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De Seattle a Gênova
Uma radiografia dos movimentos antiglobalização
por Maria da Glória Gohn
O movimento antiglobalização apresenta-se,
na virada deste novo milênio, como uma das
principais novidades na arena política no cenário da sociedade civil, dada sua forma de
articulação/atuação, em redes com extensão global. Ele
tem elaborado uma nova gramática no repertório das
demandas e dos conflitos sociais, trazendo novamente
as lutas sociais para o palco da cena pública e a política
para a dimensão pública -tanto na forma de operar,
nas ruas, quanto no conteúdo do debate que trouxe à
tona: o modo de vida capitalista ocidental moderno e
seus efeitos destrutivos sobre a natureza.
O movimento antiglobalização criou um novo ator
sociopolítico de caráter mundial que pautou, na agenda
dos grandes problemas internacionais, um dos maiores
desafios do século 21: como atuar diante do choque entre as diferentes culturas nacionais e da ampliação dos
conflitos étnicos. Ele fez isso ao denunciar as contradições existentes entre a voracidade da globalização econômica no plano das nações e seus mercados e os efeitos destrutivos da globalização no plano cultural, no nível local. Ao criar esse novo repertório, ele criou uma
densa rede de resistência, expressa em atos de desobediência civil e propostas alternativas à forma atual da
globalização, considerada como o fator principal da exclusão social existente. Ele pautou também a agenda de
um outro tipo de globalização, baseada na solidariedade e respeito às culturas, voltada para um novo tipo de
modelo civilizatório, com desenvolvimento econômico
mas também com justiça e igualdade social.
Uma das características marcantes do movimento antiglobalização é a heterogeneidade de sua composição
social: ele é composto por uma rede de movimentos e
organizações sociais de espectro variado, destacando-se: defesa dos direitos humanos, estudantes, anarquistas, organizações não-governamentais, movimentos
sociais rurais, centrais sindicais, alas de partidos políticos e organizações de esquerda, redes de interlocução
de pequenos grupos etc. Cada um desses grupos tem
origens, ideologias, instituições de apoio e trajetórias
históricas diferenciadas.
Quais são os eixos dos protestos? A maioria das organizações que o compõem não é precisamente contra a
globalização em si; várias facções do movimento reconhecem que a globalização é um dado momento do
processo histórico contemporâneo. O que essas facções
contestam é a forma como a globalização se processa. O
que une as várias entidades/organizações e suas facções
num só movimento é o fato de todas serem contra a
parcela do status quo vigente que legitima uma ordem
socioeconômica e moral de injustiças, criando grandes
distâncias entre ricos e pobres, incluídos e excluídos.
Recusam-se às imposições de um mercado global, uno,
voraz. Contestam-se também os valores que impulsionam a sociedade capitalista, alicerçados no lucro e no
consumo de mercadorias supérfluas.
Entre 1998 e 2001 a bandeira central do movimento se
expressava em demandas relativas à questão das relações comerciais entre os países. Formularam-se propostas sobre a dívida externa dos países pobres (pedindo seu perdão) e a democratização dos processos de decisão das agências financeiras multilaterais; propôs-se o
imposto Tobin, a liberalização das regras do comércio
internacional, a inclusão dos direitos humanos (especialmente em relação à manipulação genética) e a destruição do meio ambiente, enfatizando-se as florestas,
nas negociações no âmbito da Organização Mundial do
Comércio.
A mídia de um modo geral é um fator de grande relevância nas ações do movimento antiglobalização. É ela
que lhe dá visibilidade mundial e o legitima por acompanhar todas as suas agendas. Entretanto o destaque
não têm sido os debates ou as propostas do movimento
nos encontros paralelos aos encontros oficiais, mas sim
as ações espetaculares dos manifestantes nas ruas, o que
aparece de exótico.
Até setembro de 2001 os protestos e as manifestações
ocorreram por ocasião das grandes reuniões de cúpula
de dirigentes governamentais, como o G-8; encontros
de dirigentes do Banco Mundial e do Fundo Monetário
Internacional; conferências de grupos e de proprietários das grandes corporações. As manifestações têm levado as autoridades locais a recriarem o estilo urbano
medieval: a cidade sitiada ("linha vermelha", segundo
os estrategistas de segurança das autoridades, "muro da
vergonha", segundo os manifestantes). Um ponto que
chama atenção, muito destacado pela mídia, são as cifras envolvidas nos eventos em termos de número de
participantes nas manifestações, recursos financeiros
envolvidos na organização e tipos de conflitos.
Cronologia dos eventos
A gênese de articulação
do movimento antiglobalização localiza-se em 1996, em
Chiapas, durante o Primeiro Encontro Internacional
pela Humanidade e contra o Neoliberalismo, organizado pelos zapatistas. Em 1997 a Global Trade Watch empreendeu uma campanha nos Estados Unidos contra a
Organização para Comércio e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e na Europa foi realizada a Marcha
Européia contra o Desemprego, com o apoio de sindicatos e organizações de direitos humanos. Em maio de
1998 ocorreram as primeiras mobilizações antiglobalização na Europa, em Genebra, convocadas pela Ação
Mundial dos Povos, durante a Segunda Conferência
Ministerial da OMC contra o Acordo Multilateral de Investimentos (AMI).
