|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
+ última palavra
Um dos mais atuantes tradutores do país, responsável pelo "sotaque" brasileiro de Thomas Pynchon, John Updike, V.S. Naipaul e Salman Rushdie, fala sobre o seu trabalho
As aspas da tradução
Maurício Santana Dias
enviado especial ao Rio
Ao contrário do que ocorre com outras profissões, ninguém nasce pensando: "Vou ser tradutor". Paulo
Henriques Britto, 48, não é uma exceção. Tornou-se tradutor profissional
um pouco por acaso, outro tanto por
pragmatismo e em grande parte pelo
prazer da literatura. Hoje ele é um dos
mais atuantes tradutores da língua inglesa no país, responsável pelo "sotaque" brasileiro de autores como
Henry James e Don DeLillo, Lord
Byron e V.S. Naipaul, Wallace Stevens
e Salman Rushdie.
Para breve, serão publicados na tradução de Paulo Henriques o último livro de contos de John Updike e uma
novela de Alberto Manguel, "Stevenson à Sombra das Palmeiras". Ele prepara ainda a tradução do romance
"Mason and Dixon", de Thomas
Pynchon, e uma nova antologia de
poemas de Elizabeth Bishop -de
quem organizou e publicou, no ano
passado, "Poemas do Brasil".
Em meados dos anos 70, Paulo
Henriques abandonou a idéia de fazer
cinema, graduou-se em letras e ajudou a fundar uma associação de tradutores, junto com Paulo Rónai e Magalhães Jr. "Eu, com o cabelo nas costas, me sentia completamente deslocado no meio daqueles velhinhos". A
partir de então, começou a trabalhar
regularmente para várias editoras, como a Brasiliense e a L&PM.
"No final dos anos 80, Luiz
Schwarcz me convidou para trabalhar na editora que ele estava criando. Achava que eu
tinha faro editorial e logo de cara me fez duas consultas. Primeiro, me mandou um livro sobre socialismo, escrito na década de 40 e esgotado nos EUA havia anos, e eu disse: "Luiz, esse livro não tem nada a
ver, o socialismo está em baixa". Acabei traduzindo
"Rumo à Estação Finlândia" (de Edmund Wilson),
"meu" único best seller até hoje. A outra consulta foi
sobre o nome da editora. Ele falou: "O nome que está
ganhando aqui é Companhia das Letras...'; e eu: "Mas
que idéia horrorosa, que falta de imaginação, Luiz!".
Depois disso, ele nunca mais me perguntou nada, só
me manda os livros e eu traduzo", relembra.
Hoje Paulo Henriques divide seu tempo entre os
trabalhos que faz para a Companhia das Letras e as
aulas de tradução literária na PUC-RJ (Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro). Embora
reconheça que a tradução é tarefa espinhosa e quase
sempre ingrata -quando o trabalho é bom, poucos
percebem, quando é ruim, todos gritam-, ele afirma que o campo de trabalho não pára de crescer e
que a propalada automatização da tradução, pelo
menos da literária, é pura balela.
Nesta entrevista feita no Rio, Paulo
Henriques, que também é o poeta dos
livros "Mínima Lírica" (Duas Cidades) e "Trovar Claro" (Companhia
das Letras), comenta o ofício da tradução e não hesita em dizer que, para
traduzir, é preciso renunciar à idéia
de autoria: "O tradutor é um autor
entre aspas. Para traduzir, é preciso
antes de tudo humildade".
Como você se tornou tradutor?
Antes de me profissionalizar, traduzia por puro gosto. Até que um dia a
sorte me deu um empurrão. Soube
que a Brasiliense estava precisando de
tradutor e então escrevi uma carta em
que mencionava meu interesse e dizia
que já tinha um romance traduzido,
de Nathanael West, "Miss Corações
Solitários". Por coincidência, eles tinham acabado de comprar os direitos
do livro e terminaram publicando o
meu trabalho.
Como é a rotina de um tradutor?
Eu particularmente sou muito disciplinado. Nos dias em que não dou aula, acordo às 7h e começo a trabalhar
por volta das 8h30. Às 12h30, paro, almoço, dou uma caminhada pelo bairro (Laranjeiras) e volto ao trabalho lá
pelas 15h, daí até 20h. Essa rotina tem
seu preço: vivo sob a ameaça da LER
(Lesão por Esforço Repetitivo), causada pelo excesso de digitação.
Para tentar escapar do problema já
tentei de tudo. Hoje eu faço pequenas
interrupções a cada 50 minutos de
trabalho contínuo. Aproveito para ler
os e-mails, buscar algo na Internet,
pôr um disco. Gosto de ouvir música de câmara enquanto trabalho. Além disso, tenho sessões periódicas de massagem. Mas agora comecei a usar uma ferramenta que vai me ajudar bastante. É um programa
que transcreve o texto ditado em inglês, o NaturallySpeaking. Isso poupa um pouco minhas mãos
quando faço versão. Falta agora comprar o programa equivalente da IBM para o português, o Via Voice.
Quanto você produz, em média?
Varia conforme o autor que estou traduzindo. O livro do Pynchon ("O Arco-Íris da Gravidade"), por
exemplo, era muito complicado. Traduzia poucas
páginas por dia. Agora, quando se trata de um livro
standard, como os de um Updike, numa boa manhã
faço umas dez laudas.
