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São Paulo, domingo, 27 de abril de 2003

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+ brasil 504 d.C.

José Arthur Giannotti

IMPERIALISMO RACIONAL

Que sentido adquire a guerra numa sociedade científica e tecnologicamente avançada, em que a rede de informação torna os acontecimentos do planeta acessíveis ao simples toque de um botão? Os Estados Unidos, a nação cujo poderio bélico é hoje em dia avassalador e invencível, pretendem-se igualitários e democráticos, chegando ao ponto de legitimar sua intervenção no Iraque e, como tudo indica, no Oriente Médio, com o intuito de combater as raízes do terrorismo e a promessa de instalar nessa região a democracia pela força. Lembremos que o sentido social da guerra varia conforme uma dada sociedade trata da questão de sua alteridade.


Se o trabalho de conhecer não cria valor, ele coordena, nas condições atuais de uma produção altamente sofisticada, a circulação dos valores criados


A guerra radicaliza os antagonismos políticos até seus limites e seu perfil se desenha pelo modo como o outro age e é visto. É assim que a guerra, numa sociedade tupinambá, tem a função de capturar o outro e, mediante a antropofagia ritual, integrá-lo no guerreiro valente. Na sociedade grega, por sua vez, ela se fazia para assegurar a autonomia de cada indivíduo no interior da cidade-Estado, sua capacidade de obedecer às leis que ele mesmo criava. Tendo essa sociedade sua estrutura produtiva baseada na escravidão, e sendo o escravo, em princípio, um cativo de guerra, o grego guerreia para manter sua liberdade, abrindo espaço para uma economia escravista. Isso se torna evidente se lembrarmos que Esparta declarava guerra simbólica a seus escravos anualmente, que mantinha uma política agressiva em relação às outras cidades gregas, transformando essa política em aliança diante da primeira ameaça vinda dos bárbaros, isto é, daqueles súditos que só sabiam obedecer a um tirano. Na guerra, grupos sociais colocam em risco suas identidades políticas. Por isso muitos filósofos têm salientado seu papel civilizador, pois o conflito, além de reforçar laços internos entre os cidadãos, teria a virtude de imprimir sentido histórico e até mesmo progressista à ruptura das relações de alteridade. Todos conhecem a dialética hegeliana do senhor e do escravo, quando este, para salvar sua pele, se submete ao outro, mas reconquista a autonomia perdida na medida em que se conforma à legalidade do processo de trabalho. Graças ao serviço do trabalho, ele se educa e se torna mais forte do que o antigo mestre, repondo a relação de senhor e escravo, mas agora no nível em que cada um reconhece e vigia sua própria identidade.

Novo bárbaro
A segunda Guerra do Golfo está sendo apresentada como processo civilizador executado por um Estado que se vê igualitário e democrático, cuja identidade foi ameaçada por atos de terror. Esse é o lado meramente ideológico da guerra. Mas toda ideologia não abrigaria algum grão de verdade? Se essa guerra pretende se justificar porque civiliza, é porque o outro, o novo bárbaro, é visto como não-civilizado e, sobretudo, irracional. No que se baseia essa avaliação? O perfil do terrorista nos dá uma pista. Ele se distingue do guerrilheiro, em primeiro lugar, porque deixa de circular num território e transforma o planeta no palco de suas operações. Em segundo lugar, porque opera com instrumentos tecnologicamente sofisticados ou utiliza seu próprio corpo para impedir o funcionamento de um sistema tecnologicamente fechado. Um indígena que se fizesse explodir durante a caminhada que o levaria à prisão não causaria prejuízo nenhum. Finalmente, o terrorista demonstra uma vontade que se quer absoluta, fugindo de qualquer condição institucionalizada. O guerrilheiro põe em risco sua vida, mas o terrorista transforma sua vida em instrumento de luta, por conseguinte se situa no limite do mundo, querendo e ao mesmo tempo não querendo este mundo. Diferentemente do guerrilheiro, ele se prepara para o martírio. Esses traços essenciais do poder antagônico trazem alguma luz sobre as determinações do poder dominante: este é planetário, atinge proeminência porque tem disponível o monopólio da invenção científico-tecnológica, ignorando qualquer outra razão de ser além da sua. O nó da questão reside nesse monopólio. As sociedades contemporâneas se movem entre a natureza bruta e a segunda natureza, científica e tecnologicamente configurada, e medem seu desenvolvimento pela diferença que abrem entre elas. Convém ter em mente que a organização social, na medida em que suas partes passam a ser conectadas pela tecnociência, também faz parte dessa segunda natureza. Por todo lado, pululam novos conhecimentos e novas técnicas, mas esses só se integram num sistema que vai da invenção à aplicação se enormes recursos forem investidos, o que demanda a combinação do Estado nacional com as grandes corporações. Estas fornecem os recursos vultosos, e o Estado fornece educação fundamental e superior, financiamento da pesquisa básica numa combinação que varia caso a caso.

