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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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EUROPA

por Timothy Garton Ash

A grande questão para a Europa em 2023 era o Iraque. Discutiam se este país devia ou não ingressar na União Européia. A Turquia, ela própria membro da UE havia mais de década na ocasião, defendia com veemência o ingresso do Iraque. Afinal, à sua maneira, este já era uma democracia por quase 20 anos, e seu petróleo se tornara vital para a prosperidade européia. Os curdos do Iraque e os da Turquia ressentiam-se do que amargamente chamavam de "muro de Bruxelas" da UE. Mohammed Ademi, secretário-geral da poderosa Associação de Muçulmanos da Europa (AME), descreveu a inclusão do Iraque como "uma necessidade histórica". O exemplo da adesão de outro grande país islâmico à comunidade européia de democracias só poderia favorecer a modernização do Oriente Médio então em curso, alegava ele. E o Iraque constituiria outra ponte para os ainda conflituosos membros associados da UE, Israel e Palestina. Alguns democrata-cristãos europeus mais antiquados objetaram que o Iraque não era um país europeu. "A idéia é ridícula!", disse o professor Romano Prodi, ex-presidente da Comissão Européia. Mas a União Européia já tinha atravessado as tradicionais fronteiras geográficas, históricas e culturais da Europa tida como a sucessora da cristandade, do século 14 ao 20, quando decidiu admitir a Turquia.

600 milhões de pessoas
No início do século 21, a Europa se tornou um dos grandes impérios do mundo. Como todos os impérios do século 21, porém, era um império de tipo novo. Enquanto o império americano se achava disperso pelo planeta numa imponente coleção de protetorados informais, interligados por rotas aéreas e marítimas, bases militares e fortíssima influência política e econômica, o império europeu consistia num único espaço de países territorialmente contíguos e formalmente ligados por um tratado constitucional. Estendia-se do Atlântico até o mar de Azov e do cabo Norte até as montanhas do Curdistão. Com a admissão da Ucrânia e da Moldávia em 2021, contava com 37 Estados-membros e mais de 600 milhões de pessoas. A economia européia era a maior do mundo: movimentava US$ 20 trilhões, ultrapassando largamente a dos Estados Unidos. Cada nova leva de Estados-membros -a começar pelos "tigres eslavos" da Europa Central e do Leste Europeu, admitidos em 2004- injetava dinamismo nas velhas e estagnadas economias da Europa Ocidental. A crise de 2007, quando a zona do euro quase entrou em colapso, poucos meses depois do ingresso da Grã-Bretanha, levou a uma maior flexibilidade no sistema monetário e à criação de um Fundo Europeu de Solidariedade destinado às regiões mais atingidas. A União Européia se beneficiou muito do seu papel de pivô entre a Área de Livre Comércio Eurasiana (Euralca), na qual se incluía a Rússia naturalmente, e a Área de Livre Comércio Transatlântica (Tralca), à qual pertenciam as Américas.

Império sem imperador
Tratava-se, no entanto, de um império sem imperador. Não havia um comando central nem hegemonia. Faltavam à Europa vários dos atributos do poder imperial. Assemelhava-se mais ao Primeiro Reich, o Sacro Império Romano-Germânico medieval, depois ao segundo, o de Bismarck, para não falar no terceiro, o de Hitler. Alguns chamavam o império europeu de "commonwealth", e o termo talvez fosse mais apropriado.


O império europeu consistia num único espaço de países contíguos e ligados por um tratado constitucional; com a admissão da Ucrânia e da Moldávia em 2021, contava com 37 Estados-membros e mais de 600 milhões de pessoas


Em negociações comerciais, humanitárias e ambientais, mostrava-se um jogador formidável. Gordana Dragovic, a inquieta sérvia de cabelos cor de fogo, com MBA em Harvard, era respeitada e até mesmo temida mundo afora por ocupar o cargo de comissária comercial da União Européia. Mas o império ainda não possuía uma política externa de segurança unificada e eficaz. Quando eclodiram graves crises fora da União Européia, especialmente as que podiam requerer ação militar, os acordos decisivos ainda eram negociados entre Washington, Londres, Paris, Berlim e outras capitais nacionais, além de Bruxelas. A UE ainda tinha três presidentes -o do Conselho Europeu, o da Comissão Européia e o do Parlamento Europeu. Embora o inglês fosse a língua usada na rotina cotidiana de trabalho da UE, suas políticas públicas eram formuladas em mais de 20 línguas diferentes. A mudança drástica ocorreu no período 2004-2009, sob a festejada presidência de Tony Blair (Conselho), José Maria Aznar (Comissão) e Bronislaw Geremek (Parlamento). Logo após a adoção de um tratado constitucional mínimo em 2004, esses três homens de Estado reconheceram que a marca registrada de uma união ainda mais ampla dos povos da Europa continuaria a ser a diversidade. O objetivo deixou de ser a formação dos Estados Unidos da Europa, que rivalizassem com os Estados Unidos da América, pois representariam uma segunda "nação mundial", conforme a implausível sugestão do ministro das Relações Exteriores francês, Hubert Védrine.

Propósitos comuns
Em vez disso, ambicionava-se manter a coesão e um sentido de propósito comum numa comunidade tão heterogênea, além de resolver o que as nações européias tinham de realizar juntas para que, individualmente, pudessem fazer melhor o restante. E a diversidade se mostrou, como sempre se mostrara, aliás, a maior força da Europa e também sua maior fraqueza. Modelos nacionais concorrentes no tocante à educação, assistência social, assistência médica, fluxo de pessoas e outras áreas produziram o que o guru da administração Torsten Wannamaker chamou de "espiral de referência ascendente".
Os principais problemas continuavam a ser políticos e culturais. Rivalidades nacionais perturbaram o funcionamento da União Européia. Os eleitorados foram perdendo cada vez mais o interesse na política, vista como uma remota competição pelo poder entre pessoas que não representavam nenhuma alternativa ideológica mais profunda. Os partidos políticos pareciam apenas compor uma oferta variada de equipes de administração para uma empresa pública, e solicitar aos acionistas que votassem era importuná-los sem necessidade, segundo a maioria. Forças extraparlamentares de toda espécie se fortaleceram.
Além disso, a Europa continuava a enfrentar mais dificuldades que os Estados Unidos na integração dos imigrantes, cuja afluência através do Mediterrâneo persistia e cuja contribuição era indispensável para o pagamento das pensões da população nativa que envelhecia. Algumas das políticas mais abomináveis dos anos 20 deste século envolviam campanhas populistas contra os muçulmanos residentes na Europa, sobretudo após a admissão da Turquia, que elevou seu número a quase 100 milhões. "Escolham entre Alá e a Europa!" era o slogan de Norbert Pützel, líder do Partido da Cultura Alemã (DKP), de extrema direita. Felizmente essas tendências acabaram sendo contidas, graças a um contexto de crescente prosperidade e às novas gerações de europeus, nas quais o preconceito racial foi muito mitigado por viagens, amizades de infância e uma total imersão na cultura popular americana.
A Europa em 2023 não representava propriamente um bem-sucedido novo modelo de união federativa, como tinham desejado seus fundadores 70 anos antes. Mas não deixou de ter tido razoável êxito em seus propósitos, apesar dos obstáculos internos".

Timothy Garton Ash é historiador inglês e diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade de Oxford. É autor de "Nós, o Povo" (Companhia das Letras). Este artigo foi originalmente escrito para uma edição comemorativa do "Wall Street Journal".
Tradução de Bluma W. Vilar.


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