São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2000

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Uma vida distorcida


Poeta menor, Alfred Douglas, o amante de Wilde, passou a perseguir homossexuai s e judeus


Mario Sergio Conti
da Reportagem Local

Com raízes fincadas na Escócia do século 11, a família Douglas atravessou os anos como um trem fantasma. Entre os seus membros houve suicidas, bastardos, loucos, idiotas e tarados. John Sholto Douglas, nono marquês de Queensberry, é uma nota de pé de página na história dos esportes: com 24 anos, ele mudou as regras do boxe, criando normas que perduram até hoje, como a da divisão dos lutadores em categorias segundo o seu peso. O terceiro filho do marquês de Queensberry, lorde Alfred Bruce Douglas, é outra nota de pé de página, só que na história da poesia inglesa. Escreveu o verso que ainda designa o homossexualismo: "O amor que não ousa dizer seu nome".
Difícil dizer quem era pior, se o marquês ou o filho. Ambos eram hipócritas e destemperados, mentirosos e manipuladores, covardes e egocêntricos, litigantes e difamadores compulsivos. Estariam esquecidos se não se odiassem com paixão, pois esse ódio recíproco foi decisivo na destruição de Oscar Wilde.
Alfred Douglas tinha 21 anos, e Wilde, 37 quando se conheceram, em 1891. Com cabelos loiros e cacheados, tinha feições femininas, gostava de esportes, era inquieto, arruaceiro e temperamental. Conhecido como Bosie -corruptela de "Boysie" (menininho), seu apelido em família-, ele editou revistas literárias de propaganda homossexual em Oxford, onde era tido como o mais notório defensor da "causa".
Cinco anos antes, em 1886, Oscar Wilde tinha tido o segundo filho, Vyvyan (queria ter uma filha e deu ao bebê um nome andrógino), e deixara de ter relações sexuais com a mulher, Constance. Tornou-se homossexual. Para justificar a castidade matrimonial, alegou que voltara a ter os sintomas da sífilis que contraíra na juventude. Lavava a boca depois de se forçar a beijar Constance.
Wilde era um escritor respeitado e um dos artistas mais populares da Inglaterra. Deu de presente um exemplar autografado de "O Retrato de Dorian Gray" (1891) a Bosie, que já o havia havia lido nove vezes. Cortejou-o sem sucesso durante meses. No início de 1892, eles jantaram juntos em Londres, no Savoy, assistiram a uma peça e cearam no Lyric Club. Às 2h da manhã, foram para a casa do escritor, onde não havia ninguém. Mais de 30 anos depois, Bosie lembrou o encontro:
"Nunca houve sodomia entre nós, não se pensou nem se sonhou com isso. Wilde tratou-me como um garoto mais velho trata um mais novo na escola e acrescentou o que era novo para mim e não era (pelo que sei) conhecido ou praticado pelos meus contemporâneos: ele me chupou". Sexualmente, o caso foi breve, como escreveu Bosie na sua "Autobiografia": "Por mais que estivesse fascinado por Wilde e por muito tempo o tenha adorado e estado louco por ele, nunca gostei dessa parte do negócio. Era algo absolutamente contrário aos meus instintos, todos voltados para a juventude, a beleza e a maciez. Depois de um tempo ele se deu conta de que eu não gostava nem um pouco disso e só concordava em fazê-lo para agradá-lo, e logo cortamos tudo. À exceção de Wilde nunca em minha vida tive uma relação imoral com um homem mais velho do que eu". Wilde e Bosie comportavam-se em público como namorados e usufruíam em privado de adolescentes de 17 anos, aos quais pagavam pelos serviços. Mais que escandalosas, suas atitudes eram ilegais na Inglaterra vitoriana: em 1885, a pederastia se tornara crime. A relação deles era tumultuada. À menor contrariedade, Bosie explodia. Tinha chiliques e gritava com o namorado, saía batendo a porta e dizendo que nunca mais voltaria. Mas sempre voltava, no mais das vezes para pedir dinheiro. Péssimo aluno, não conseguira se graduar, não tinha emprego e vivia em redor de Wilde. Numa ocasião, Bosie deixou que Constance entrasse no seu quarto no hotel Savoy, conjugado com o de Wilde, e visse que havia dois travesseiros na cama de casal. Ela pediu que o marido voltasse para casa. Ele respondeu com uma canhestra tentativa de fazer graça: disse que fazia tanto tempo que não ia para casa que nem lembrava o número dela.

