São Paulo, Domingo, 26 de Dezembro de 1999 |
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+ última palavra A infantilização universal
Luiz Felipe Pondé especial para a Folha
Recentemente, os articuladores do acordo de Oslo, que negociaram o processo de paz entre Israel e palestinos, afirmaram que a solução para ambos seria olhar para o futuro, pois sobre o passado não chegarão a conclusões... Isso é típico de políticos. Devíamos desligar o som quando eles falam. Eles vivem no presente e no futuro. O passado é para poetas e historiadores. Trata-se de um erro terrível. Aqui temos que aprender a conviver com as duas narrativas diferentes sobre a história, de judeus e palestinos. Isso será um processo longo e dolorido. Destruir o passado é o programa de nossa era: apagar a capacidade humana de ser um animal consciente. Isso é muito sério. Não devemos lembrar, só lucrar, trabalhar demais para comprar demais, muitas coisas que na realidade são absolutamente desnecessárias. Não é necessário produzir tanto assim. Nesse processo de erosão da memória coletiva perdemos a consciência. Vi pichado em um muro outro dia: "Nascemos para comprar". Assistimos a uma profunda infantilização das pessoas. O que o senhor quer dizer com a palavra "infantilização"? Quanto mais complexo se tornar algo, maior a busca por soluções simples. Perde-se a vocação para o complexo e o difícil. Repudia-se tudo o que não for de fácil consumo. O esquecimento garante a necessidade de adquirir o novo. Um remédio seria o senso de humor: "Pílulas de senso de humor"!. Mas essa idéia é ruim, pois implica produção em série e autoritarismo. Vê? O fanatismo infantil é contagioso. É necessário que nos mantenhamos longe dele. Será que o esquecimento como programa social garante o vácuo existencial e intelectual necessário para a demanda de consumo? Seguramente, e essa é uma boa forma para explicar nossa época: a destruição programada de nossa capacidade para sustentar o passado e nele nos reconhecer. O senhor diria que precisamos de menos "liquidações barulhentas de brinquedos para adultos"? Não acha que, no futuro, quem não consumir será preso? Sim. Precisamos é de silêncio. Crianças (às vezes) precisam de ruído. O neocapitalismo nos diz: compre ansiosamente e ruidosamente. Não sou sociólogo ou filósofo, mas apenas um contador de histórias, mas aqui, acho que faço um diagnóstico. Esse processo de "americanização" é novo na sociedade israelense, mas no Brasil já se vive há mais tempo essa condição. O neocapitalismo causa a erosão da alma e sua privatização, pois dissolve a vida adulta. Na realidade, privatiza nosso desejo ao nos alienar completamente dele. Por exemplo, crianças não assimilam a complexidade da música, mas somente a simplicidade pobre do jingle e do clip. É a cultura do "world clip". Mas devemos separar os Estados Unidos como sociedade interna e isso: trata-se de um país sólido e rico, com uma reflexão sobre a liberdade e uma prática radical desta que a leva a um certo paroxismo. Quantas pessoas sabem como funciona a Corte Suprema nos EUA e quão profundo ela trava suas discussões filosóficas? A "América", não os Estados Unidos, é uma "máquina de vendas". O Brasil é um grande produtor de fundamentalismos religiosos midiáticos. O senhor pensa que a infantilização a que se refere seria um dos fatores responsáveis por essa tendência em transformar os templos em "McJesus" e a fé em "aeróbica"? O fundamentalismo apresenta a mesma característica infantil de recusar o complexo, por isso reduz tudo a fórmulas simples. Tudo é consumo. O que não é traduzido em termos de "adquira e seja feliz" não consegue ser compreendido. Qual foi a impressão que o senhor teve do Brasil quando o visitou? Ao contrário da imagem que se tem aqui fora, não passei por nenhuma situação de violência urbana. Andei muito pelas ruas, sozinho, e me senti bem. A sociedade brasileira é parecida com a israelense no sentido de ser uma mistura explosiva de repertórios culturais distintos. Os brasileiros são como nós, barulhentos e de difícil controle. Acho que o Brasil tem resolvido bem as diferenças culturais, no sentido de convívio pacífico, pelo menos essa é a minha impressão. E esse fato merece a atenção dos sociólogos, pois existem coisas aí para se aprender. O filósofo francês de origem judaica Alain Finkielkraut afirmou que o processo de construção da identidade judaica poderia ser um sofrido "romance familiar" freudiano, com demandas neuróticas insuportáveis. Que acha disso? Não me ocupo muito desse "judaísmo triste". O que me interessa no judaísmo é seu anarquismo essencial, sua ausência de unidade axial. O Talmud, por exemplo, é um jogo aberto de interpretações. Deus quer a multiplicidade e não a unidade repetitiva do dogma. Não temos um papa porque um dia alguém bateria nas suas costas e diria: conheci a lojinha do seu tio na Polônia, que negócio de "santo" é esse? O senhor aceita que a sua obra seja considerada uma análise pessimista do homem? Sou pessimista, mas vivo essa condição como "ironista", e essa é seguramente uma tradição judaica. Sou cético em relação à natureza humana, devemos tomar cuidado com ela, mas não podemos simplesmente desistir. Apesar da natureza humana, devemos buscar progresso nas sociedades. Luiz Felipe Pondé é professor do programa de pós-graduação em ciências da religião da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP), professor-pesquisador da Universidade de Tel Aviv e membro do grupo israelo-alemão de pesquisa em controvérsias em ciência, teologia e filosofia. Texto Anterior: José Simão: As dez menas do Mais! Próximo Texto: + Poema Índice |
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