São Paulo, Domingo, 26 de Dezembro de 1999


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A infantilização universal



Para o escritor israelense, a nova forma do capitalismo incentiva cada vez mais o esquecimento e o repúdio ao que é difícil e complexo, a fim de favorecer o consumo rápido das coisas

Luiz Felipe Pondé
especial para a Folha


Amos Oz, professor de literatura hebraica da Universidade Ben Gurion e um dos mais renomados escritores israelenses da atualidade, faz um cruel diagnóstico dos tempos atuais. Para ele, tudo caminha rumo a uma infantilização da humanidade.
O conceito remete ao desejo patológico de permanecer um eterno adolescente, resultando disso um estado de retardo mental que atinge o alto grau de valor "ético" positivo. O que antes era apenas uma aspiração relacionada ao corpo (a de permanecer fisicamente jovem), agora contagia a "vida psicológica", materializando-se em uma adesão "alegre" à condição afetiva e intelectual reduzida.
E qual seria uma das causas principais de tal processo, segundo Oz? A "mania neocapitalista". Imersos nos enunciados abstratos dessa ciência vazia que é a economia "ontológica" de mercado, metafísica para pseudoletrados, acabamos todos angustiados diante dos dilemas coloridos dispostos nas prateleiras das lojas.
"Quanto mais complexo se tornar algo, maior a busca por soluções simples. Perde-se a vocação para o complexo e o difícil. Repudia-se tudo que não for de fácil consumo. O esquecimento garante a necessidade de adquirir o novo", diz Oz, autor de "Fima", "A Caixa Preta" e "Pantera no Porão", recém-lançado no Brasil (todos pela Companhia das Letras).
Contra o ruído do mundo infantilizado, Oz propõe o silêncio do deserto. "O deserto coloca as coisas nos seus devidos lugares: dá-nos um senso de proporção, de critério", diz ele na entrevista a seguir, feita em Tel Aviv.

Quais são as suas influências literárias e filosóficas?
Não tenho muitas referências na literatura internacional, e sim em autores judeus da literatura hebraica que pouco significam em termos mundiais.
Quanto à filosofia, sou volúvel, sigo um pouco o que surge sem me ater a nenhuma escola em especial.
É comum entre os escritores existir um certo ritual no ato de escrever. Qual é o seu?
Acordo por volta das 5h e vou caminhar pelo deserto próximo a minha casa. O deserto coloca as coisas nos seus devidos lugares: dá-nos um senso de proporção, de critério. Todo mundo deveria ter uma experiência sensível dessa desproporção. Depois tomo café e vou escrever. Uso sempre caneta, pois gosto de senti-la entre os dedos. Escrever é um ato sensual. Depois do almoço, às vezes, desfaço tudo e reescrevo. Sou uma pessoa mais do dia do que da noite.
Há algo de religioso na sua paixão pelo deserto?
Não sou religioso e não vou a sinagoga. "Deus não é religioso", afirma Fima, um de meus personagens -e todos eles carregam meus genes, por isso sou tudo o que eles representam. As dissonâncias em minha obra são reflexo dos desacordos que me constituem. Não acho que Deus seja um assunto público, mas sim muito privado. Por isso evito falar desse tema, ainda mais em épocas em que o fundamentalismo transforma a religião em um ruído insuportável. O deserto antes de tudo me protege de um mundo que tem se tornado agressivamente infantil. Manter distância disso é saudável.

"Destruir o passado é o programa de nossa era: apagar a capacidade humana de ser um animal consciente. Isso é muito sério. Não devemos lembrar, só lucrar, trabalhar demais para comprar demais. Nesse processo de erosão da memória coletiva perdemos a consciência. Vi pichado em um muro outro dia: "Nascemos para comprar'"