Seattle, nos Estados Unidos, foi palco, entre os dias 30
de novembro e 4 de dezembro de 1999, do início de
grandes manifestações de protesto do movimento, durante a Terceira Conferência Ministerial da OMC. Cem
mil manifestantes se reuniram naquela cidade norte-americana, até então conhecida por suas grandes bandas de rock e outros estilos musicais de jovens e por ser
sede de indústrias de alta tecnologia. Suas reivindicações ainda eram difusas, questionavam a globalização
econômica e demarcaram um novo ciclo de protestos e
mobilizações, trazendo de volta, para a cena política, os
movimentos sociais.
Seguiram-se protestos em Davos, na Suíça, local da
tradicional reunião anual do Fórum Econômico Mundial, em janeiro de 2000. Washington foi a sede do protesto seguinte, reunindo 10 mil manifestantes, na reunião do FMI e do Bird, em abril de 2000. Assim como
em Seattle, apesar do forte aparato de segurança, os
protestos geraram prisões, feridos e imóveis danificados. Em Colônia, na Alemanha, em junho de 2000,
ocorreram mobilizações e protestos de 5.000 manifestantes contra o G-8 -os sete países mais ricos e a Rússia. A questão do perdão da dívida externa esteve na
agenda.
Em 2000 ocorreram ainda protestos antiglobalização
em várias cidades importantes do mundo: em primeiro
de maio, em Bancoc, durante a reunião da Unctad; no
Japão; e em Melbourne, na Austrália, durante o Fórum
Econômico (300 ONGs se reuniram para o contestar).
Em setembro desse ano, em Praga, na República Tcheca, no encontro do FMI e do Bird, os protestos ganharam uma sigla e uma ONG para planejá-los: Inpeg
-Iniciativas contra a Globalização Econômica. As manifestações em Praga reuniram jovens de 54 países e tiveram um saldo de 150 feridos, 900 presos e danos materiais avaliados em US$ 250 mil. Em dezembro de 2000
o protesto se deslocou para Nice, na França, na conferência de cúpula da União Européia.
Ainda em 2000, o movimento teve uma primeira vitória: anunciou-se um esquema para o perdão da dívida
de 23 países paupérrimos, denominados como HIPCs
-Países Pobres Altamente Endividados.
O ano de 2001 demarca um novo ciclo no movimento
antiglobalização. O movimento ganhou força política.
No mês de janeiro ocorreu o Fórum Social Mundial, em
Porto Alegre. Planejado para contrapor-se ao fórum de
Davos, o FSM priorizou o social e não o econômico. O
debate extra-oficial ocorrido entre George Soros e representantes do FSM deu visibilidade internacional aos
que protestavam e propunham que "um outro mundo
era possível". Os ecologistas estiveram presentes em
Porto Alegre e a questão dos transgênicos roubou a cena na mídia, mas o grande tema do evento foi o da desigualdade nas relações comerciais entre os países. Antes
do movimento antiglobalização o tema gerador das discussões sobre as causas das desigualdades socioeconômicas era o da dívida externa.
Na sequência dos protestos do movimento antiglobalização, ocorreram mobilizações em Buenos Aires (Argentina) e Québec (Canadá). Em Gotemburgo, Suécia,
em junho de 2001, durante reunião para discutir a ampliação da União Européia, os conflitos foram violentos
e geraram perdas no comércio avaliadas em US$ 4 milhões. Ainda em junho, uma reunião do Bird que deveria ter ocorrido em Barcelona foi cancelada por falta de
segurança. Houve apenas uma teleconferência entre os
representantes daquela instituição financeira.
Em julho de 2001 os protestos se iniciaram no primeiro dia do mês, em Salzburgo, na Áustria, durante o Fórum Econômico Europeu. Gênova, na Itália, entre 20 e
23 de julho foi palco dos conflitos mais violentos desde
1998, durante a reunião de cúpula do G8, realizada no
Palácio Ducal. Na véspera de seu início, três cartas-bomba foram enviadas para Gênova e uma delas explodiu nas mãos de um policial. As autoridades locais isolaram a área do encontro do restante da cidade, murando o centro com placas de metal. Os líderes mundiais
foram hospedados num navio blindado equipado com
sistema antimísseis, batizado de "Visão Européia". O
custo da Conferência de Gênova, para o governo italiano, foi orçado em US$ 110 milhões; mobilizaram-se 15
mil policiais contra os 800 grupos antiglobalização presentes. Cerca de 100 mil pessoas participaram, vindas de
diferentes partes do mundo.
