São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2002

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A política contra a cegueira

Incentivo à educação e reforço aos diretos dos indivíduos são, para o sociólogo, atitudes básicas para a recuperação das sociedades desiguais

por Alain Touraine

O orgulho e o irracionalismo que conduziram o mundo em conjunto para um desequilíbrio cada vez mais insuportável entre as redes financeiras e econômicas, que acumulam riquezas, e as sociedades fragmentadas, cada vez mais desiguais, não podem continuar se escondendo atrás do tema ambíguo da globalização. Podemos discutir as vantagens e os inconvenientes da crescente internacionalização das trocas, mas esse debate complexo não tem muito a ver com a realidade brutal oculta pela palavra "globalização". Esta proclama a superioridade de uma economia mundializada sobre todos os processos de controle exercidos em nível nacional. Em seu nome, falou-se muito no declínio dos Estados nacionais, quando a realidade observável não corresponde a esse tema de propaganda que busca afirmar o direito de um capitalismo sem controle nem regras a dominar o mundo. Durante alguns anos, o que chamamos de neoliberalismo pôde se justificar pela crise dos modelos econômicos e sociais do pós-guerra, todos constituídos em nível nacional e dando um papel central ao Estado. Mas há muito tempo as vantagens da "abertura das economias" são menores que seus prejuízos e mesmo que seus absurdos. Dois grandes tipos de crítica podem ser feitas ao capitalismo extremo. O primeiro é que ele aumenta a desigualdade e a exclusão e desencadeia graves crises regionais. Essas acusações são sérias, principalmente depois do fim do longo período de crescimento econômico nos Estados Unidos. Mas o segundo é ainda mais grave e foi formulado há muito tempo por economistas prestigiosos. O crescimento depende cada vez mais de fatores sociais como a educação, a organização do Estado, o modo de "governança" e também o modo de distribuição do produto nacional. O último ponto está ligado ao primeiro tipo de crítica, mas foi o conjunto dessas observações que levou o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional a admitirem abertamente o absurdo das políticas que tudo sacrificam à abertura dos mercados.

Gestão eficaz
Sem renunciar à economia de mercado que se impôs em toda parte, devemos reconhecer claramente que a economia deve ser controlada e regulamentada para ter efeitos benéficos e que a gestão eficaz da economia exige que se dê prioridade à luta contra a desigualdade, a injustiça e a ignorância. Tais conclusões deveriam ser facilmente aceitas. É muito mais difícil responder a uma pergunta que está mais ligada à ciência política que à economia e à sociologia: quem pode restabelecer esse controle, e como? Quais são as formas de intervenção social e as políticas de efeitos mais favoráveis ao mesmo tempo sobre o crescimento e sobre o bem-estar? De todos os lados vemos regimes e partidos políticos se enfraquecendo, sindicatos que perdem as forças e leis sociais serem cada vez mais mal aplicadas. Devemos concluir que na verdade o capitalismo brutal é apesar de tudo mais eficaz que uma social-democracia pouco a pouco invadida pela burocratização, o corporativismo e a manutenção dos interesses adquiridos? A honestidade quer que exerçamos um julgamento crítico antes de concluir. Sim, é verdade que nossas políticas protegem mais alguns interesses adquiridos do que protegem os mais pobres e os mais fracos e, ao mesmo tempo, não souberam dar suficiente importância à inovação e à modernização exigidas pelo crescimento.


O crescimento depende cada vez mais de fatores sociais como a educação, a organização do Estado, o modo de "governança" e também o modo de distribuição do produto nacional


Mas essa crítica da "velha esquerda", que se desenvolve em tantos países, não exclui de modo nenhum os pecados mortais de um capitalismo selvagem; deve, ao contrário, abrir novas frentes de reivindicações e de reformas sociais. Mesmo que seja necessário apresentar propostas muito elaboradas, o que não é possível aqui, se deve ao menos fazer duas ou três propostas que deveriam ser aceitas para que seja possível uma recuperação. A primeira é que se dê prioridade absoluta à educação, pois os menos instruídos são os mais afetados pelo desemprego. Em vez de construir barreiras, sempre derrubadas pelas mudanças, é preciso aumentar a capacidade de opção e de resistência ao desemprego do maior número de pessoas. Uma segunda proposta, tão importante quanto a primeira, é que a intervenção dos fundos públicos deve ser gerida não por um Estado centralizado, mas por instituições autônomas.

Direitos culturais
A terceira é que a ação coletiva e a intervenção do Estado devem servir antes de tudo para reforçar os direitos dos indivíduos e das coletividades e que, dentre esses direitos, os mais mobilizadores hoje são os direitos culturais, sejam os das mulheres, os do ambiente ou os de todas as minorias. É tão perigoso se limitar às críticas quanto fazer propostas estranhas à realidade. Devemos lembrar hoje os motivos pelos quais é preciso substituir a atual globalização por novas formas de regulamentação da economia, mas também e ao mesmo tempo respeitando as orientações dos atores sociais e políticos que podem nos fazer sair de uma situação insuportável, inventando um futuro que responda às necessidades do maior número de pessoas.
Mais uma palavra. Há uma grande distância entre as críticas e as propostas das quais devemos partir e a complexidade da realidade histórica, como disse Marx em meados do século 19. Mas devemos fazer opções e tomar iniciativas em razão da resposta que dermos à seguinte pergunta: essa opção, esse acordo ou esse desacordo que exprimimos nos aproxima dos princípios colocados ou nos afasta deles? E o mais importante é fazer essa pergunta, mesmo que as respostas não sejam sempre evidentes, pois é preciso antes de tudo reconstruir o espaço político. As antigas reivindicações estavam ligadas a problemas econômicos. Só sairemos da dominação do capitalismo dito global quando a maioria de nós estiver convencida da necessidade e da possibilidade da ação política.

Alain Touraine é sociólogo, diretor da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris) e autor de, entre outros, "A Crítica da Modernidade" (ed. Vozes).
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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