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+ brasil 500 d.C.
Para Nabuco, se o Brasil tivesse sido descoberto três séculos depois, seria
"sadio" como a Austrália ou o Canadá
Reler "O Abolicionismo"
Evaldo Cabral de Mello
Na sua análise do impacto global da
instituição servil sobre a vida brasileira, Nabuco não hesita mesmo em
aventurar-se ao exercício do que hoje
chamaríamos história virtual ou contrafactual. Segundo ele, "ninguém pode ler
a história do Brasil no século 16, no século 17 e em parte do século 18 (...) sem
pensar que a todos os respeitos houvera
sido melhor que o Brasil fosse descoberto três séculos mais tarde".
Nabuco não explica porque, mas seu
pressuposto parecer ser o de que a colonização tardia da América portuguesa se
teria processado numa conjuntura internacional bem diversa, em que os interesses e o poder da Inglaterra e os valores
dominantes do Iluminismo e da Revolução Francesa teriam tornado inviável a
implantação de um regime escravista na
América portuguesa, ao menos na escala
que adquirira no passado.
É certo que o nosso desenvolvimento
não teria sido tão acelerado como o das
colônias de língua inglesa, de vez que
Portugal não dispunha dos recursos materiais das grandes potências. É certo
também que a população seria substancialmente menor, embora tivesse a vantagem de ser culturalmente homogênea,
sem falar em que os efeitos colaterais da
escravidão, como a grande propriedade
e a depredação do meio ambiente, não
teriam avançado a ponto de prejudicar a
economia e esterilizar o trabalho.
O que Nabuco tinha em vista era contestar o argumento de Oliveira Martins,
que, em "O Brasil e as Colônias Portuguesas", pretendera que o trabalho escravo fora o preço a pagar pelo povoamento, pois, sem aquele, este não teria sido possível. "Isso é exato", admite Nabuco, "mas esse preço quem o pagou e está
pagando não foi Portugal, fomos nós; e
esse preço a todos os respeitos é duro demais e caro demais para o desenvolvimento inorgânico, artificial e extenuante
que tivemos".
A nódoa da escravidão
E num julgamento tanto mais insuspeito quanto,
ao contrário de muitos intelectuais brasileiros da época, ele nunca cedeu à tentação do antilusitanismo, Nabuco assinalava: "A africanização do Brasil pela escravidão (pela escravidão, note-se bem,
não pela presença africana) é uma nódoa
que a mãe-pátria imprimiu na sua própria face, na sua língua e na única obra
nacional verdadeiramente duradoura
que conseguiu fundar".
Poder-se-ia sustentar que, sem a escravidão e sem a economia açucareira de
que ela fora a base, o Brasil teria sido perdido para sempre por Portugal, de vez
que não lhe teria sido possível repelir a
ocupação holandesa, mas é provável que
ele estivesse "crescendo sadio, forte e viril como o Canadá e a Austrália".
Ao contrário da grande maioria de brasileiros cultos da época, Nabuco não
acreditou no argumento da inadaptação
climática do europeu aos trópicos, tanto
mais, lembrava, que as populações da
Europa meridional haviam recebido ao
longo da sua história uma dose considerável de sangue mouro e africano. E concluía: "Ninguém podia dizer o que teria
sido a história se acontecesse o contrário
do que aconteceu", de vez que, entre um
Brasil holandês ou francês, explorado
por escravos, e um Brasil português
igualmente escravocrata, "ninguém sabe
o que teria sido melhor".
Colonização gradual
O que, contudo, não lhe parecia duvidoso é que, entre um Brasil lusitano e escravocrata e
um Brasil lusitano sem instituição servil,
"a colonização gradual do território por
europeus, por mais lento que fosse o processo, seria infinitamente mais vantajosa
para o destino dessa vasta região".
Nabuco examina outro par de alternativas que, à primeira vista, poderia parecer acadêmico, mas que ilustra uma vantagem a mais da sua desatualização relativamente às teorias sociológicas em voga: "Entre o Brasil explorado por meio de
africanos livres por Portugal, e o mesmo
Brasil, explorado com escravos também
por portugueses, o primeiro a esta hora
seria uma nação muito mais robusta do
que é o último".
