São Paulo, domingo, 26 de novembro de 2006

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+ Teatro

O palco visionário de Meyerhold

A francesa Picon-Vallin fala sobre o método do encenador russo, que se antecipou à neurociência

VALMIR SANTOS
DA REPORTAGEM LOCAL

D e passagem pelo país, em outubro passado, para conferências no Rio e em Belo Horizonte, a pesquisadora francesa Béatrice Picon-Vallin falou à Folha sobre seu primeiro livro lançado no Brasil: "A Arte do Teatro - Entre Tradição e Vanguarda" (Letra e Imagem/ Teatro do Pequeno Gesto, 144 págs., R$ 30).
Ele trata das rupturas propostas nas primeiras décadas do século 20 pelo encenador-pedagogo russo Vsevolod Emilievitch Meyerhold (1874-1940), executado por soldados de Stálin, mas cujos conceitos artísticos dialogam ativamente com os palcos do século 21.

 

FOLHA - Aos olhos do século 21, é possível comparar os legados de Constantin Stanislavski [1863- 1938] e Meyerhold?
BÉATRICE PICON-VALLIN
- Será que é mesmo necessário compará-los? É uma bobagem opô-los bem como fazer deles um par complementar. É claro que, como disse o teatrólogo russo Michael Tchecov [1891-1955], "a obra de ambos representa os dois arcos de uma ponte", da grande ponte que é o teatro russo no século 20.
Parece-me que hoje é importante sublinhar que, quanto à estética da representação, Stanislavski pertence ao passado e que encontramos na obra de Meyerhold impulsos que podem ainda hoje alimentar a imaginação e os métodos de trabalho dos homens de teatro, fornecendo-lhes energia.
Quanto ao trabalho do ator, temos o hábito de minimizar a contribuição de Meyerhold, mas acredito que é preciso ver que ele era, também nesse ponto, um visionário e que sua abordagem da atuação corresponde a descobertas que hoje são feitas nas neurociências.

FOLHA - Como se dá a triangulação de teoria e prática entre Meyerhold, o inglês Edward Craig (1872-1966) e o francês Artaud (1896-1948)?
PICON-VALLIN
- O principal ponto de convergência entre Meyerhold e Craig diz respeito ao movimento, considerado por eles como a base da arte teatral, movimento sob todas as suas formas, disseminado pela atuação, pela cenografia e luz e pelos demais elementos cênicos.
A relação com Artaud é mais difícil de resumir, mas algumas passagens de sua obra, sobretudo do "Segundo Manifesto do Teatro da Crueldade" [de 1933, em "o Teatro e seu Duplo", ed. Martins Fontes], oferecem paralelos evidentes com a obra de Meyerhold, embora os dois artistas não se conhecessem pessoalmente e o russo não conhecesse a obra de Artaud.
É possível que Artaud tenha assistido a algum espetáculo da turnê que Meyerhold fez em 1930 e que incluiu algumas cidades da Alemanha e Paris, mas não tenho certeza disso.
Há vários pontos de contato entre ambos. Quanto à importância atribuída ao texto, por exemplo, Artaud acreditava que deveria ter, no espetáculo, o mesmo valor que ele tem nos sonhos; e Meyerhold reafirmava que ele não deve ser ilustrado, mas recriado em cena.

FOLHA - Como a sra. avalia a recepção de Meyerhold hoje?
PICON-VALLIN
- Condenado como inimigo do povo, Meyerhold virtualmente "desapareceu" da história do teatro russo, o que tornou muito difícil a transmissão direta de suas idéias e de sua prática cênica.
O teatro, arte frágil e efêmera, sofre enormemente com esse tipo de corte brutal. A obra de Meyerhold só começou a ser divulgada na Rússia em 1968, 13 anos depois de sua reabilitação jurídica, que ocorreu em 1955.
Sua obra nos toca, ainda hoje, por seu engajamento, e é preciso ressaltar que o aspecto político de seu trabalho sempre se fez acompanhar de uma exigência artística imensa.
Ao longo de sua variada trajetória, que incluiu experiências com simbolismo, construtivismo, "agitprop" [forma extremada de teatro político] e o grande repertório clássico russo, o que o distinguia era a permanente inquietação, o diálogo entre seus espetáculos, cada um deles tentando questionar o anterior e levar adiante a pesquisa já iniciada.
Também no que diz respeito aos atores, Meyerhold era extremamente exigente e criativo, propondo-lhes sempre tarefas novas, sem perder o vínculo com as artes tradicionais do teatro (commedia dell'arte, teatros orientais).
Tudo isso constitui a base sobre a qual ele constrói um teatro novo, que orquestra o trabalho do autor, do encenador e do ator e alça o espectador ao papel de quarto criador.


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