Frígido e impotente
O marquês de Queensberry pressionou para que o filho se afastasse do escritor. Cortou-lhe a mesada, ameaçou fazer cena quando o encontrasse com Wilde e enviou-lhe dezenas de cartas ofensivas. Na mesma época, o segundo casamento do marquês foi anulado: sua noiva atestou que ele era "frígido", "impotente" e tinha "má-formação genital".
Queensberry foi à estréia de "A Importância de Ser Prudente" para tumultuar a encenação. Impedido de entrar, deixou para Wilde um buquê de tulipas e cenouras fálicas. Bosie instigava Wilde a processar o pai. Finalmente, o marquês enviou um cartão para Wilde no qual escreveu de modo errado a ofensa: "Somdomita" (sic). O escritor decidiu processá-lo.
O julgamento foi um show, coberto avidamente pela imprensa sensacionalista. Wilde estava no auge da fama. Vinha de estrear duas de suas obras-primas, as peças "Um Marido Ideal" e "A Importância de Ser Prudente" (1895) . Orador espirituoso, saiu-se bem quando o questionaram sobre arte e cultura. Saiu-se mal quando explicou que não beijara um determinado jovem porque ele era feio.
O marquês foi absolvido. Seus advogados encaminharam à Justiça toda a documentação que haviam conseguido contra Wilde. Dela constavam depoimentos de jovens dizendo que haviam mantido relações sexuais com o escritor. A Justiça abriu um processo contra o escritor. Wilde se recusou a viajar para a França, onde não poderia ser alcançado pela Justiça inglesa. Foi condenado a dois anos de trabalhos forçados. Bosie fugiu do país para não ter que testemunhar. Prometeu cobrir os custos do processo de Wilde, mas não o fez. Para pagá-los, o escritor teve seus bens arrestados e vendidos em leilão.
Wilde escreveu na prisão uma longa carta a Bosie, publicada postumamente com o título de "De Profundis". "Nossa desgraçada e lamentabilíssima amizade acabou para mim na ruína e na vergonha pública", registrou Wilde na carta, seu único escrito sem humor e verve. Bosie é nela apresentado como um poeta medíocre, garoto mimado e belicoso, carente e egocêntrico, indiferente ao sofrimento alheio.
Bosie e Wilde voltaram a se encontrar, na França e na Itália. Reconciliaram-se, discutiram por dinheiro, brigaram, mantiveram-se à distância. Wilde viveu na penúria, nunca voltou à Inglaterra, jamais reviu os filhos e Constance. Não conseguiu escrever nada que estivesse à altura do que fizera antes, salvo "A Balada do Cárcere de Reading" (1898), poema cujo verso mais conhecido é "todos os homens matam aquilo que amam".
Queensberry aceitou reconciliar-se com o filho. Abraçaram-se em lágrimas. O pai chamou Bosie de "meu pobre menino encantador" e prometeu pagar-lhe a mesada. Uma semana depois, voltou à forma habitual.
Ele enviou uma carta ao filho dizendo que só lhe mandaria dinheiro se soubesse a exata natureza de sua relação com "a besta Wilde". Bosie respondeu recusando a mesada. Ao morrer, em janeiro de 1900, o marquês deixou-lhe de herança uma soma alta, 15 mil libras. Numa carta, Wilde conta que encontrou Bosie em Paris logo depois do enterro do pai e ele estava "de luto profundo e no maior ânimo". Bosie dedicou o resto da vida a provar, involuntariamente, que Wilde estava certo quando o chamou em "De Profundis" de "monstro", de produto de uma linhagem "louca" e "ruim". Converteu-se ao catolicismo e abjurou a homossexualidade. Viajou para os Estados Unidos com o objetivo de "casar por dinheiro com uma moça americana que o tivesse em superabundância, e ela casaria comigo porque eu tinha um título e um nome histórico e porque poderia facilmente mostrar a ela, e a quem quer que fosse, que, com muito dinheiro, não haveria a menor dificuldade em voltar ao círculo social do qual havia sido parcialmente excluído". O objetivo não foi atingido. Bosie voltou para a Inglaterra e namorou com uma poetastra que havia conhecido pouco antes, Olive Custance. Parecida com um menino, Olive tinha tendências lésbicas. "Por que você não se veste de menino e vem comigo?", perguntou-lhe Bosie pouco antes de embarcar para os EUA. Eles se casaram em 1902 e tiveram um filho, Raymond, que viveu a maior parte da vida em hospitais psiquiátricos. Bosie se desentendeu com o sogro, com quem veio a travar uma penosa batalha judicial pela guarda de Raymond. Olive o traía abertamente. Divorciaram-se após dez anos. Com o zelo de um recém-convertido, tornou-se um campeão na perseguição aos homossexuais. Em 1918 participou da montagem de uma farsa, o julgamento Billing. Parlamentar de extrema direita, Noel Billing inventou que nas duas décadas anteriores agentes alemães haviam se infiltrado na Inglaterra. Eles espalharam, conforme escreveu, "tanta devassidão e tanta lascívia como só as mentes germânicas podem conceber e os corpos germânicos executar". Com base na espionagem, os alemães teriam feito um "livro negro" contendo o nome de nada menos que 47 mil ingleses pervertidos. Billing sugeriu num artigo que se poderia descobrir a lista investigando a vida de Maud Allan, atriz que representava o papel principal na peça "Salomé", de Wilde. A atriz processou o parlamentar. Depondo contra a "quinta coluna do vício inglês", Bosie testemunhou no tribunal que Wilde "teve uma influência diabólica em todos que encontrou. Acho que ele foi a maior força do mal a aparecer na Europa nos últimos 350 anos. Era um agente do demônio de todas as maneiras possíveis. Foi um homem cujo objetivo na vida era atacar e zombar da virtude". Num período de exaltação nacionalista e homofobia, Billing foi absolvido. Bosie virou arauto de outra bandeira inglória, o anti-semitismo. São seus os versos: "How odd/ Of God/ To choose/ The Jews". Algo como: "Que trejeito/ De Deus/ Ter eleito/ Os Judeus".