Recentemente, os articuladores do acordo de Oslo, que negociaram o processo de paz entre Israel e palestinos, afirmaram que a solução para ambos seria olhar para o futuro, pois sobre o passado não chegarão a conclusões...
Isso é típico de políticos. Devíamos desligar o som quando eles falam. Eles vivem no presente e no futuro. O passado é para poetas e historiadores. Trata-se de um erro terrível. Aqui temos que aprender a conviver com as duas narrativas diferentes sobre a história, de judeus e palestinos. Isso será um processo longo e dolorido.
Destruir o passado é o programa de nossa era: apagar a capacidade humana de ser um animal consciente. Isso é muito sério. Não devemos lembrar, só lucrar, trabalhar demais para comprar demais, muitas coisas que na realidade são absolutamente desnecessárias. Não é necessário produzir tanto assim. Nesse processo de erosão da memória coletiva perdemos a consciência. Vi pichado em um muro outro dia: "Nascemos para comprar". Assistimos a uma profunda infantilização das pessoas.
O que o senhor quer dizer com a palavra "infantilização"?
Quanto mais complexo se tornar algo, maior a busca por soluções simples. Perde-se a vocação para o complexo e o difícil. Repudia-se tudo o que não for de fácil consumo. O esquecimento garante a necessidade de adquirir o novo. Um remédio seria o senso de humor: "Pílulas de senso de humor"!. Mas essa idéia é ruim, pois implica produção em série e autoritarismo. Vê? O fanatismo infantil é contagioso. É necessário que nos mantenhamos longe dele.
Será que o esquecimento como programa social garante o vácuo existencial e intelectual necessário para a demanda de consumo?
Seguramente, e essa é uma boa forma para explicar nossa época: a destruição programada de nossa capacidade para sustentar o passado e nele nos reconhecer.
O senhor diria que precisamos de menos "liquidações barulhentas de brinquedos para adultos"? Não acha que, no futuro, quem não consumir será preso?
Sim. Precisamos é de silêncio. Crianças (às vezes) precisam de ruído. O neocapitalismo nos diz: compre ansiosamente e ruidosamente. Não sou sociólogo ou filósofo, mas apenas um contador de histórias, mas aqui, acho que faço um diagnóstico.
Esse processo de "americanização" é novo na sociedade israelense, mas no Brasil já se vive há mais tempo essa condição.
O neocapitalismo causa a erosão da alma e sua privatização, pois dissolve a vida adulta. Na realidade, privatiza nosso desejo ao nos alienar completamente dele. Por exemplo, crianças não assimilam a complexidade da música, mas somente a simplicidade pobre do jingle e do clip. É a cultura do "world clip". Mas devemos separar os Estados Unidos como sociedade interna e isso: trata-se de um país sólido e rico, com uma reflexão sobre a liberdade e uma prática radical desta que a leva a um certo paroxismo. Quantas pessoas sabem como funciona a Corte Suprema nos EUA e quão profundo ela trava suas discussões filosóficas? A "América", não os Estados Unidos, é uma "máquina de vendas".
O Brasil é um grande produtor de fundamentalismos religiosos midiáticos. O senhor pensa que a infantilização a que se refere seria um dos fatores responsáveis por essa tendência em transformar os templos em "McJesus" e a fé em "aeróbica"?
O fundamentalismo apresenta a mesma característica infantil de recusar o complexo, por isso reduz tudo a fórmulas simples. Tudo é consumo. O que não é traduzido em termos de "adquira e seja feliz" não consegue ser compreendido.
Qual foi a impressão que o senhor teve do Brasil quando o visitou?
Ao contrário da imagem que se tem aqui fora, não passei por nenhuma situação de violência urbana. Andei muito pelas ruas, sozinho, e me senti bem. A sociedade brasileira é parecida com a israelense no sentido de ser uma mistura explosiva de repertórios culturais distintos. Os brasileiros são como nós, barulhentos e de difícil controle. Acho que o Brasil tem resolvido bem as diferenças culturais, no sentido de convívio pacífico, pelo menos essa é a minha impressão. E esse fato merece a atenção dos sociólogos, pois existem coisas aí para se aprender.
O filósofo francês de origem judaica Alain Finkielkraut afirmou que o processo de construção da identidade judaica poderia ser um sofrido "romance familiar" freudiano, com demandas neuróticas insuportáveis. Que acha disso?
Não me ocupo muito desse "judaísmo triste". O que me interessa no judaísmo é seu anarquismo essencial, sua ausência de unidade axial. O Talmud, por exemplo, é um jogo aberto de interpretações. Deus quer a multiplicidade e não a unidade repetitiva do dogma. Não temos um papa porque um dia alguém bateria nas suas costas e diria: conheci a lojinha do seu tio na Polônia, que negócio de "santo" é esse?
O senhor aceita que a sua obra seja considerada uma análise pessimista do homem?
Sou pessimista, mas vivo essa condição como "ironista", e essa é seguramente uma tradição judaica. Sou cético em relação à natureza humana, devemos tomar cuidado com ela, mas não podemos simplesmente desistir. Apesar da natureza humana, devemos buscar progresso nas sociedades.


Luiz Felipe Pondé é professor do programa de pós-graduação em ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), professor-pesquisador da Universidade de Tel Aviv e membro do grupo israelo-alemão de pesquisa em controvérsias em ciência, teologia e filosofia.


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