema nacional: cinema como formador de cultura.
Esse é o passaporte para o contato com filmografias diversificadas, mas comprometidas com a criação de traços de identidade, ainda que seja à custa de parcerias transnacionais.
Assim são construídas narrativas que mais parecem crônicas da atualidade em diferentes escalas das vidas pública e privada. Não basta, porém, a linguagem do jornalismo. Sem recursos audiovisuais de tecnologias digitais portáteis, não seriam possíveis os flagrantes sobre feridas temáticas do contexto cada vez mais desigual.
O próprio modo de fazer cinema passa a ser interrogado, como se pode ler nos comentários a uma farta variedade de filmes. O robusto volume de Fernão Pessoa Ramos, "Mas Afinal... O Que É Mesmo Documentário?", arrisca uma revisão mais funda sobre as narrativas contemporâneas, que colocaram em pânico os limites entre gêneros.
Sua resposta ao embate entre documentário e ficção é ensaiada ao longo de 448 páginas. Ao definir seu livro como um ensaio sobre um gênero ensaístico, Ramos não só elabora hipóteses como interroga premissas de modo a fixar bases de uma teoria do documentário.
Munido de conhecimentos sobre a história e teorias do cinema, percorre a filmografia de todos os tempos, dedicando um espaço bem iluminado aos filmes brasileiros e ao diálogo com o jornalismo, a TV, a publicidade, a música e a videoarte, sem dispensar o exame de controvérsias conceituais.
Postura, aliás, bem diferenciada de outro título que merece ser lido em paralelo: "Nem Tudo É Verdade!", de Luiz Carlos Lucena, que vê documentários brasileiros e bolivianos a partir de uma "verdade documental", orientando-se pelas rotas dadas pelo jornalismo impresso em suas manchetes e críticas.
Vale observar que a necessidade de revisão de conceitos como pressuposto da construção de uma teoria crítica, no caso de um gênero, não é uma prática comum entre analistas.
O contato com os meios de comunicação, com a música, com as mídias digitais colocou na berlinda categorias consolidadas. Nisso parece residir o aspecto mais inquietante e desafiador do argumento central de Ramos: o conceito de documentário não circunscrito à clássica noção de gênero, mas conjugado com a idéia de formato, fundamental para explorar a noção de imagem-câmera e seus derivados.
É pela imagem-câmera que questiona: documentário ou ficção? Mentira ou verdade? Ética ou manipulação? Notícia ou reportagem? Televisão ou cinema?
Em vez de resposta, explora a noção de documentário como ensaio a construir asserções sobre o mundo. Evocação direta a Dziga Vertov e Jean-Luc Godard, que ocupam, assim, lugar de honra na formulação do conceito.

Contexto cultural
Enquanto o documentário configura um território de fronteiras, a documentação segue direção contrária.
O volume "Estado e Cinema no Brasil", de Anita Simis, agora em reedição, mostra quanto os contatos interculturais, transnacionais e transgêneros estão presentes na pesquisa historiográfica.
A história da produção de filmes em circulação no mercado segundo as leis de distribuição, de exibição e mediante o gosto do público apresenta a economia do cinema no contexto de sua ecologia (lembrando Paulo Emílio Salles Gomes).
Quer dizer, o cinema é focalizado em seu ambiente cultural, em suas instituições políticas, associações de produtores, entidades corporativas, empenhados com a invenção, a educação, a criação na linguagem.
Uma história do cinema contada na ambiência das invenções técnicas: do cinerama ao cinemascope, da matéria-prima fotoquímica e da projeção elétrica às videocâmeras, das fitas virgens óptico-sonoras à recodificação digital, dos projetos nacionais às ambiciosas parcerias transnacionais.


IRENE MACHADO é professora na Escola de Comunicações e Artes da USP e autora de "O Filme Que Saussure Não Viu" (ed. Horizonte).

CINEMA MUNDIAL CONTEMPORÂNEO
Organização: Mauro Baptista e Fernando Mascarello
Editora: Papirus (tel. 0/xx/19/3272-4500)
Quanto: R$ 54,90 (352 págs.)

MAS AFINAL... O QUE É MESMO DOCUMENTÁRIO?
Autor: Fernão Pessoa Ramos
Editora: Senac (tel. 0/xx/11/2187-4450)
Quanto: R$ 65 (448 págs.)

NEM TUDO É VERDADE!
Autor: Luiz Carlos Lucena
Editora: Ativa (tel. 0/xx/11/3259-0809)
Quanto: R$ 28 (172 págs.)

ESTADO E CINEMA NO BRASIL
Autora: Anita Simis
Editora: Annablume (tel. 0/xx/11/ 3031-1754)
Quanto: R$ 40 (312 págs.)



Texto Anterior: Leia trechos de "Dia de Sofrimento"
Próximo Texto: +Livros: Os braços fortes da fé
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.