São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2000

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Enterro do autor de "O Retrato de Dorian Gray" contou com mais flores do que pessoas
A morte anônima

Gentil de Faria
especial para a Folha

Aos dez minutos para as 14h do dia 30 de novembro de 1900, uma sexta-feira, morria de meningite encefálica, após sofrimento de quase dois meses, o escritor irlandês Oscar Wilde, nascido em Dublin em 1854. O seu fim ocorreu num quarto precário do humilde Hôtel d'Alsace, situado no número 13 da rue des Beaux Arts, no bairro de Saint-German-des-Prés, em Paris. Wilde ali se hospedava sob o pseudônimo de Sebastian Melmoth, numa inútil tentativa de esconder a verdadeira identidade, enxovalhada após o escandaloso processo a que fora submetido no tribunal inglês. O funeral só começou na segunda-feira, saindo o corpo do hotel para a igreja próxima, onde uma porta lateral foi aberta para a cerimônia religiosa, que contou com mais flores, muitas enviadas anonimamente, do que pessoas. O enterro, classificado por um dos presentes como de sexta classe, ocorreu no obscuro cemitério Bagneux, na periferia de Paris. Não mais do que 14 pessoas presenciaram a descida do ordinário caixão. Ali permaneceu o corpo até 1909, quando foi trasladado para o famoso Père Lachaise. Hoje, ostentando uma controvertida escultura de Jacob Epstein, o túmulo é uma das atrações turísticas desse cemitério das grandes celebridades.

Morte cara
Mesmo sob constante dor, aliviada momentaneamente por injeções de morfina, Wilde não perdia o humor dos bons tempos. Zombava da própria desgraça e não deixou o hábito de tomar absinto, sua bebida favorita. Declarado oficialmente falido e contando apenas com a bondade de poucos amigos, ainda provocava neles ruidosas gargalhadas. "Não devo sobreviver ao século", dizia, pressentindo a aproximação da morte, "os ingleses não suportariam tal acontecimento". Como precisava que suas despesas fossem pagas pelos amigos, se divertia dizendo que estava morrendo acima de suas posses.
A morte anônima, solitária e longe da família foi o final trágico de uma carreira brilhante, destruída pela rígida condenação por "ato de indecência grave", punido com a pena de dois anos de prisão. O nome Wilde passou a ser considerado maldito e se tornou o símbolo emblemático do amor homossexual.
Envergonhada e aconselhada por amigos, a mulher de Wilde mudou o sobrenome dos dois filhos para Holland, gesto mantido até os nossos dias no nome do jovem bisneto Lucian Holland, cujo pai, Merlin Holland, neto de Wilde e filho de Vyvyan Holland, declarou recentemente que a menção ao nome Wilde ainda causa desconforto em alguns círculos da sociedade britânica. Todas essas agruras foram insuficientes para apagar o nome de Oscar Wilde das literaturas inglesa e universal. Ao contrário, à medida que o tempo passa, suas obras ganham novas legiões de leitores no mundo inteiro. Sua desgraça pessoal, que ele próprio ajudou a arquitetar, tem aguçado o interesse das novas gerações por sua obra, sobretudo os contos, o teatro e o único romance que escreveu, "O Retrato de Dorian Gray". O tempo consagrou duas reputações diferentes a Wilde. Na Inglaterra, por muito tempo, ele foi considerado um escritor menor, "second-rate", até vir a conquistar um lugar definitivo entre os ingleses como o autor de "A Balada do Cárcere de Reading", mas principalmente pela peça "The Importance of Being Earnest" (traduzida no Brasil, por Guilherme de Almeida, com o título de "A Importância de Ser Prudente"), sempre enaltecida em termos superlativos como a melhor comédia da língua inglesa. O próprio Wilde gostava dessa peça, cujo sucesso ele não chegou a desfrutar, pois pouco tempo depois da estréia ele foi cumprir a pena de prisão, com trabalhos forçados. O texto é magistralmente construído, cheio de ironias, paradoxos e jogos de artificialismo verbal. As personagens pertencem à classe alta, não trabalham, comem o tempo todo e conversam sobre futilidades. "É uma comédia trivial para gente séria", classificou-a seu autor. Sem modéstia e para chocar o interlocutor, ele elogiava a própria criação artística: "O primeiro ato é engenhoso; o segundo, bonito, e o terceiro, abominavelmente inteligente". Fora do mundo de língua inglesa, a peça não obteve a mesma consagração de público e crítica. O brilho dos diálogos acaba se perdendo nas traduções, a começar pelo próprio título. No Brasil, por exemplo, muitos ainda se referem a ela com o nome disparatado de "A Importância de Se Chamar Ernesto", seguindo também a tradução em espanhol "La Importancia de Llamarse Ernesto". O francês, traduzido por "De l'Importance du Sérieux", também não encontrou uma solução feliz para o trocadilho contido em "earnest", que contempla o duplo sentido de um nome próprio -Ernest- com o adjetivo "earnest" (sincero, grave, sério, formal, determinado). O poeta brasileiro conseguiu melhor resultado. "Prudente" condensa em si um nome próprio e um adjetivo. Se os anglófonos preferem com fundadas razões a comédia, o resto do mundo optou pelos contos e sobretudo pelo romance "O Retrato de Dorian Gray", torrencialmente traduzido em dezenas de línguas, fato que espanta e faz sorrir os ingleses. O ruidoso processo muito contribuiu para a repercussão da obra fora da Inglaterra. Os leitores ficaram ávidos para conhecer a chamada "moral secreta" da personagem principal, por vezes interpretada como sendo Alfred Douglas, o amigo fatal do escritor. A fascinante beleza do rapaz ("maravilhosamente belo, com lábios rubros finamente traçados, olhos francos e azuis e cabeleira crespa e loura") e a moral representada por um passado misterioso, com sugestões sussurradas e reticentes, aguçaram a imaginação dos jovens leitores. Membro ativo dos melhores salões londrinos, Dorian saía à noite para frequentar os lugares sórdidos da "low class". Esse intenso jogo duplo, representado pela personagem e seu retrato na parede, sugere uma sutil atmosfera de homossexualismo, obviamente sempre sugerida e não de todo explicitada. Essa "terrível moral secreta" fará do livro a grande sensação nas literaturas estrangeiras. Em carta ao editor da "Saint James Gazette", o autor reconhece a existência de "uma moral que o homem atacado de comichão não será nunca capaz de descobrir, mas que aparecerá claramente a todos os que tenham inteligência sã".

