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O serial killer social
Ícone do cinema político e diretor de clássicos como "Z" e "Estado de Sítio", Costa-Gavras, que
vem ao Brasil nesta semana, explica à Folha seu recente "O Cutelo", sobre a história de um
executivo que perde o emprego e passa a matar "por pragmatismo" seus potenciais concorrentes
MARCOS STRECKER
DA REDAÇÃO
Principal autor de dramas políticos da história do cinema,
Constantin Costa-Gavras
(1933) acaba de lançar na
França um novo filme, "Le Couperet" [O Cutelo] -drama policial e
realista que procura denunciar a
atual crise social no país. Na semana
passada, o filme ocupava o quarto
lugar em bilheteria entre os filmes
mais vistos no país.
"Le Couperet" escapa das limitações ideológicas e do engajamento
associados ao gênero político para
abordar a história de um "serial killer social", que não mata por prazer,
mas "por pragmatismo", como disse
à Folha, em entrevista por telefone.
O protagonista do filme é um executivo que perde o emprego e tem
dificuldades de recolocação. Diante
dos poucos cargos disponíveis, resolve eliminar seus concorrentes da
forma mais drástica: matando-os. É
uma versão moderna de "Monsieur
Verdoux", de Charles Chaplin, em
que este interpreta um "gentleman
amoral", criado a partir de argumento de Orson Welles, que pretendia filmar a história do Barba Azul.
O personagem de Chaplin ainda
ecoava a Segunda Guerra e antecipava o macarthismo, que viria nos
anos seguintes. O Carlitos transformado em serial killer chocou os
americanos e foi uma das razões que
forçaram a saída de Chaplin dos
EUA. Assim como o Hannibal Lecter, popularizado pelo filme "O Silêncio dos Inocentes", seu serial killer faz parte de uma estirpe de personagens que são sintomas sutis de
uma doença social. Se Chaplin enxergava um mundo sombrio egresso
do fascismo, Costa-Gavras vê um
mundo turvo recém-saído do colapso do comunismo, como explica na
entrevista.
Costa-Gavras é uma eminência
parda do cinema francês, uma voz
respeitada por sua mensagem humanista e antifascista que não se
rende a modismos. Filma com regularidade há décadas, já dirigiu a Cinemateca Francesa nos anos 80 e
tem o prestígio de um Urso de Ouro
em Berlim ("Muito Mais Que um
Crime", 89), uma Palma de Ouro em
Cannes e um Oscar (ambos por "Desaparecido - Um Grande Mistério",
de 82), além de diversos outros prêmios. Com "Amém" (2002), polemizou ao denunciar as ligações entre a
igreja e a Alemanha nazista.
Autor de outros clássicos do gênero como "Z" (1968), "Estado de Sítio" (1973) e "Seção Especial de Justiça" (1975), Costa-Gavras participa a
partir da próxima terça-feira do Seminário Internacional de Cinema e
Audiovisual que acontece na Bahia
(leia texto abaixo).
Folha - O personagem principal de
"Le Couperet" é um desempregado
que comete assassinatos. Ele traduz
uma doença da sociedade?
Costa-Gavras - O meu personagem
é um "serial killer" social. Não mata
por vício nem por prazer nem por
problemas psicológicos, mas o faz
por pragmatismo. Ele está em guerra. A globalização o coloca em estado de guerra. No liberalismo há o
dogma de que quem é o melhor ganha. Isso o afeta. Ele decide, então,
virar predador e, como tal, decide
atingir aqueles que podem prejudicar seu caminho.
Folha - Há semelhanças entre seu
"serial killer" e outros retratados no
cinema, como "M - O Vampiro de Düsseldorf", criado por Fritz Lang no início do século 20? Há alguma semelhança entre a Alemanha dos anos 20
e a Europa de hoje?
Costa-Gavras - É sempre difícil definir ou precisar uma doença social.
