São Paulo, domingo, 27 de março de 2005

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O serial killer social

Ícone do cinema político e diretor de clássicos como "Z" e "Estado de Sítio", Costa-Gavras, que vem ao Brasil nesta semana, explica à Folha seu recente "O Cutelo", sobre a história de um executivo que perde o emprego e passa a matar "por pragmatismo" seus potenciais concorrentes

MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO

Principal autor de dramas políticos da história do cinema, Constantin Costa-Gavras (1933) acaba de lançar na França um novo filme, "Le Couperet" [O Cutelo] -drama policial e realista que procura denunciar a atual crise social no país. Na semana passada, o filme ocupava o quarto lugar em bilheteria entre os filmes mais vistos no país.
"Le Couperet" escapa das limitações ideológicas e do engajamento associados ao gênero político para abordar a história de um "serial killer social", que não mata por prazer, mas "por pragmatismo", como disse à Folha, em entrevista por telefone.
O protagonista do filme é um executivo que perde o emprego e tem dificuldades de recolocação. Diante dos poucos cargos disponíveis, resolve eliminar seus concorrentes da forma mais drástica: matando-os. É uma versão moderna de "Monsieur Verdoux", de Charles Chaplin, em que este interpreta um "gentleman amoral", criado a partir de argumento de Orson Welles, que pretendia filmar a história do Barba Azul.
O personagem de Chaplin ainda ecoava a Segunda Guerra e antecipava o macarthismo, que viria nos anos seguintes. O Carlitos transformado em serial killer chocou os americanos e foi uma das razões que forçaram a saída de Chaplin dos EUA. Assim como o Hannibal Lecter, popularizado pelo filme "O Silêncio dos Inocentes", seu serial killer faz parte de uma estirpe de personagens que são sintomas sutis de uma doença social. Se Chaplin enxergava um mundo sombrio egresso do fascismo, Costa-Gavras vê um mundo turvo recém-saído do colapso do comunismo, como explica na entrevista.
Costa-Gavras é uma eminência parda do cinema francês, uma voz respeitada por sua mensagem humanista e antifascista que não se rende a modismos. Filma com regularidade há décadas, já dirigiu a Cinemateca Francesa nos anos 80 e tem o prestígio de um Urso de Ouro em Berlim ("Muito Mais Que um Crime", 89), uma Palma de Ouro em Cannes e um Oscar (ambos por "Desaparecido - Um Grande Mistério", de 82), além de diversos outros prêmios. Com "Amém" (2002), polemizou ao denunciar as ligações entre a igreja e a Alemanha nazista.
Autor de outros clássicos do gênero como "Z" (1968), "Estado de Sítio" (1973) e "Seção Especial de Justiça" (1975), Costa-Gavras participa a partir da próxima terça-feira do Seminário Internacional de Cinema e Audiovisual que acontece na Bahia (leia texto abaixo).

Folha - O personagem principal de "Le Couperet" é um desempregado que comete assassinatos. Ele traduz uma doença da sociedade?
Costa-Gavras -
O meu personagem é um "serial killer" social. Não mata por vício nem por prazer nem por problemas psicológicos, mas o faz por pragmatismo. Ele está em guerra. A globalização o coloca em estado de guerra. No liberalismo há o dogma de que quem é o melhor ganha. Isso o afeta. Ele decide, então, virar predador e, como tal, decide atingir aqueles que podem prejudicar seu caminho.

Folha - Há semelhanças entre seu "serial killer" e outros retratados no cinema, como "M - O Vampiro de Düsseldorf", criado por Fritz Lang no início do século 20? Há alguma semelhança entre a Alemanha dos anos 20 e a Europa de hoje?
Costa-Gavras -
É sempre difícil definir ou precisar uma doença social. Mas é fácil afirmar que há uma crise enorme na nossa sociedade, uma crise filosófica, ideológica e ética. Isso acontece porque o homem não conta mais, é a economia que conta. O homem se sente completamente colocado de lado. Não é mais a economia que é feita para o homem. O homem é que passou a servir à economia. Essa é a idéia que tenta nos impor esse liberalismo, cada vez mais dominante. Essa é a crise, essa é a doença, se formos chamá-la assim.

Folha - Por que o sr. escolheu fazer uma adaptação do romance policial de Donald E. Westlak? A abordagem foi social ou política?
Costa-Gavras -
É um tema social. Ao mesmo tempo, em alguns aspectos, não é um gênero social realista. Em outros, é realista. O conteúdo dos livros de Westlak correspondia ao que eu desejava falar sobre a sociedade francesa de hoje, do problema econômico e do problema do comportamento das grandes companhias francesas e internacionais em relação aos homens.

Folha - O sr. é famoso pelos seus dramas políticos. O que o sr. pensa do cinema político hoje? O sr. acha que o cinema político está evoluindo para um cinema de dramas sociais?
Costa-Gavras -
Primeiramente acho importante definir o que entendemos por política. Para mim não se trata "da política", mas "de políticas". É um conjunto de comportamentos e de relações da sociedade como é organizada atualmente. E o cinema, eu acho, não pode ficar indiferente, de uma forma geral, ao que acontece em nossa sociedade.
A conclusão disso, do meu ponto de vista, é que quase todos os filmes são políticos. Ou ele fala da sociedade, ou não. Se ele se dirige a milhares ou a milhões de pessoas. Portanto há uma responsabilidade política dos autores diante do público.