O mais sensacional da Terra
No Brasil, o romance foi primeiramente traduzido por João do Rio, o wildiano mais entusiasta entre os brasileiros. No prefácio de sua tradução, publicada em jornais, mas reunida postumamente em livro pela Garnier em 1923, ele considera a obra "o livro mais sensacional da Terra", num evidente exagero de discípulo embevecido pelo mestre. No apogeu da belle époque carioca, os leitores, na maioria homens e jovens, compravam o romance que era vendido nos fundos das livrarias e o escondiam sorrateiramente debaixo do braço, como se tivessem adquirido um produto proibido e imoral.
Assim, a vasta obra de Wilde conseguiu, por caminhos tortuosos, conquistar o público ledor do mundo inteiro. Se o anglófono prefere o Wilde artífice da comédia e o poeta da emocionante balada, o resto do mundo optou pelo romancista multicolorido e o cativante contador de histórias, como nos contos "O Príncipe Feliz" e "O Rouxinol e a Rosa", que até hoje encantam o público juvenil. Mas há ainda um outro Wilde muito pouco conhecido a ser revelado: o epistológrafo. Ele era também um grande escritor de cartas. A publicação da correspondência completa está sendo anunciada pela editora Henry Holt & Company, de Nova York, em lançamento previsto para dezembro, num volume com cerca de 1.400 páginas.
Em 1962, o mais importante pesquisador de Oscar Wilde, sir Rupert Hart-Davis, morto no ano passado, aos 92 anos, publicou sua monumental e há muito esgotada "Letters of Oscar Wilde", após 40 anos de pesquisa. Hart-Davis foi uma das principais fontes de pesquisa para Richard Ellmann escrever a muito apreciada biografia do escritor, para muitos considerada como "definitiva", embora o próprio Douglas dissesse que, em matéria de Wilde, o assunto nunca estará esgotado.
A publicação anunciada deve incluir o incansável trabalho de Hart-Davis e as contribuições do filho e do neto de Wilde, que conseguiram textos que ainda estavam em mãos de particulares. A atenção do público estará voltada para as cartas endereçadas a Alfred Douglas. O envolvimento amoroso de um homem casado e famoso com um jovem bonito da aristocracia inglesa está magnificamente retratado nas belas cartas que o escritor endereçou ao "menino de cabelos de mel".
As cartas mostram um escritor na plenitude de sua glória e forma, apaixonado e sofrendo por um amor voluntarioso e perverso. Ambos se amavam com muita fúria e momentos de ódio e incompreensão. Nisso, o belo Douglas, mais experiente na homossexualidade, arrastava o escritor para experiências menos ordinárias, que culminaram no maior escândalo sexual já julgado por um tribunal nos tempos vitorianos.
Talvez a mais longa carta já escrita, quase cem páginas impressas, o texto elaborado na prisão por Wilde sob o impacto do abandono e da injustiça ficou conhecido como "De Profundis", na denominação dada por Robert Ross na primeira edição expurgada de 1905. Sempre publicada com muitas passagens omitidas, sua edição integral e definitiva só ocorreu com o trabalho de Hart-Davis, em 1962. As cartas de Wilde foram disputadas nos vários leilões em que elas foram postas à venda.
Uma boa parte delas já foi publicada pelos seus destinatários. Mas as expectativas maiores recaem sobre aquelas endereçadas a Alfred Douglas. Alguns desses textos, como os dos quais saíram os trechos abaixo, foram lidos nas sessões do julgamento para assombro da platéia e horror do magistrado que presidia o tribunal. Nelas se pode constatar a atitude de um grande escritor escrevendo cartas de amor a um rapaz que muito se aproveitou dessa amizade. Ambos nutriam grande interesse pelo outro. Wilde sempre desejou estar junto da aristocracia, e Douglas, que aspirava ser poeta, se vangloriava da amizade com o escritor mais afamado dos círculos londrinos.


Gentil de Faria é professor titular de literatura inglesa e teoria da literatura comparada na Unesp (Universidade Estadual Paulista). É autor, entre outros, de "A Presença de Oscar Wilde na Belle Époque Literária Brasileira" (Pannartz).


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