São Paulo, domingo, 27 de março de 2005

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Ponto de fuga

Uma divina imagem


Cena de "Uma Rajada de Balas", de Arthur Penn, que faz parte do livro de Scorsese


JORGE COLI
COLUNISTA DA FOLHA

Posso ver grandes semelhanças entre uma igreja e uma sala de cinema. Ambos são lugares onde as pessoas se reúnem e compartilham uma experiência comum. Acredito que haja uma espiritualidade nos filmes. (...). É como se o cinema respondesse por uma busca antiga pelo inconsciente coletivo. Eles satisfazem a necessidade espiritual de compartilhar uma memória comum."
Essas frases concluem o livro "Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Americano", versão em papel do documentário que Martin Scorsese havia dirigido para o British Film Institute, em 1994. A leitura acentua e amplia o peso reflexivo das idéias. Sem a secura das ginásticas mentais, tão freqüentes nos teóricos, atinge a natureza da criação cinematográfica. No cerne dela está o diretor. Ele é o responsável pela obra, o verdadeiro autor, não no sentido sumário que se confere, com freqüência, ao termo, pressupondo uma liberdade absoluta na concepção e na realização.
Mas uma autoria que leva em conta limites materiais, técnicos, e também pressões comerciais, morais, ideológicas: "Para sobreviver, para controlar o processo criativo, cada cineasta teve que desenvolver sua própria estratégia", diz o livro. O dilema, o contador de histórias, o ilusionista, o contrabandista, o iconoclasta, denominam os capítulos. Formam os modos de ser diretor de cinema.
Scorsese toma exemplos de filmes conhecidos ou raros, ilustrados por diálogos e fotos, na edição sedutora da Cosacnaify. É difícil lembrar de um outro livro que transmita tanto amor por essa grande arte e ofereça tantas e tão boas chaves intelectuais para compreendê-la.

Máscara
"La Beauté a Outrance, Reflexions sur l'Abus Esthétique" (A Beleza em Excesso, Reflexões sobre o Abuso Estético), é um livro recente de Jean Galard (Actes Sud). De questão em questão, traça meandros, propulsando o leitor, que avança, ávido. Reflete sobre o horror no mundo contemporâneo e sua representação. Fala das imagens, que podem ser testemunho ou obra de arte. Avança por desvios: a crueldade no teatro; a assepsia nos museus; a cirurgia plástica; a dilatação da neutralidade, que se consuma na TV; a volúpia da destruição e da catástrofe. Mas o que inquieta e constitui o núcleo de um tropismo estimulante é a associação da beleza e do terrível.
Jean Galard parte das fotos de Sebastião Salgado, que foram objeto de crítica na imprensa internacional, por embelezarem o horrendo. Beleza e miséria, ou violência, podem se associar legitimamente? A questão é examinada em todas suas costuras. Mas a resposta não vem. Nem pode vir. Ao se perguntar por que a reação indignada ocorre diante de uma foto de Salgado, mas não da "Crucifixão" de Grunewald, por exemplo, o autor se esqueceu de interrogar a própria noção de beleza. Nem é ouro tudo que cintila nem é belo tudo que parece.

Afiado
Tristeza que, salvo erro, exista apenas um título de Daniel Arasse publicado no Brasil: "A Guilhotina e o Imaginário do Terror" (Ática). Obra excelente, mas circunscrita em tema estreito, não dá a medida do grande historiador da arte que ele foi.
Há muitas outras, essenciais: seu Leonardo da Vinci, seu Vermeer, seu Rafael, seu livro sobre o detalhe na pintura, ou seu ensaio sobre a perspectiva associada ao tema da Anunciação.

Citação
Do livro de Daniel Arasse "On n'y Voit Rien" (Não Se Enxerga Nada, editora Denoël), um trecho sobre um quadro do século 15, pintado por Cossa: "No suntuoso palácio de Maria, no momento (quão sagrado!) da anunciação, uma lesma gorda caminha, olhos bem estendidos, do anjo para a Virgem, e você fica quieto? E no primeiríssimo plano! Um pouco mais, veríamos o rastro que sua baba deixa atrás dela! No palácio de Maria, tão limpa, tão pura, a Virgem imaculada, esse bicho babão bagunça: é tudo, menos discreto. Em vez de escondê-lo, o pintor o pôs diante dos nossos olhos, inevitável. A gente acaba por ver só a ele, pensar só nele, só nisso: o que é que ele está fazendo ali?".

Jorge Coli é historiador da arte.
e-mail: jorgecoli@uol.com.br


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