Contra Churchill
Em 1923, Bosie publicou um panfleto acusando Winston Churchill de ter aceito propina de banqueiros de origem judaica para que eles dessem um golpe na Bolsa. Também acusou o parlamentar de ter ajudado os "judeus bolcheviques" a tomarem o poder na Rússia. Foi processado por Churchill e condenado a seis meses de prisão. Uma das biógrafas de Wilde, Barbara Belford ("A Certain Genius", Random House, 2000), sustenta que Bosie queria ser preso para expiar sua culpa na derrocada do escritor e emulá-lo. Na prisão, ele escreveu um livro de poemas, "In Excelsis" (Nas Alturas), que é uma resposta enviesada a "De Profundis". Enquanto a carta de Wilde é toda compaixão cristã, o livro de Bosie tem versos vitriólicos como: "A leprosa e dispersa prole de Israel/ Espalha contágio em nosso sangue inglês". No final da vida, Bosie relativizou seus ataques ao pai e a Oscar Wilde. Em 1938, perguntou-se: "Meu pai me amou o tempo todo, como certamente o amei antes de ele se voltar contra mim, e estava apenas fazendo o que Oscar diz em sua grande "Balada", que todos homens matam aquilo que amam? Nós três, Wilde, meu pai e eu, não fizemos mais ou menos a mesma coisa?". "Todos os homens matam aquilo que amam" é verso retórico, já que o mais comum é não matar quem se ama. A inclusão que Bosie faz de Wilde na equação triangular é abusiva: o escritor não contribui em nada para "matar" o seu jovem amante, que morreu em 1945. Uma outra frase do escritor, de "A Importância de Ser Prudente", parece mais adequada para se obter algum significado da vida de Bosie e de sua relação com Wilde: "A verdade nunca é pura, e raramente simples". Em sua monumental biografia do escritor, Richard Ellmann argumenta que Wilde quis se apaixonar perdidamente, identificava o artista verdadeiro ao criminoso, tinha um gosto inexcedível em desafiar o público e se via como um mártir (um dos seus motivos pictóricos preferidos era o martírio de São Sebastião, principalmente a versão de Guido Reni). A combustão desses motivos explicaria a tragédia de Wilde.

Metade da reputação
O poeta W.B. Yeats escreveu anos depois da morte de Wilde que seu conterrâneo "tomou a decisão certa" quando enfrentou o julgamento "e deve a essa decisão metade da sua reputação". Metade? Só em 1967 foi regulamentada a lei que descriminalizou o homossexualismo na Inglaterra. Havia muito Wilde era tido como um dos melhores escritores do século 19. Ainda hoje ele é o dramaturgo inglês mais representado mundialmente, depois de Shakespeare.
Quanto a Bosie, sua reputação continua indissociável de Wilde, apesar das tentativas de reabilitá-lo e dar-lhe estatura individual. A última é o livro "Bosie - A Biography of Lord Alfred Douglas" (Hyperion, Nova York, 2000). Nela, Douglas Murray, um estudante de Oxford de 21 anos, defende que Bosie era um grande poeta.
Mesmo com os copiosos exemplos da obra literária de Bosie transcritos na biografia, é difícil enxergar o grande escritor. Antimodernista exaltado, Bosie vituperou contra a "imbecilidade" de T.S. Eliot, W.H. Auden, Yeats e H.G. Wells por terem escrito obras "feias" e "incompetentes". Seus poemas, na maioria sonetos petrarquianos, são afetados, vazios e pontilhados de ódio. Como a sua vida.


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