|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ Teatro
O palco visionário de Meyerhold
A francesa Picon-Vallin fala sobre o método do encenador russo, que se antecipou à neurociência
VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
D
e passagem pelo
país, em outubro
passado, para conferências no Rio e
em Belo Horizonte,
a pesquisadora francesa Béatrice Picon-Vallin falou à Folha sobre seu primeiro livro
lançado no Brasil: "A Arte do
Teatro - Entre Tradição e Vanguarda" (Letra e Imagem/ Teatro do Pequeno Gesto, 144
págs., R$ 30).
Ele trata das rupturas propostas nas primeiras décadas
do século 20 pelo encenador-pedagogo russo Vsevolod Emilievitch Meyerhold (1874-1940), executado por soldados
de Stálin, mas cujos conceitos
artísticos dialogam ativamente
com os palcos do século 21.
FOLHA - Aos olhos do século 21, é
possível comparar os legados de
Constantin Stanislavski [1863-
1938] e Meyerhold?
BÉATRICE PICON-VALLIN - Será que
é mesmo necessário compará-los? É uma bobagem opô-los
bem como fazer deles um par
complementar. É claro que, como disse o teatrólogo russo Michael Tchecov [1891-1955], "a
obra de ambos representa os
dois arcos de uma ponte", da
grande ponte que é o teatro
russo no século 20.
Parece-me que hoje é importante sublinhar que, quanto à
estética da representação, Stanislavski pertence ao passado e
que encontramos na obra de
Meyerhold impulsos que podem ainda hoje alimentar a
imaginação e os métodos de
trabalho dos homens de teatro,
fornecendo-lhes energia.
Quanto ao trabalho do ator,
temos o hábito de minimizar a
contribuição de Meyerhold,
mas acredito que é preciso ver
que ele era, também nesse ponto, um visionário e que sua
abordagem da atuação corresponde a descobertas que hoje
são feitas nas neurociências.
FOLHA - Como se dá a triangulação
de teoria e prática entre Meyerhold,
o inglês Edward Craig (1872-1966) e
o francês Artaud (1896-1948)?
PICON-VALLIN - O principal ponto de convergência entre Meyerhold e Craig diz respeito ao
movimento, considerado por
eles como a base da arte teatral,
movimento sob todas as suas
formas, disseminado pela atuação, pela cenografia e luz e pelos demais elementos cênicos.
A relação com Artaud é mais
difícil de resumir, mas algumas
passagens de sua obra, sobretudo do "Segundo Manifesto do
Teatro da Crueldade" [de 1933,
em "o Teatro e seu Duplo", ed.
Martins Fontes], oferecem paralelos evidentes com a obra de
Meyerhold, embora os dois artistas não se conhecessem pessoalmente e o russo não conhecesse a obra de Artaud.
É possível que Artaud tenha
assistido a algum espetáculo da
turnê que Meyerhold fez em
1930 e que incluiu algumas cidades da Alemanha e Paris, mas
não tenho certeza disso.
Há vários pontos de contato
entre ambos. Quanto à importância atribuída ao texto, por
exemplo, Artaud acreditava
que deveria ter, no espetáculo,
o mesmo valor que ele tem nos
sonhos; e Meyerhold reafirmava que ele não deve ser ilustrado, mas recriado em cena.
FOLHA - Como a sra. avalia a recepção de Meyerhold hoje?
PICON-VALLIN - Condenado como inimigo do povo, Meyerhold virtualmente "desapareceu" da história do teatro russo,
o que tornou muito difícil a
transmissão direta de suas
idéias e de sua prática cênica.
O teatro, arte frágil e efêmera, sofre enormemente com esse tipo de corte brutal. A obra
de Meyerhold só começou a ser
divulgada na Rússia em 1968, 13
anos depois de sua reabilitação
jurídica, que ocorreu em 1955.
Sua obra nos toca, ainda hoje,
por seu engajamento, e é preciso ressaltar que o aspecto político de seu trabalho sempre se
fez acompanhar de uma exigência artística imensa.
Ao longo de sua variada trajetória, que incluiu experiências
com simbolismo, construtivismo, "agitprop" [forma extremada de teatro político] e o
grande repertório clássico russo, o que o distinguia era a permanente inquietação, o diálogo
entre seus espetáculos, cada
um deles tentando questionar
o anterior e levar adiante a pesquisa já iniciada.
Também no que diz respeito
aos atores, Meyerhold era extremamente exigente e criativo, propondo-lhes sempre tarefas novas, sem perder o vínculo com as artes tradicionais
do teatro (commedia dell'arte,
teatros orientais).
Tudo isso constitui a base sobre a qual ele constrói um teatro novo, que orquestra o trabalho do autor, do encenador e do
ator e alça o espectador ao papel de quarto criador.
Texto Anterior: + Cultura: As jóias afirmativas Próximo Texto: Dois cineastas on the road Índice
|