Em Gênova, a violência se sobrepôs aos protestos pacíficos e às manifestações de desobediência civil. Os
punks acabaram roubando a cena, pelo lado pictórico e
pelo lado trágico -um de seus manifestantes morreu
baleado, depois o corpo foi atropelado e massacrado
pelo jipe no qual estava o policial que o alvejou. As imagens de sua morte foram apresentadas pelas televisões
do mundo todo, causando comoção, protestos e indignação. A escola utilizada para realizar a reunião paralela, alternativa à do G8, no último dia do encontro foi invadida, ocorreram confrontos e prisões de participantes do movimento. Milhares de pessoas marcharam em
várias partes do mundo para protestar contra a violência policial em Gênova.
Depois de Gênova e de 11 de setembro
Os acontecimentos de 11 de setembro nos Estados Unidos alteraram completamente a agenda do movimento antiglobalização. A reunião do FMI e do Bird que deveria ter
acontecido em Washington, em 29 e 30 daquele mês, foi
cancelada; remarcou-se, posteriormente, um encontro
em Ottawa, Canadá, para 17 e 18 de novembro de 2001.
O movimento reviu sua estratégia e transformou o que
deveria ser um ato de protesto em Washington numa
manifestação pela paz em vários locais do mundo, inclusive em Washington, pois pessoas e a infra-estrutura
necessária já estavam mobilizadas. Os atos terroristas
nos Estados Unidos passaram a ser um problema para o
movimento, pois qualquer contestação à globalização
podenser confundida como atos que envolvem perigo à
segurança dos cidadãos.
Da parte dos líderes econômicos o dilema é onde realizar as reuniões. Cercas gigantescas isolando-os foi a
solução arquitetada. Os fóruns tendem a ser ou cada vez
mais fechados ou com diferentes formas de articulação
política -atuando, por exemplo, apenas on line; ou incluindo, de alguma forma, como interlocutores, representantes dos que protestam, para debaterem soluções
para os problemas mundiais.
Em novembro de 2001, na Conferência da OMC em
Doha, Qatar, o movimento realizou algumas manifestações tímidas, como nas Filipinas. O cenário pós-atentados, a localização de Doha e o rígido sistema de credenciamento dificultaram as ações do movimento, o protesto mais expressivo foi a presença do navio símbolo
do Greenpeace, "Rainbow Warrior", no porto de Doha.
2001 encerrou-se com mais duas manifestações: em
Otawa, Canadá, em novembro, na reunião do G20, FMI
e Bird. Os protestos foram pacíficos e a mídia deu mais
atenção à reunião oficial. Em Bruxelas, em dezembro,
houve protestos na reunião da União Européia. Para
2002 o 2º Fórum Social Mundial (Porto Alegre) e a 2ª
Conferência Solidária Internacional da Asia e Oceania,
na Austrália prometem a retomada do movimento em
outro estilo: propositivo.
O clima pós-atentados levou a revisão das agendas de
cúpulas mundiais.O Fórum Econômico de 2002, de Davos, foi transferido para Nova York.
Os significados do movimento
Os movimentos
sociais, com seus fluxos e refluxos, são um campo de
força sociopolítica, e suas ações impulsionam mudanças sociais diversas. O repertório de lutas que eles constroem demarca interesses, identidades, subjetividades e
projetos de grupos sociais. O que o movimento antiglobalização está demonstrando é que as lutas sociais voltaram à cena internacional como fonte de pressão por
mudanças que levem a transformações do modelo civilizatório em curso. Ele foi gerado pelo próprio sistema a
que se contrapõe: a globalização capitalista.
Diferentemente dos anos 80 -quando as lutas dos
grupos e movimentos eram essencialmente pelo reconhecimento da identidade sociocultural de seus participantes (ser negro, mulher, índio, ambientalista, homossexual etc.)-, a gramática atual do movimento antiglobalização une as causas daquelas lutas às causas objetivas, dadas pela estrutura econômica e por imposições
do mercado numa economia globalizada. Com isso, os
conflitos sociais ganham caráter universal e o movimento social retoma as antigas polaridades: dominantes x dominados, ricos x pobres, típicas dos movimentos sociais dos anos 60 e 70. A novidade no movimento
antiglobalização é que ele está unindo, sem apagar as diferenças, num campo de ação comum, grupos políticos
e tribos culturais que até então nem sequer se sentavam
juntos para dialogar, ou seja, o movimento antiglobalização é, em si, um novo ator sociopolítico.
A realização das demandas do movimento é um desafio gigantesco para as forças democráticas do planeta
pois implica um modelo que respeite as diversidades
culturais dos povos e nações sem se submeter a nenhuma delas, pois cada uma contém seus imperativos e
constrangimentos étnicos, religiosos e raciais.
Maria da Glória Gohn é professora titular da Faculdade de Educação
da Universidade Estadual de Campinas e autora de, entre outros,
"Teoria dos Movimentos Sociais" (Loyola).
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