Folha - Nos festivais internacionais os filmes com conteúdo político e social têm ganho um espaço maior. Há uma tendência nesse sentido?
Costa-Gavras -
Sim, é incontestável que há uma tendência. Pode-se dizer que, há alguns anos, acontecem coisas muito importantes na sociedade, depois da queda do bloco comunista. Há um tipo de uniformização que está se instalando, um tipo de dogma da uniformização que o [o presidente dos EUA] George W. Bush quer impor, que sua administração deseja impor, é uma coisa muito inquietante para o mundo. Acho que toda uniformização é um atentado à cultura, à especificidade e à liberdade de uma sociedade.
É por isso que há alguns anos começamos a lutar na França pela exceção cultural [lei que garante cotas para a produção e distribuição de produtos nacionais], no âmbito europeu e mesmo mundial. É essa uniformização que inquieta muito os cineastas e é por isso que estão sendo realizados muitos filmes que tentam explorar o que está acontecendo e o que pode vir a acontecer também.

Folha - Os cineastas souberam enfrentar essa uniformização?
Costa-Gavras -
É uma pergunta complicada porque, inicialmente, não há apenas aspectos negativos na globalização. Veja, o cinema é o primeiro "globalizador" da cultura. Graças ao cinema, pudemos conhecer os homens e as culturas de todos os continentes. Hoje é difícil captar exatamente o que isso significa.
No aspecto econômico os efeitos são claros. As 500 maiores empresas privadas do mundo controlam quase 55% do PIB mundial. As cifras são tão grandes e tão pequenas ao mesmo tempo que isso se torna inquietante. Que 500 empresas controlem 5 bilhões de pessoas... Mas o cinema não se reporta a isso diretamente. O cinema não fala de cifras... O cinema é um espetáculo, e as cifras, por mais espetaculares que sejam, não dão um bom filme...

Folha - Sei que é difícil para um cineasta comentar a produção de outros, mas o que o sr. acha do trabalho de cineastas como Mike Leigh, Ken Loach e Robert Guédiguian, diretores que fazem parte dessa revalorização do cinema de crítica social.
Costa-Gavras -
É uma tendência... Mike Leigh e Ken Loach, que você citou, fazem um trabalho formidável há muitos anos, assim como Guédiguian. É evidente que há uma nova necessidade de falar da sociedade contemporânea.
O que podemos lamentar é que esse é um tipo de cinema que se faz cada vez menos nos EUA, que sempre foi o líder mundial desse tipo de filme -que podemos chamar de cinema social- nos anos 30, 40, 50 etc. Aprendemos muito com esse cinema norte-americano.
Mas esse cinema norte-americano praticamente não existe mais ou se faz muito pouco. Faz-se, felizmente -ou se tenta fazê-lo-, no resto do mundo, principalmente na Europa. Há vários autores na França e na Alemanha e muito poucos na Itália, infelizmente. Mas não posso fazer uma lista. Os que eu deixar de citar vão poder dizer que gosto de uns, e não de outros...

Folha - Qual é sua opinião sobre o cinema de Michael Moore, que foi premiado no último Festival de Cannes e no penúltimo Oscar?
Costa-Gavras -
Gosto do Michael Moore [risos[, acho um panfletário formidável. Não há mais ninguém no mundo hoje que faça esse tipo de filme, principalmente nos EUA. Por isso acho que é um cinema muito interessante e mesmo importante.

Folha - O sr. conhece os filmes de conteúdo social que foram feitos no Brasil nos últimos anos? "Cidade de Deus", por exemplo?
Costa-Gavras -
Vi o filme, sim. Infelizmente vi poucos filmes brasileiros nos últimos anos. O Cinema Novo, para nós europeus -de qualquer forma para mim, pessoalmente-, traduz um período extraordinário de criação e de liberdade dentro de um sistema que era muito duro, o militar. Há muita vontade na França, atualmente, de se assistir ao cinema brasileiro.

Folha - O sr. viu "Diários de Motocicleta", de Walter Salles?
Costa-Gavras -
Eu vi... É difícil de falar do filme. É bonito, mas ao mesmo tempo pensamos que Che Guevara é uma pessoa diferente daquela retratada no filme...

Folha - Como o cinema de conteúdo social pode afetar a sociedade?
Costa-Gavras -
Desde o seu nascimento o cinema afetou a sociedade de diversas maneiras. Eu venho da tradição da tragédia grega, que nasceu junto com a democracia. O cinema para mim representava e representa o espetáculo da tragédia grega, um papel muito importante na nossa sociedade. Ainda se fala de Édipo, de Antígona, acho que o cinema representou e continua a representar um papel muito importante na nossa sociedade.
Infelizmente, é a TV que deveria estar representando esse papel. Mas ela está programada atualmente para dar dinheiro, e não para difundir a cultura e a pedagogia.

Folha - Na sua opinião que país pratica esse cinema atualmente?
Costa-Gavras -
Os filmes da América Latina, da África e de outros lugares são muito importantes porque falam de seus países e de suas sociedades. Os filmes norte-americanos falam cada vez menos disso.

Folha - O seu primeiro filme era uma adaptação de romance policial. E agora o sr. retorna ao gênero... Ainda é possível fazer um cinema de gênero? Não é cada vez mais difícil?
Costa-Gavras -
Acho que é possível. Principalmente porque é uma forma de falar sobre coisas da nossa sociedade de que não poderíamos falar de outra forma. Foi por isso que escolhi fazer essa adaptação. Tem um pouco a ver com a tradição do policial norte-americano e também do policial francês. É uma forma indireta de falar com um certo realismo de nossa sociedade.

Folha - O que o sr. espera transmitir em sua vinda ao Brasil?
Costa-Gavras -
Primeiro quero escutar muito o que dizem os brasileiros e os latino-americanos...


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