Mas é fácil afirmar que há uma crise
enorme na nossa sociedade, uma
crise filosófica, ideológica e ética. Isso acontece porque o homem não
conta mais, é a economia que conta.
O homem se sente completamente
colocado de lado. Não é mais a economia que é feita para o homem. O
homem é que passou a servir à economia. Essa é a idéia que tenta nos
impor esse liberalismo, cada vez
mais dominante. Essa é a crise, essa é
a doença, se formos chamá-la assim.
Folha - Por que o sr. escolheu fazer
uma adaptação do romance policial de Donald E. Westlak? A abordagem foi social ou política?
Costa-Gavras - É um tema social.
Ao mesmo tempo, em alguns aspectos, não é um gênero social realista.
Em outros, é realista. O conteúdo
dos livros de Westlak correspondia
ao que eu desejava falar sobre a sociedade francesa de hoje, do problema econômico e do problema do
comportamento das grandes companhias francesas e internacionais
em relação aos homens.
Folha - O sr. é famoso pelos seus dramas políticos. O que o sr. pensa do cinema político hoje? O sr. acha que o
cinema político está evoluindo para
um cinema de dramas sociais?
Costa-Gavras - Primeiramente
acho importante definir o que entendemos por política. Para mim
não se trata "da política", mas "de
políticas". É um conjunto de comportamentos e de relações da sociedade como é organizada atualmente. E o cinema, eu acho, não pode ficar indiferente, de uma forma geral,
ao que acontece em nossa sociedade.
A conclusão disso, do meu ponto
de vista, é que quase todos os filmes
são políticos. Ou ele fala da sociedade, ou não. Se ele se dirige a milhares
ou a milhões de pessoas. Portanto há
uma responsabilidade política dos
autores diante do público.
Folha - Nos festivais internacionais
os filmes com conteúdo político e social têm ganho um espaço maior. Há
uma tendência nesse sentido?
Costa-Gavras - Sim, é incontestável
que há uma tendência. Pode-se dizer
que, há alguns anos, acontecem coisas muito importantes na sociedade,
depois da queda do bloco comunista. Há um tipo de uniformização que
está se instalando, um tipo de dogma da uniformização que o [o presidente dos EUA] George W. Bush
quer impor, que sua administração
deseja impor, é uma coisa muito inquietante para o mundo. Acho que
toda uniformização é um atentado à
cultura, à especificidade e à liberdade de uma sociedade.
É por isso que há alguns anos começamos a lutar na França pela exceção cultural [lei que garante cotas
para a produção e distribuição de
produtos nacionais], no âmbito europeu e mesmo mundial. É essa uniformização que inquieta muito os cineastas e é por isso que estão sendo
realizados muitos filmes que tentam
explorar o que está acontecendo e o
que pode vir a acontecer também.
Folha - Os cineastas souberam enfrentar essa uniformização?
Costa-Gavras - É uma pergunta
complicada porque, inicialmente,
não há apenas aspectos negativos na
globalização. Veja, o cinema é o primeiro "globalizador" da cultura.
Graças ao cinema, pudemos conhecer os homens e as culturas de todos
os continentes. Hoje é difícil captar
exatamente o que isso significa.
No aspecto econômico os efeitos
são claros. As 500 maiores empresas
privadas do mundo controlam quase 55% do PIB mundial. As cifras são
tão grandes e tão pequenas ao mesmo tempo que isso se torna inquietante. Que 500 empresas controlem
5 bilhões de pessoas... Mas o cinema
não se reporta a isso diretamente. O
cinema não fala de cifras... O cinema
é um espetáculo, e as cifras, por mais
espetaculares que sejam, não dão
um bom filme...
Folha - Sei que é difícil para um cineasta comentar a produção de outros, mas o que o sr. acha do trabalho
de cineastas como Mike Leigh, Ken
Loach e Robert Guédiguian, diretores
que fazem parte dessa revalorização
do cinema de crítica social.
