São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2006

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Ponto de fuga

O traidor, provavelmente


Scorsese não se interessa pela psicologia, a não ser para zombar levemente dela; suas questões encontram-se num subsolo espesso, angustiado, situado além da consciência


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Conflitos Internos" é um ótimo exemplo de por que eu amo o cinema de Hong Kong, mas "Os Infiltrados" não é um remake daquele filme. Ele foi inspirado em "Conflitos Internos"." A frase, de Martin Scorsese, pode surpreender. Os enredos são semelhantes e seqüências cruciais são retomadas de um para o outro.
Mesmo certo detalhe da trama, em "Os Infiltrados", só adquire sentido a partir de "Conflitos Internos". É um "foreshadowing" [recurso narrativo de apresentar pistas da trama] incompleto: falta, no filme de Scorsese, a conseqüência de um gesto, que não pode ser revelado aqui, sob pena de estragar o desfecho. Foi talvez suprimida pelo próprio diretor, reduzindo uma duração já bastante longa.
Scorsese tem razão, no entanto, ao demarcar sua obra da anterior. Os filmes são distintos pela forma e, muito mais, pelas razões, densas e últimas, de cada um deles.
"Conflitos Internos", de Andrew Lau e Alan Mak (Hong Kong, 2002, DVD Buena Vista), é desenhado por uma câmera flexível, movendo-se em largas ondulações laterais. Uma tomada flui, vaza, dentro da outra; elas descortinam antes de mostrar: revelam o objeto principal atrás de um obstáculo que se desloca.
A câmera de Scorsese, ao contrário, exibe o mundo com clareza direta, como para melhor comprovar a opacidade do que é visível. "Conflitos Internos" traz, sobretudo, uma história ética: é possível ser bom e cometer atos ruins. É uma história de máscaras, que não são um falso rosto, mas outro rosto, ambos verdadeiros (alguém pode ter 12 personalidades, como diz um dos personagens: a cada despertar, um novo indivíduo nasce).

Transcendente
O título do filme de Scorsese em português, "Os Infiltrados", lembra uma preocupação essencial própria ao cineasta.
A infiltração é o tema: agentes da polícia numa gangue, agentes dos bandidos num meio policial. A relação é simétrica, jogo de reflexos no espelho. Lembra a paridade entre o mundo do crime e o mundo da justiça em "M, o Vampiro de Düsseldorf" (1931, DVD Continental) de Fritz Lang; mas aqui é a própria natureza da justiça que está em jogo.
Scorsese interessa-se por outra coisa. "Cabo do Medo" (1991, DVD Universal) expunha a infiltração do mal no mundo, Mal com maiúscula, a interrogação sobre o mal metafísico, suas portas de entrada, seus agentes.
A essa interrogação a resposta é a de uma religiosidade perplexa e filosófica, a mesma que foi dada por Robert Bresson em seu filme "O Diabo, Provavelmente" [de 1977]. Como Nicolas Cage em "Vivendo no Limite" (1998, DVD Buena Vista), Leonardo di Caprio encarna um messias humano e salvador, santificado pelo sacrifício.

Beijo
A figura do pai, tão obsessiva no filme, nada tem de psicanalítica. Scorsese não se interessa pela psicologia, a não ser para zombar levemente dela. Suas questões encontram-se num subsolo espesso, angustiado, situado além da consciência.
Ele havia já realizado um monumento analítico ao traidor, com "A Última Tentação de Cristo" (1988, DVD Universal). Judas, seguindo essa visão, é a vítima mais radical. Sem ele, a crucifixão não existiria, e o mundo não seria salvo.
A que hemisfério ético pertence então o traidor? Do Bem? Do Mal?

Túmulos
O título original do filme é "The Departed", os que partiram, os que morreram. Como em Robert Bresson, os verdadeiros mortos são aqueles que têm calos no espírito, que perderam o dom de serem humanos e, por essa razão, a graça de se tornarem um pouco divinos também.

jorgecoli@uol.com.br


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