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Uma vida distorcida
Poeta menor, Alfred Douglas,
o amante de Wilde,
passou a perseguir
homossexuai s e judeus
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Mario Sergio Conti
da Reportagem Local
Com raízes fincadas na Escócia do século 11, a
família Douglas atravessou os anos como um
trem fantasma. Entre os seus membros houve
suicidas, bastardos, loucos, idiotas e tarados.
John Sholto Douglas, nono marquês de Queensberry, é
uma nota de pé de página na história dos esportes: com
24 anos, ele mudou as regras do boxe, criando normas
que perduram até hoje, como a da divisão dos lutadores
em categorias segundo o seu peso. O terceiro filho do
marquês de Queensberry, lorde Alfred Bruce Douglas, é
outra nota de pé de página, só que na história da poesia
inglesa. Escreveu o verso que ainda designa o homossexualismo: "O amor que não ousa dizer seu nome".
Difícil dizer quem era pior, se o marquês ou o filho.
Ambos eram hipócritas e destemperados, mentirosos e
manipuladores, covardes e egocêntricos, litigantes e difamadores compulsivos. Estariam esquecidos se não se
odiassem com paixão, pois esse ódio recíproco foi decisivo na destruição de Oscar Wilde.
Alfred Douglas tinha 21 anos, e Wilde, 37 quando se
conheceram, em 1891. Com cabelos loiros e cacheados,
tinha feições femininas, gostava de esportes, era inquieto, arruaceiro e temperamental. Conhecido como Bosie
-corruptela de "Boysie" (menininho), seu apelido em
família-, ele editou revistas literárias de propaganda
homossexual em Oxford, onde era tido como o mais
notório defensor da "causa".
Cinco anos antes, em 1886, Oscar Wilde tinha tido o
segundo filho, Vyvyan (queria ter uma filha e deu ao bebê um nome andrógino), e deixara de ter relações sexuais com a mulher, Constance. Tornou-se homossexual. Para justificar a castidade matrimonial, alegou que
voltara a ter os sintomas da sífilis que contraíra na juventude. Lavava a boca depois de se forçar a beijar
Constance.
Wilde era um escritor respeitado e um dos artistas
mais populares da Inglaterra. Deu de presente um
exemplar autografado de "O Retrato de Dorian Gray"
(1891) a Bosie, que já o havia havia lido nove vezes. Cortejou-o sem sucesso durante meses. No início de 1892,
eles jantaram juntos em Londres, no Savoy, assistiram a
uma peça e cearam no Lyric Club. Às 2h da manhã, foram para a casa do escritor, onde não havia ninguém.
Mais de 30 anos depois, Bosie lembrou o encontro:
"Nunca houve sodomia entre nós, não se pensou nem
se sonhou com isso. Wilde tratou-me como um garoto
mais velho trata um mais novo na escola e acrescentou
o que era novo para mim e não era (pelo que sei) conhecido ou praticado pelos meus contemporâneos: ele me
chupou".
Sexualmente, o caso foi breve, como escreveu Bosie
na sua "Autobiografia": "Por mais que estivesse fascinado por Wilde e por muito tempo o tenha adorado e
estado louco por ele, nunca gostei dessa parte do negócio. Era algo absolutamente contrário aos meus instintos, todos voltados para a juventude, a beleza e a maciez.
Depois de um tempo ele se deu conta de que eu não gostava nem um pouco disso e só concordava em fazê-lo
para agradá-lo, e logo cortamos tudo. À exceção de Wilde nunca em minha vida tive uma relação imoral com
um homem mais velho do que eu".
Wilde e Bosie comportavam-se em público como namorados e usufruíam em privado de adolescentes de 17
anos, aos quais pagavam pelos serviços. Mais que escandalosas, suas atitudes eram ilegais na Inglaterra vitoriana: em 1885, a pederastia se tornara crime.
A relação deles era tumultuada. À menor contrariedade, Bosie explodia. Tinha chiliques e gritava com o namorado, saía batendo a porta e dizendo que nunca mais
voltaria. Mas sempre voltava, no mais das vezes para
pedir dinheiro. Péssimo aluno, não conseguira se graduar, não tinha emprego e vivia em redor de Wilde. Numa ocasião, Bosie deixou que Constance entrasse no
seu quarto no hotel Savoy, conjugado com o de Wilde, e
visse que havia dois travesseiros na cama de casal. Ela
pediu que o marido voltasse para casa. Ele respondeu
com uma canhestra tentativa de fazer graça: disse que
fazia tanto tempo que não ia para casa que nem lembrava o número dela.
Frígido e impotente
O marquês de Queensberry
pressionou para que o filho se afastasse do escritor. Cortou-lhe a mesada, ameaçou fazer cena quando o encontrasse com Wilde e enviou-lhe dezenas de cartas ofensivas. Na mesma época, o segundo casamento do marquês foi anulado: sua noiva atestou que ele era "frígido",
"impotente" e tinha "má-formação genital".