Capital e regulação
Essa combinação entre Estado e capital é sui generis. Em princípio, o capital dispensa o Estado, quer se ver livre de sua regulação. No entanto, só consegue se tornar efetivo com a sua colaboração, seja durante a instalação do sistema capitalista de produção, seja no seu pleno desenvolvimento, quando lhe interessa controlar a invenção científica e tecnológica, pois só assim tem condições de lançar produtos tecnologicamente sofisticados antes de seus concorrentes e assegurar uma posição estratégica no mercado.
Se o monopólio da terra vem a ser capital porque traz ao proprietário fundiário parte do excedente da riqueza criada, com mais razão esse monopólio do conhecimento deve ser identificado como capital, isto é, controle sobre o trabalho alheio, quando dá o ritmo de todo o movimento do sistema capitalista. Se o trabalho de conhecer não cria valor, ele coordena, nas condições atuais de uma produção altamente sofisticada, a circulação dos valores criados.
Nessas condições, estabelece-se uma determinação recíproca entre Estado e capital muito particular: o capital, no seu modo de ser, exclui o Estado daquelas determinações que são repostas por seu automovimento, mas essa reposição das determinações do capital só pode ser feita graças à colaboração do Estado. As regras do jogo de xadrez nada dizem a respeito da constituição das peças, mas elas não podem ser seguidas se as peças não conservarem suas próprias identidades. Tenho sublinhado essa diferença, estipulada claramente por Marx, entre regras essenciais, repostas pelo próprio sistema, e condições de seu vir a ser -a qual corresponde, "mutatis mutandis", àquela diferença proposta por Wittgenstein entre modos de representação e meios de apresentação. Não é fundamental para compreender o funcionamento do capital contemporâneo na sua relação com o Estado. Ao negar essa determinação recíproca, o marxismo vulgar cai no economicismo, transformando o Estado em mera representação dos conflitos da sociedade civil, no fundo órgão em função dos interesses burgueses; e a Escola de Frankfurt se emaranha numa diferença entre a razão técnica safada e a razão comunicativa (na sua última versão) salvacionista. De ambos os lados, perde-se a codeterminação entre a regra e as condições de seu seguimento. A disputa pelo controle da invenção científica e tecnológica tem sido vencida pelos Estados Unidos, que por isso mesmo consegue absorver grande parte da criação da riqueza global. É sintomático que a conquista dessa proeminência tenha tido como pano de fundo os avanços da tecnociência americana. Depois da Segunda Guerra Mundial o equilíbrio das nações se fez sob a ameaça da destruição total das partes beligerantes, o que colocava em risco a própria sobrevivência da humanidade. A ameaça de uma guerra atômica jogava a guerra para a periferia dos sistemas políticos e equilibrava o jogo das potências dominantes. Os Estados Unidos venceram seus competidores quando lograram desenvolver engenhos atômicos "limpos", isto é, capazes de destruir alvos limitados e souberam blindar seu território com um sistema de defesa imune ao ataque atômico direto. Resta apenas a ameaça direta do terror, principalmente se vier a dispor de armas de destruição em massa. É bom lembrar, além do mais, que a União Soviética entrou em colapso na medida em que não conseguiu financiar e competir com o sistema da tecnociência, civil e bélica, americana. E que a Europa se atrasou nessa corrida por ter optado pela limitação de seu esforço bélico. Se ela designa apenas (sic) por volta de US$ 180 bilhões para seu sistema bélico, os Estados Unidos investem por volta US$ 400 bilhões, podendo chegar proximamente a US$ 500 bilhões. Por fim convém lembrar que esforço bélico sempre traz desenvolvimento tecnológico e novos desafios para as ciências, o que mostra a circularidade do processo.