Mas o trabalho não acaba aí. Depois da versão inicial, há o cotejo linha a linha com o texto fonte. Só
então faço a revisão final. Essa última etapa do trabalho, de sintonia fina, é muito gostosa. Aí uso bastante
o "Aurélio", mexo nos tempos verbais, corto pronomes e advérbios.
A grande descoberta de minha vida foi quando comecei a fazer o cotejo após cada capítulo. Antes, fazia
do livro inteiro de enfiada -era insuportável. Na
época da máquina manual, então, era um inferno.
Era preciso redatilografar o trecho e emendá-lo no
original com fita adesiva.
Como está o mercado de tradução?
É bom e não pára de crescer, sobretudo depois da Internet. Essa história de que a tradução será feita por
máquinas é balela; como uma máquina vai traduzir
um poema ou um romance? Quanto a mim, o único
momento em que quase me vi sem trabalho foi
quando o governo Collor confiscou as poupanças.
Estava fazendo um livro do Anthony Burgess, e os
editores mandaram parar tudo. Foi aí que, por coincidência, descobri uma nova área de atuação, a versão para o inglês, um trabalho muito bem-remunerado. Já fiz para a editora da Universidade Stanford a
versão de dois livros de Luiz Costa Lima e de um da
Flora Süssekind, além de muitos papers. Frequentemente faço esse tipo de trabalho.
Você costuma ter contato com os autores que traduz?
Sempre que posso, me comunico com eles. John Updike, por exemplo. Com Salman Rushdie foi mais
complicado. Como ele vive sob custódia, todo contato era intermediado pela Scotland Yard. Mas mesmo
assim Rushdie respondeu a um dos fax que lhe mandei. Noutros casos, evito ao máximo conhecer o escritor. Foi o caso do V.S. Naipaul, um sujeito terrível.
Uma vez lhe mandei uma carta com algumas consultas e ele me mandou uma resposta mal-humorada.
Anos depois, quando ele veio ao Rio, a editora quis
que eu o acompanhasse num almoço. Não fui, não
quero conversa com ele. No entanto, um dos melhores livros que já traduzi foi dele, "Uma Casa para o
Sr. Biswas".
Como foi sua correspondência com Thomas Pynchon?
Essa foi a grande surpresa. O Pynchon é uma figura
folclórica, não dá entrevista a ninguém e dele se sabe
muito pouco. O livro era difícil, um romance extraordinário e muito complexo, cheio de referências
as mais diversas: numa hora ele cita Proust, noutra,
Pernalonga. Eu já tinha perdido as esperanças de poder contar com a ajuda dele e estava assustado com a
tarefa que tinha pela frente. Mas, para meu espanto,
ele foi a pessoa que mais me ajudou até hoje.
Ficamos 11 meses nos "falando" por fax (Pynchon
não usa e-mail). Embora a gente falasse quase exclusivamente dos problemas da tradução -o esclarecimento de uma referência, de uma passagem mais
obscura, de termos técnicos-, descobri que
Pynchon vive em Manhattan e é casado com a sua
agente literária.
Como ele não se deixa fotografar, ninguém o conhece. Tenho montes de fax enviados por ele, alguns
com mais de oito páginas, todos datilografados em
máquina elétrica. Ele me esclareceu muitos pontos,
foi simpaticíssimo. Mas, mesmo assim, tive de incomodar muita gente, especialistas em diversas áreas:
o bom tradutor é antes de tudo um chato.
Você se lembra de alguma gafe que tenha cometido?
Um dos textos que mais me deram trabalho foi "O
Campo e as Cidades", de Raymond Williams, que
traduzi nos anos 80. Tive muitas dúvidas sobre termos históricos. Mas, mesmo consultando vários historiadores, acabei deixando passar uma mancada:
traduzi "common" (rossio, em português) por uma
bobagem qualquer, nem me lembro o quê. Só fui
descobrir a tradução correta no ano passado.
Qual a sua escola de tradução?
Na verdade, não sou um estudioso de teoria da tradução, embora esteja a par das discussões mais recentes. Hoje há uma corrente muito forte, liderada
pelo americano Lawrence Venuti -ótima pessoa e
um estudioso brilhante, mas com quem não concordo em quase nada-, que defende que o tradutor é
uma espécie de categoria oprimida, como os negros
e os homossexuais, quando na verdade ele é tão responsável pelo texto final quanto o autor. A saída proposta por ele é que o tradutor deixe de ser "transparente" e imprima sua marca autoral no texto traduzido. Estou mais de acordo com a posição do australiano Anthony Pym, para quem o lugar de afirmação
do tradutor é o prefácio, são as notas, as entrevistas
etc. No momento em que estamos traduzindo, temos de abrir mão da idéia de autoria. Se eu acho que
o livro está mal escrito, tento escrever o pior possível.
Enfim, o tradutor tem de ser humilde, mas falar de
humildade nos tempos de hoje é difícil.
Texto Anterior: Ponto de fuga - Jorge Coli: Torniamo all'antico Próximo Texto: José Simão: Carnaval 2000! Bundas e paetês! Índice
|