Queensberry foi à estréia de "A Importância de Ser
Prudente" para tumultuar a encenação. Impedido de
entrar, deixou para Wilde um buquê de tulipas e cenouras fálicas. Bosie instigava Wilde a processar o pai. Finalmente, o marquês enviou um cartão para Wilde no
qual escreveu de modo errado a ofensa: "Somdomita"
(sic). O escritor decidiu processá-lo.
O julgamento foi um show, coberto avidamente pela
imprensa sensacionalista. Wilde estava no auge da fama. Vinha de estrear duas de suas obras-primas, as peças "Um Marido Ideal" e "A Importância de Ser Prudente" (1895) . Orador espirituoso, saiu-se bem quando
o questionaram sobre arte e cultura. Saiu-se mal quando explicou que não beijara um determinado jovem
porque ele era feio.
O marquês foi absolvido. Seus advogados encaminharam à Justiça toda a documentação que haviam
conseguido contra Wilde. Dela constavam depoimentos de jovens dizendo que haviam mantido relações sexuais com o escritor. A Justiça abriu um processo contra o escritor. Wilde se recusou a viajar para a França,
onde não poderia ser alcançado pela Justiça inglesa. Foi
condenado a dois anos de trabalhos forçados. Bosie fugiu do país para não ter que testemunhar. Prometeu cobrir os custos do processo de Wilde, mas não o fez. Para
pagá-los, o escritor teve seus bens arrestados e vendidos
em leilão.
Wilde escreveu na prisão uma longa carta a Bosie, publicada postumamente com o título de "De Profundis".
"Nossa desgraçada e lamentabilíssima amizade acabou
para mim na ruína e na vergonha pública", registrou
Wilde na carta, seu único escrito sem humor e verve.
Bosie é nela apresentado como um poeta medíocre, garoto mimado e belicoso, carente e egocêntrico, indiferente ao sofrimento alheio.
Bosie e Wilde voltaram a se encontrar, na França e na
Itália. Reconciliaram-se, discutiram por dinheiro, brigaram, mantiveram-se à distância. Wilde viveu na penúria, nunca voltou à Inglaterra, jamais reviu os filhos e
Constance. Não conseguiu escrever nada que estivesse à
altura do que fizera antes, salvo "A Balada do Cárcere de
Reading" (1898), poema cujo verso mais conhecido é
"todos os homens matam aquilo que amam".
Queensberry aceitou reconciliar-se com o filho. Abraçaram-se em lágrimas. O pai chamou Bosie de "meu
pobre menino encantador" e prometeu pagar-lhe a mesada. Uma semana depois, voltou à forma habitual.
Ele enviou uma carta ao filho dizendo que só lhe
mandaria dinheiro se soubesse a exata natureza
de sua relação com "a besta Wilde". Bosie respondeu recusando a mesada. Ao morrer, em janeiro
de 1900, o marquês deixou-lhe de herança uma
soma alta, 15 mil libras. Numa carta, Wilde conta
que encontrou Bosie em Paris logo depois do enterro do pai e ele estava "de luto profundo e no
maior ânimo".
Bosie dedicou o resto da vida a provar, involuntariamente, que Wilde estava certo quando o chamou em "De Profundis" de "monstro", de produto de uma linhagem "louca" e "ruim". Converteu-se ao catolicismo e abjurou a homossexualidade.
Viajou para os Estados Unidos com o objetivo de
"casar por dinheiro com uma moça americana
que o tivesse em superabundância, e ela casaria
comigo porque eu tinha um título e um nome histórico e porque poderia facilmente mostrar a ela, e
a quem quer que fosse, que, com muito dinheiro,
não haveria a menor dificuldade em voltar ao círculo
social do qual havia sido parcialmente excluído".
O objetivo não foi atingido. Bosie voltou para a Inglaterra e namorou com uma poetastra que havia conhecido pouco antes, Olive Custance. Parecida com um menino, Olive tinha tendências lésbicas. "Por que você não
se veste de menino e vem comigo?", perguntou-lhe Bosie pouco antes de embarcar para os EUA. Eles se casaram em 1902 e tiveram um filho, Raymond, que viveu a
maior parte da vida em hospitais psiquiátricos. Bosie se
desentendeu com o sogro, com quem veio a travar uma
penosa batalha judicial pela guarda de Raymond. Olive
o traía abertamente. Divorciaram-se após dez anos.