Monopólio
Enquanto os Estados Unidos se mantiverem na ponta desse monopólio, não vejo como seu poder venha a ser ameaçado, a não ser pela contradição por ele mesmo gerada. Ideologicamente ele se veste como processo de racionalizar, de irradiar a luz da razão. É sintomático que uma das primeiras medidas anunciadas pelo interventor no Iraque seja a reforma do sistema educacional. Lembremos, porém, que o Iluminismo do século 18 costumava distinguir a selvageria da barbárie, estágios diferentes da evolução social e jurídica da humanidade no caminho da razão e da paz universal. No primeiro, imperaria tão-só a luta de todos contra todos; já no segundo, os homens passariam a obedecer a leis formais de convivência, embora essas mesmas leis fossem empregadas ad hoc, ao sabor dos interesses dos mais fortes. Somente no estágio superior, aquele do contrato social, é que as leis passariam a representar uma vontade geral, a que todos os indivíduos deveriam obediência precisamente porque essa vontade configuraria o que reside de universal na vontade de cada um.

Se os Estados Unidos foram a primeira nação, e a mais forte, instituída sob a bandeira do Iluminismo, não dá ela hoje o exemplo mais cabal de sua negação?


A maneira pela qual as leis do direito internacional e até mesmo as leis do direito público têm sido manipuladas nesses tempos da segunda Guerra do Golfo, vista pela ótica iluminista, nos leva a crer que estaríamos mergulhados até o pescoço no estado de barbárie. As resoluções da ONU foram simplesmente interpretadas conforme a conveniência do mais forte, a imprensa "livre" americana está sendo pressionada para se submeter à estratégia da guerra, passando por uma verdadeira lavagem cerebral e, o que é muito pior, direitos humanos têm sido negados aos terroristas capturados.
Se os Estados Unidos foram a primeira nação, e a mais forte, instituída sob a bandeira do Iluminismo, não dá ela hoje o exemplo mais cabal de sua negação? Que efeitos gerará essa contradição interna entre os fundamentos do Estado americano e o atual exercício de seu poder? O que esperar da oposição à guerra que se espalha pelo mundo e atinge os próprios Estados Unidos?
À primeira vista, essa oposição depende do modo como vai confrontar sua própria razão à razão da guerra, mas nada terá efeito duradouro se não atingir a raiz do problema: como, em nome da própria tradição iluminista, se criam leis e instituições capazes de democratizar o monopólio do capital sobre a ciência? Aqui surge, porém, um enorme desafio. Assim como a troca de mercadorias cria seu próprio fetichismo, o novo capital não criaria uma ciência alienada? Como orientar a prática reformista se ela for norteada pelo fetiche da ciência? Mesmo sem responder, por ora, a essa pergunta, pode-se chegar a uma conclusão parcial. Se o projeto civilizador da invasão americana for cumprido em vista de uma ciência fetiche, nada mais será do que a implantação da barbárie.

José Arthur Giannotti é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e coordenador da área de filosofia do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Escreve mensalmente para a seção "Brasil 504 d.C." (depois de Cabral).

Nota:
Agradeço a Luciano Nervo Codatto e a Luiz Henrique Santos a revisão deste texto.


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