É sabido que a doutrina da desigualdade inata entre as raças exerceu duradoura influência sobre o pensamento brasileiro dos finais do Segundo Reinado e ao
longo da República Velha. Foram elas
que forneceram as bases reputadas científicas para nossas atitudes modernizadoras predominantes até os anos 30 do
século 20.
Nabuco, porém, nunca embarcou nessa canoa, embora sua oposição ao plano
de imigração chinesa do gabinete Sinimbu possa insinuar uma dúvida a respeito.
Mas tanto em "O Abolicionismo" (Ed.
Nova Fronteira) quanto nos discursos do
Recife, o essencial para ele não é a raça,
mas a organização social. Já vimos que,
ao se referir à "africanização do Brasil",
tivera o cuidado de acrescentar a qualificação "pela escravidão". É certo que,
noutro trecho, ele assinala que "muitas
das influências da escravidão podem ser
atribuídas à raça".
Mas, quando examinamos os exemplos que dá, constata-se que a palavra
"raça" é empregada sem rigor conceitual, desleixadamente, se é que ela possa
ser jamais utilizada de maneira precisa.
A prova é que Nabuco enumera sob essa
etiqueta características que hoje seriam
consideradas de natureza cultural, como
a influência da religiosidade africana ou
a corrupção da língua portuguesa através da escravidão doméstica.
Nação de proletários
A escravidão
fizera do Brasil uma nação de proletários, "porque os descendentes dos senhores logo chegam a sê-lo". No setor
agrícola, a população formalmente livre
achava-se de fato submetida à grande
propriedade, na sua condição de moradores, de meeiros, de condiceiros. Tais
camadas, equivalentes a 10 ou 12 milhões
de habitantes, tinham uma autoconsciência inferior à do próprio escravo.
Mas o regime servil condicionara
igualmente a sorte das populações que
não lhe estavam diretamente vinculadas,
que se dedicavam a atividades econômicas que não empregavam o trabalho escravo e que até ocupavam diferente espaço físico. A atividade comercial era também entorpecida. É certo que, anteriormente à abolição do tráfico, as relações
entre ela e o trabalho escravo haviam sido da maior intimidade, pois o comércio
abastecera a lavoura de mão-de-obra ao
longo de três séculos, sendo o seu autêntico banqueiro.
Com o fim do tráfico, tais relações se
haviam tornado menos estreitas, mas a
dependência continuava inalterável,
pois os principais clientes do comércio
eram donos de escravos, de modo que
ele seguia sendo um prolongamento do
escravismo, "o mecanismo pelo qual a
carne humana é convertida em ouro e
circula, dentro e fora do país, sob a forma
de letras de câmbio".
Mercado de eleitores
Através do
crédito, a escravidão reduzira o fazendeiro de café e o senhor de engenho a um
"empregado agrícola que o comissário
ou o acionista de banco tem no interior
para fazer o seu dinheiro render acima
de 12%", afirmação que dá a pista para
rever uma das falsas idéias mais persistentes da historiografia brasileira, a da
dominação irrestrita da grande lavoura
sobre o processo de decisões do Segundo
Reinado.
Nabuco encarou com ceticismo a eficácia das reformas políticas do Segundo
Reinado, pensando que, devido à escravidão e às instituições ancilares, todas essas reformas produziriam efeitos perversos. Da Lei Saraiva, que criara o voto direto, para dar representatividade ao sistema político, resultara apenas o crescimento da participação escravocrata no
Parlamento, convertido "num verdadeiro Congresso Agrícola". A revisão do sistema de recrutamento, que visara podar
a influência dos grandes proprietários
sobre as camadas livres da população,
dera apenas lugar ao "serviço obrigatório da enxada". Após haver criado o mercado de escravos, o regime servil inventava "o mercado de eleitores".
Evaldo Cabral de Mello é historiador e diplomata
aposentado. É autor, entre outros livros, de "Olinda
Restaurada", "Rubro Veio" e "O Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669" (Ed.
Topbooks) e "O Nome e o Sangue" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500
d.C.",da Folha.
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