Costa-Gavras - É uma tendência...
Mike Leigh e Ken Loach, que você
citou, fazem um trabalho formidável
há muitos anos, assim como Guédiguian. É evidente que há uma nova
necessidade de falar da sociedade
contemporânea.
O que podemos lamentar é que esse é um tipo de cinema que se faz cada vez menos nos EUA, que sempre
foi o líder mundial desse tipo de filme -que podemos chamar de cinema social- nos anos 30, 40, 50 etc.
Aprendemos muito com esse cinema norte-americano.
Mas esse cinema norte-americano
praticamente não existe mais ou se
faz muito pouco. Faz-se, felizmente
-ou se tenta fazê-lo-, no resto do
mundo, principalmente na Europa.
Há vários autores na França e na
Alemanha e muito poucos na Itália,
infelizmente. Mas não posso fazer
uma lista. Os que eu deixar de citar
vão poder dizer que gosto de uns, e
não de outros...
Folha - Qual é sua opinião sobre o cinema de Michael Moore, que foi premiado no último Festival de Cannes e
no penúltimo Oscar?
Costa-Gavras - Gosto do Michael
Moore [risos[, acho um panfletário
formidável. Não há mais ninguém
no mundo hoje que faça esse tipo de
filme, principalmente nos EUA. Por
isso acho que é um cinema muito interessante e mesmo importante.
Folha - O sr. conhece os filmes de
conteúdo social que foram feitos no
Brasil nos últimos anos? "Cidade de
Deus", por exemplo?
Costa-Gavras - Vi o filme, sim. Infelizmente vi poucos filmes brasileiros
nos últimos anos. O Cinema Novo,
para nós europeus -de qualquer
forma para mim, pessoalmente-,
traduz um período extraordinário
de criação e de liberdade dentro de
um sistema que era muito duro, o
militar. Há muita vontade na França, atualmente, de se assistir ao cinema brasileiro.
Folha - O sr. viu "Diários de Motocicleta", de Walter Salles?
Costa-Gavras - Eu vi... É difícil de falar do filme. É bonito, mas ao mesmo tempo pensamos que Che Guevara é uma pessoa diferente daquela
retratada no filme...
Folha - Como o cinema de conteúdo
social pode afetar a sociedade?
Costa-Gavras - Desde o seu nascimento o cinema afetou a sociedade
de diversas maneiras. Eu venho da
tradição da tragédia grega, que nasceu junto com a democracia. O cinema para mim representava e representa o espetáculo da tragédia grega,
um papel muito importante na nossa sociedade. Ainda se fala de Édipo,
de Antígona, acho que o cinema representou e continua a representar
um papel muito importante na nossa sociedade.
Infelizmente, é a TV que deveria
estar representando esse papel. Mas
ela está programada atualmente para dar dinheiro, e não para difundir a
cultura e a pedagogia.
Folha - Na sua opinião que país pratica esse cinema atualmente?
Costa-Gavras - Os filmes da América Latina, da África e de outros lugares são muito importantes porque
falam de seus países e de suas sociedades. Os filmes norte-americanos
falam cada vez menos disso.
Folha - O seu primeiro filme era uma
adaptação de romance policial. E agora o sr. retorna ao gênero... Ainda é
possível fazer um cinema de gênero?
Não é cada vez mais difícil?
Costa-Gavras - Acho que é possível.
Principalmente porque é uma forma
de falar sobre coisas da nossa sociedade de que não poderíamos falar de
outra forma. Foi por isso que escolhi
fazer essa adaptação. Tem um pouco
a ver com a tradição do policial norte-americano e também do policial
francês. É uma forma indireta de falar com um certo realismo de nossa
sociedade.
Folha - O que o sr. espera transmitir
em sua vinda ao Brasil?
Costa-Gavras - Primeiro quero escutar muito o que dizem os brasileiros e os latino-americanos...
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