Com o zelo de um recém-convertido, tornou-se um
campeão na perseguição aos homossexuais. Em 1918
participou da montagem de uma farsa, o julgamento
Billing. Parlamentar de extrema direita, Noel Billing inventou que nas duas décadas anteriores agentes alemães haviam se infiltrado na Inglaterra. Eles espalharam, conforme escreveu, "tanta devassidão e tanta lascívia como só as mentes germânicas podem conceber e
os corpos germânicos executar". Com base na espionagem, os alemães teriam feito um "livro negro" contendo
o nome de nada menos que 47 mil ingleses pervertidos.
Billing sugeriu num artigo que se poderia descobrir a
lista investigando a vida de Maud Allan, atriz que representava o papel principal na peça "Salomé", de Wilde. A
atriz processou o parlamentar.
Depondo contra a "quinta coluna do vício inglês", Bosie testemunhou no tribunal que Wilde "teve uma influência diabólica em todos que encontrou. Acho que
ele foi a maior força do mal a aparecer na Europa nos últimos 350 anos. Era um agente do demônio de todas as
maneiras possíveis. Foi um homem cujo objetivo na vida era atacar e zombar da virtude". Num período de
exaltação nacionalista e homofobia, Billing foi absolvido. Bosie virou arauto de outra bandeira inglória, o anti-semitismo. São seus os versos: "How odd/ Of God/ To
choose/ The Jews". Algo como: "Que trejeito/ De Deus/
Ter eleito/ Os Judeus".
Contra Churchill
Em 1923, Bosie publicou um panfleto acusando Winston Churchill de ter aceito propina
de banqueiros de origem judaica para que eles dessem
um golpe na Bolsa. Também acusou o parlamentar de
ter ajudado os "judeus bolcheviques" a tomarem o poder na Rússia. Foi processado por Churchill e condenado a seis meses de prisão.
Uma das biógrafas de Wilde, Barbara Belford ("A
Certain Genius", Random House, 2000), sustenta que
Bosie queria ser preso para expiar sua culpa na derrocada do escritor e emulá-lo. Na prisão, ele escreveu um livro de poemas, "In Excelsis" (Nas Alturas), que é uma
resposta enviesada a "De Profundis". Enquanto a carta
de Wilde é toda compaixão cristã, o livro de Bosie tem
versos vitriólicos como: "A leprosa e dispersa prole de
Israel/ Espalha contágio em nosso sangue inglês".
No final da vida, Bosie relativizou seus ataques ao pai
e a Oscar Wilde. Em 1938, perguntou-se: "Meu pai me
amou o tempo todo, como certamente o amei antes de
ele se voltar contra mim, e estava apenas fazendo
o que Oscar diz em sua grande "Balada", que todos
homens matam aquilo que amam? Nós três, Wilde, meu pai e eu, não fizemos mais ou menos a
mesma coisa?".
"Todos os homens matam aquilo que amam" é
verso retórico, já que o mais comum é não matar
quem se ama. A inclusão que Bosie faz de Wilde
na equação triangular é abusiva: o escritor não
contribui em nada para "matar" o seu jovem
amante, que morreu em 1945.
Uma outra frase do escritor, de "A Importância
de Ser Prudente", parece mais adequada para se
obter algum significado da vida de Bosie e de sua
relação com Wilde: "A verdade nunca é pura, e raramente simples". Em sua monumental biografia
do escritor, Richard Ellmann argumenta que Wilde quis se apaixonar perdidamente, identificava o
artista verdadeiro ao criminoso, tinha um gosto
inexcedível em desafiar o público e se via como
um mártir (um dos seus motivos pictóricos preferidos
era o martírio de São Sebastião, principalmente a versão de Guido Reni). A combustão desses motivos explicaria a tragédia de Wilde.
Metade da reputação
O poeta W.B. Yeats escreveu anos depois da morte de Wilde que seu conterrâneo
"tomou a decisão certa" quando enfrentou o julgamento "e deve a essa decisão metade da sua reputação". Metade? Só em 1967 foi regulamentada a lei que descriminalizou o homossexualismo na Inglaterra. Havia muito
Wilde era tido como um dos melhores escritores do século 19. Ainda hoje ele é o dramaturgo inglês mais representado mundialmente, depois de Shakespeare.
Quanto a Bosie, sua reputação continua indissociável
de Wilde, apesar das tentativas de reabilitá-lo e dar-lhe
estatura individual. A última é o livro "Bosie - A Biography of Lord Alfred Douglas" (Hyperion, Nova York,
2000). Nela, Douglas Murray, um estudante de Oxford
de 21 anos, defende que Bosie era um grande poeta.
Mesmo com os copiosos exemplos da obra literária de
Bosie transcritos na biografia, é difícil enxergar o grande escritor. Antimodernista exaltado, Bosie vituperou
contra a "imbecilidade" de T.S. Eliot, W.H. Auden,
Yeats e H.G. Wells por terem escrito obras "feias" e "incompetentes". Seus poemas, na maioria sonetos petrarquianos, são afetados, vazios e pontilhados de ódio. Como a sua vida.
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